quinta-feira, 18 de abril

O mundo e o cristão – parte final

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“Quando Deus criou as artes, deu a elas um lugar no mundo, ao qual chamou de bom. A arte existe porque Deus quis que existisse. Ela tem função e significado próprios” – Hans Rookmaaker

Há lugar para músicas, poesias, enfim, arte de um modo geral, na vida cristã?

Na Bíblia, claramente percebemos o envolvimento que homens de Deus tinham com as artes não cristãs. Percebemos que, em seu dia a dia, havia um espaço para o conhecimento das mesmas.

Paulo demonstra que conhecia arte pagã. Chega a citá-la em sua epístola à Tito e em sua pregação no areópago, em Atenas. Aqui, Paulo curiosamente age de modo diferente de como faz em outras de suas pregações. Ele cita o filósofo Epimênedes acerca de Zeus: “Os cretenses, sempre mentirosos, bestas más, ventres preguiçosos, forjaram uma tumba para ti, oh santo e elevado. Mas tu não estás morto. Tu vives e permaneces para sempre. Porque em ti vivemos, nos movemos e temos nosso ser”.

E, na pregação de Atenas, além de citar Epimênedes, Paulo cita Arato: “Comecemos com Zeus. Nunca deixemos de mencioná-lo, oh mortais! Todos os caminhos e todos os locais onde os homens se reúnem estão plenos de Zeus. Em todos os nossos assuntos temos que ver Zeus, porque somos também sua geração.”

Paulo cita pagãos para pagãos. Todavia, sua mensagem principal era o Evangelho. E é exatamente por causa disso que eles dispensaram a Paulo e disseram que o ouviriam em outra ocasião.

Veja nas próprias palavras de Paulo algumas referências a poetas pagãos:“Para que buscassem ao Senhor, se porventura, tateando, o pudessem achar; ainda que não está longe de cada um de nós; Porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos; como também alguns dos vossos poetas disseram: Pois somos também sua geração” (Atos 17:27-28); e também aqui: “Aos quais convém tapar a boca; homens que transtornam casas inteiras ensinando o que não convém, por torpe ganância. Um deles, seu próprio profeta, disse: Os cretenses são sempre mentirosos, bestas ruins, ventres preguiçosos. Este testemunho é verdadeiro. Portanto, repreende-os severamente, para que sejam sãos na fé” (Tito 1:11-13).

Estes exemplos do uso que Paulo fazia não nos servem para legitimar o consumo e apreciação pelas artes não cristãs, mas servem para nos mostrar que Paulo as conhecia, e de cor.

Não podemos confundir tudo isso com uma licenciosidade para ouvir todo e qualquer tipo de música, filme ou poema pagãos. Não. Somos orientados pela Palavra de Deus a não preenchermos nossas mentes com aquilo que não nos edifica (Fl 4.8).

Todavia, não precisamos chegar ao ponto de considerarmos demoníacas toda forma de expressão artística não cristã. Vejamos como os cristãos têm tratado isso ao longo da história.

Como escreveu Henderik Roelof “Hans” Rookmaaker, “quando Deus criou as artes, deu a elas um lugar no mundo, ao qual chamou de bom. A arte existe porque Deus quis que existisse. Ela tem função e significado próprios”.

Este tem sido o entendimento da grande maioria dos cristãos, desde o início. As artes, por mais deturpadas que estejam, não devem ser vistas como algo pervertido em si. Substancialmente, se pudermos assim colocar, as artes foram criadas como um fim para comunicar beleza e atributos.

Ao pesquisarmos a história da igreja primitiva, percebemos de modo abundante a utilização de elementos artísticos para expressar sua fé. Sejam em pinturas na parede de cavernas, em letras ou animais desenhados ou lapidados em rocha, ou ainda em vitrais que expressavam a história da redenção, a fé dos cristãos sempre encontrou seu lugar nas artes.

Isso, sem mencionar uma infinidade de hinos, livros e poesias que serviam como forma de expressarem sua fé.

Desde o início, os cristão usam imagens, símbolos, pinturas, músicas, enfim, arte para expressar sua fé. Imagens como o peixe, o cordeiro, o leão e a âncora, por exemplo, eram extraídas dos textos inspirados da Bíblia e usadas no dia a dia dos cristãos.

Durante a reforma protestante, os reformadores continuaram dando às artes um lugar de destaque. Veja Calvino: “Que mui excelentes dons do Espírito Divino são estes, que, para o bem comum do gênero humano, dispensa a quem quer […]. Se o Senhor nos quis deste modo ajudados pela obra e ministério dos ímpios na física, na dialética, na matemática e nas demais áreas do saber, façamos uso destas para que não soframos o justo castigo de nossa displicência, se negligenciarmos as dádivas de Deus nela graciosamente oferecidas”.

Ainda comentando o livro de Êxodo 31:1-5, João Calvino afirma: “Todas as artes emanam dEle, e, portanto, devem ser reconhecidas como invenções divinas […] portanto, devemos concluir que qualquer habilidade possuída por qualquer pessoa emana de uma única fonte, e é conferida por Deus”.

Perceba, então, que na tradição cristã as artes sempre ocuparam um lugar legítimo e específico.

Mas, e na adoração comunitária? Qual o lugar das artes? Devemos usá-las? De qual forma?

Lembro-me da seguinte afirmação de C. S. Lewis: “Não gostei muito dos hinos deles, que considerei poema de quinta categoria em música de sexta. Mas com o tempo, vi seu grande mérito. Eu fui confrontado com pessoas de visões e educações diferentes, e gradualmente meu conceito começou a se desfazer. Eu percebi que os hinos (que eram apenas música de sexta categoria) estavam, no entanto, sendo cantados com devoção e benevolência por um santo idoso calçado em botas simples no banco oposto, então você compreende que não é digno de limpar essas botas. Isso faz você se libertar dessa presunção.”

Aqui, Lewis compreende algo especial sobre a adoração comunitária: ela é simples; é pautada na simplicidade. Tal simplicidade tem o objetivo de ser inclusiva. Ela possibilita a todos participarem, todos cantarem, todos lerem, todos cultuarem como se fossem um (e o são!).

Efésios 5:19 e Colossences 3:16 nos recomenda adorarmos a Deus com simplicidade e devoção. São mencionados hinos, salmos e cânticos. Todavia, não são estas expressões artísticas que nos unem, mas o que é expressado por meio deles: a majestade de Deus, a glória de Cristo, a cruz, o amor de Deus. Independente do que cantamos, de como cantamos, nossas canções devem refletir isso.

E quanto aos estilos? À forma? Creio que aqui, mais uma vez, Calvino possa nos ajudar: “Mas, porque nas cerimônias não quis ele prescrever minuciosamente o que devamos seguir (porque isto previne depender da condição dos tempos, nem julgaria convir a todos os séculos uma forma única). Enfim, porque Deus nada ensinou expresso nesta área, porquanto essas coisas não são necessárias à salvação e devem acomodar-se variadamente para a edificação da Igreja, segundo os costumes de cada povo e do tempo. De fato reconheço que se deve recorrer à inovação não inconsiderada, nem seguidamente, nem por causas triviais. O que, porém, prejudica ou edifica, melhor o julgará a caridade, a qual se permitirmos seja a moderatriz, tudo estará a salvo.”

Kevin DeYoung, um jovem pastor reformado norte-americano, afirma que“nosso primeiro objetivo não deve ser conquistar a cultura ou apelar para o não regenerado. Adoração é para o Único Digno”.

Posto isto, afirmo que nossas músicas devem refletir, de certo modo, a unidade em meio a nossa diversidade. Devemos fazer o que fizermos com excelência, expressando todo o Conselho de Deus em nossas canções ou poemas.

Portanto, nunca perca seu foco em um culto comunitário. Você vai ali para adorar a Deus, e não para reparar nas pessoas ou suas expressões.

Concluindo, creio que, no Brasil, a grande maioria das pessoas vive debaixo de uma opressão espiritual. Tal opressão as impede de perceber beleza nas artes. Barulhos são chamados de música e rabiscos são chamados de pintura. Contudo, são, do meu ponto de vista, uma forma espiritual de manter pessoas distantes do que a arte pode mesmo comunicar em termos de beleza e ensino.

Sim, eu creio que a arte pode nos ensinar. Mais que isso. Creio que a arte pode me levar a adorar a Deus. Quando ouço uma jovem tocando de modo excepcional um violão, ou um adolescente pintando maravilhosamente um quadro, ou um senhor escrevendo uma linda poesia sobre o campo, tudo isso me leva a louvar a Deus, pois eu sei que a fonte de toda a beleza não poderia vir de outro lugar que não dEle.

Sim, a arte pintada, cantada, tocada, escrita, filmada, declamada me leva a adorar a Deus. A perversão da arte está no adorar da criatura, do artista, ao invés de adorarmos aquele que lhe deu o dom, o Criador.

Que, em nossa relação com o mundo, também saibamos, com equilíbrio e bom senso, nos relacionar com as músicas, poesias, literatura, teatro, cinema, exposição de quadros, enfim, com toda sorte de expressão artística de modo a redimi-la.

Seja excelente em tudo o que fizer e não deixe de louvar a Deus quando vir a excelência da glória e da graça de Deus na vida de um pagão, quando este expressar, de forma brilhante, o seu dom. Louve a Deus pela beleza da arte e não deixe de fazer o que faz da melhor forma possível. Dê glória a Deus e faça tudo para a glória de Deus.


Autor: Wilson Porte

É bacharel em Teologia pelo Seminário Bíblico Palavra da Vida e mestre em Teologia-histórica pelo Centro de Pós Graduação Andrew Jumper. É pastor da Igreja Batista Liberdade (SP) e professor no Seminário Martin Bucer e na Sociedade de Estudos Bíblicos Interdisciplinares. Wilson Porte é casado com Rosana e pai de Natan e Ana.

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