sexta-feira, 29 de março

A doutrina da revelação verbal

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Trecho extraído do livro Eu Sou, de Heber Campos

 

Quando Deus nos fez, dotou-nos com o senso da verdade impresso em nossa alma e desejosos de tê-la. Esse senso de verdade foi desfigurado pela queda, porém é muito forte na mente daqueles que têm sido remidos por Deus.

No entanto, por causa de nossa finitude e da capacidade divina de permanecer escondido (Deus Absconditus), intocado e inacessível, e não podendo ser achado por suas criaturas, não podemos obter a verdade sobre ele a menos que ele mesmo se revele ou se deixe achar para que seja conhecido. Somente quando Deus se torna conhecido é que podemos conhecer a verdade, que está escondida em Deus, porque Deus é a verdade personificada e o revelador dela em palavras.

Como a verdade é um dos atributos de Deus, é importante que nos proponhamos a conhecê-la. Essa verdade está parcialmente revelada nas obras da criação, pois nós próprios e as coisas que nos cercam são feituras dele e refletem, em alguma medida, alguma verdade sobre ele. Todavia, eu sei dessas coisas porque leio na Escritura que somos feituras dele e criados em Cristo Jesus. Se Deus não houvesse revelado sua verdade, seja na criação, seja na revelação verbal, jamais teríamos acesso a ela.

A verdade está na mente de Deus e não pode ser buscada pelos homens por seus próprios recursos, ainda que estivessem em um estado de pré-queda. Deus nos fez limitados e sem acesso à sua mente. A situação se torna ainda mais complicada quando olhamos o homem na condição de caído. Nesse caso, não somente o homem não pode conhecer Deus, como também não quer conhecer quem é o verdadeiro Deus, por causa de suas indisposições interiores contra Deus. Ele, inclusive, pode negar não apenas a possibilidade de a verdade ser conhecida, como também sua responsabilidade moral diante dela. Além disso, por causa de sua natureza caída, o homem ainda vem tentando criar um substituto para Deus e sua verdade.

Como já mencionamos, Deus é inacessível pela mente humana. Nesse sentido, os cristãos da ortodoxia reformada insistem em que a mente humana, por si só, não pode atingir nada de Deus, a menos que ele se deixe conhecer. Morris diz que “o homem, como homem, não tem acesso à vida interior de Deus, nenhum conhecimento do ser essencial de Deus. A Teologia não é um estudo de ‘Deus em si mesmo’, mas de “Deus como revelou a si mesmo’”.

Assim, quando fazemos Teologia, não a fazemos com base em “Deus em si mesmo”, mas naquilo que ele revelou de si mesmo. Os estudiosos de Teologia, portanto, não podem ter acesso a Deus, mas somente à sua revelação. Deus não pode ser descoberto nem pesquisado. Entretanto, podemos pesquisar sua revelação, seja a da natureza, seja a da Escritura. Por essa razão, não podemos crer numa Teologia que não leva em conta a revelação divina.

Todavia, todos esses cristãos creem (por causa da revelação que lhes foi internalizada pelo Espírito) que “todas as veredas do Senhor são misericórdia e verdade” (Sl 25.10) e que Jesus Cristo é a verdade (João 14.6). Toda verdade que Deus deu a conhecer aos homens estava oculta em sua mente e, então, ele nos tornou capazes de conhecer tudo o que ele deu a conhecer aos homens. Nesse sentido, segundo Burridge, toda verdade que nós conhecemos é analógica; a saber, ela concorda com, corresponde a, mas não é completamente idêntica ao que está na mente perfeita de Deus. Há uma “analogia” entre o que Deus fala às suas criaturas e o que ele conhece infinita e perfeitamente.

A necessidade de a verdade ser sistematizada

O sistema de verdade elaborado pelo cristianismo deve estar enraizado na natureza do Deus que se lhes revela. Para que nosso conhecimento seja mais bem apreendido, é necessário organizá-lo e sistematizá-lo. Pela sistematização, aprendemos a relacionar as verdades que nos são dadas por Deus. Pela sistematização, aprendemos a associar ideias importantes em grupos, para que o material fique bem organizado e facilite para nossa mente finita o que é simples para a mente infinita. Se não houver a sistematização da verdade, as estruturas de nosso pensamento rapidamente ficam complicadas. Por isso, precisamos que as ideias sejam concatenadas de modo a facilitar nossa apreensão da verdade.

Deus, por causa de sua mente infinita, não precisa de um sistema organizado. Sua mente em si mesma tem o conhecimento de todas as coisas sem que precisem ser necessariamente organizadas como nós precisamos, devido à finitude de nossa mente. A sistematização das ideias é singular dos seres criados, e não do Criador.

O Criador tem uma mente unificada absoluta que nós tentamos entender por meio de sua revelação. Como Criador, ele nos designou para sermos capazes de conhecer exatamente o que ele quer que conheçamos… Ao grau em que usamos consistentemente os métodos de Deus, nosso estudo produzirá ideias consistentes com a verdade como ela existe de forma absoluta na mente de Deus.

Somos ainda criaturas caídas e, para que obtenhamos ideias consistentes com a verdade de Deus, devemos também ter a operação divina em nós, capacitando-nos a ler corretamente a revelação que ele nos dá de si mesmo, que é verbal (revelação sobrenatural) e não verbal (revelação natural).

Essa é a única maneira que temos para, apreendendo corretamente a verdade de Deus, ensiná-la aos homens de modo eficaz e exato. Essa é uma tarefa apologética que pressupõe o conhecimento e a apreensão da verdade. Por essa razão, Paulo, escrevendo a Tito, disse que o presbítero deve ser “apegado à palavra fiel que é segundo a doutrina, de modo que tenha poder tanto para exortar pelo reto ensino como para convencer os que contradizem” (Tt 1.9).

A importância de a verdade sistematizada ser confessionalmente escrita

Vivemos num tempo de ojeriza à confissões escritas. É um tempo de aversão aos dogmas afirmados. Alguns afirmam não precisar de um credo porque eles têm a Escritura, e esta lhes basta. Precisamos fazer todo o possível para que as pessoas tenham uma ideia correta do que são os credos e as confissões, e a importância que eles tiveram e têm para a preservação da verdade de modo sistematizado. As verdades distribuídas por toda a Escritura podem e devem ser colocadas topicamente para a melhor compreensão de nossa mente finita. Os credos e as confissões podem ajudar-nos a compreender melhor a verdade da mente de Deus que ele disponibilizou em sua revelação verbal. É uma ingenuidade teológica fincar pé na oposição à confessionalidade. Sem a sistematização das verdades de modo escrito, corremos o risco de ter o erro penetrando sorrateiramente na vida da igreja.

Se as crenças, ou credos, que governam nosso entendimento não são escritos, existem somente em nossas mentes e transitoriamente em palavras faladas. Isso torna difícil para nossas doutrinas serem examinadas à luz do padrão da Palavra de Deus.

Queiramos ou não, todos nós fazemos Teologia quando interpretamos um texto da Escritura. Esse é o padrão de todas as épocas diante da revelação divina. Em um passado bem remoto, quando havia somente o Pentateuco escrito (e alguns poucos escritos proféticos que circulavam no meio do povo), imediatamente após a volta do cativeiro da Babilônia, sabemos que Esdras leu as Escrituras (Pentateuco) assistido por alguns líderes do povo. Após terem lido o texto das Escrituras, é-nos dito que “davam explicações [‘do Livro da lei’] de maneira que entendessem o que se lia” (Ne 8.8). Eles fizeram “Teologia”, ou seja, interpretaram para o povo o sentido da lei de Deus.

Se nenhuma interpretação ou explicação da Escritura é permitida além de simplesmente citar os textos, isso tornaria a revelação indisponibilizada para a maioria das pessoas. Somente os eruditos linguistas poderiam ler ou entender a Bíblia em suas línguas originais. Nenhum comentário poderia ser feito a respeito do que a Bíblia diz além da simples leitura dos textos da Escritura.

O que é extremamente curioso é que nosso dever de interpretar o texto para o povo de Deus tem fundamento na passagem citada de Neemias, que hoje, para nós, é normativa, pois é inspirada por Deus. O princípio é que todos nós devemos interpretar a Escritura, e isso ficou registrado no livro de Neemias. A Escritura nos ensina que devemos interpretá-la de acordo com ela própria, por intermédio de seus mestres. Isso significa que nossas crenças, ou credos, devem governar o que os mestres ensinam.

Se a formulação de nossos credos e confissões não é alguma coisa desejável, o que cremos não poderia ser examinado e corrigido por um padrão objetivo da revelação de Deus.

Todos os homens têm credos, escritos ou não. Se não são escritos, então é difícil examinar as crenças em conformidade com a Bíblia. Credos não escritos tendem a contribuir para confusão e heresia. Por deixarem as coisas claras, os limites, os credos e as confissões escritos ajudam a identificar as negações da autoridade bíblica e protegem contra a elevação das ideias humanas a uma posição como a da verdade revelada do Criador.

Portanto, se não colocarmos no papel aquilo em que cremos, correremos o risco de perder esse conteúdo e dificultar o respectivo exame. Provavelmente essa seja a razão maior da rejeição à confessionalidade.

A prática da confessionalidade tem seu gérmen em um exemplo bíblico em que as decisões da igreja foram afirmadas por escrito e transmitidas a outros irmãos que não faziam parte do grupo da liderança. O exemplo está registrado em Atos 15.23-29, quando o Concílio de Jerusalém (composto de apóstolos e presbíteros) se reuniu para tratar das questões que estavam afetando toda a Igreja nascente. As resoluções foram colocadas por escrito e enviadas às igrejas para que corrigissem e instruíssem seus membros. Foi a interpretação da verdade de Deus colocada de forma escrita que serviu de base para que a igreja afirmasse ali sua fé e sua conduta.

A prática de se escrever formalmente aquilo em que se crê, portanto, tem origem em tempos bem remotos. Desde os primórdios da Igreja Cristã, os homens registravam aquilo em que criam, que era produto da revelação divina, e também as interpretações que recebiam da revelação.


Autor: Heber Carlos de Campos

É graduado pelo Seminário Presbiteriano de Campinas (1973); fez seu mestrado em Teologia Contemporânea (Th.M.) no Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição (1987) e doutorou-se em Teologia Sistemática no Concordia Theological Seminary, Saint Louis, Missouri, EUA (1992). Foi diretor do Seminário Presbiteriano Brasil Central (Goiânia, 1985-1989) e professor do Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição, foi diretor do CPAJ entre 1993 a 1999 (2004, interinamente) e tem exercido o ministério pastoral na Igreja Presbiteriana do Brasil por mais de 35 anos. É membro da Academia Paulista Evangélica de Letras (APEL). Além de artigos em periódicos brasileiros, suas obras significativas são: "O Ser de Deus e Seus Atributos" (1999), "Fé Cristã e Misticismo" (2000 – co-autor), "A Providência de Deus e Sua Realização Histórica" (2001), "As Duas Naturezas do Redentor" (2004), "A união das naturezas do Redentor" (2005), "A humilhação do Redentor - Encarnação e Sofrimento" (2008). Dr. Heber está presentemente concluindo sua próxima obra, "A Humilhação do Redentor - Sua morte e sepultamento".

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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