O cenário brasileiro tem experimentado um influxo impressionante de livros que abordam o tema da cosmovisão. Simplificando um assunto bastante complexo, cosmovisão diz respeito a pressuposições que todo o ser humano possui (esteja ele consciente ou não) que residem em nosso mais interior (coração) formando assim uma orientação de vida, um comprometimento com verdades pelas quais você vive e morre. Trata-se de um conjunto de motivações, crenças, certezas, valores e ideais que formam o instrumento interpretativo da realidade, além de ser a base de nossas ações e decisões.
Devido à tradição reformada refletir sobre esse assunto há mais tempo do que qualquer outro segmento da cristandade (com nomes como James Orr, Abraham Kuyper, Herman Dooyeweerd, Francis Schaeffer, etc.), os autores modernos tratam de certos marcos históricos do cristianismo como fundamentos da cosmovisão reformada: criação, queda e redenção. Esse tripé tem sido uma das características mais comuns entre os livros que tratam de cosmovisão. Não que outros cristãos não afirmem tais acontecimentos na história da humanidade, mas são os reformados que costumam enfatizar com maior frequência a importância de considerar a praticidade desses eventos para o nosso dia a dia.
Esses pilares históricos não devem ser vistos como meros conceitos ou categorias intelectuais. Não se tratam de proposições atemporais. A cosmovisão é uma história, a história da humanidade, a nossa história. Esse elemento existencial não pode ser esquecido no estudo de cosmovisões. Sendo assim, é quando encarnamos as verdades dessa história, e vivemos conscientes dessa história, que nossa cosmovisão se coaduna com a revelação bíblica. Viver à luz da criação significa, por exemplo, relacionar-se com as pessoas mais complicadas à luz do fato de ainda serem imagem e semelhança de Deus. Viver à luz da queda implica em não nutrir sonhos utópicos resultantes do esforço humano para construir uma sociedade melhor. Viver à luz da redenção envolve a noção de uma redenção tão abrangente que afeta pessoas não só em sua espiritualidade, mas em todas as áreas de sua vida, inclusive o seu habitat.
Na área da redenção é que calvinistas têm o perigo de comunicar uma mensagem indevida. Se por um lado, atacam corretamente o pessimismo do mundo evangélico em não integrar a fé às várias áreas de nossa atuação secular, por outro lado, correm o risco de criarem uma falsa expectativa de nossa atuação no reino de Deus. Desde a célebre obra de H. Richard Niebuhr, Cristo e Cultura, os calvinistas têm sido descritos como possuindo uma visão transformacionista da cultura. De acordo com Niebuhr, os calvinistas não são essencialmente contra a cultura, nem a recebem indiscriminadamente, não colocam a fé em um patamar acima da vida comum, nem mantém a fé e a vida comum em constante tensão. Eles se colocam como agentes transformadores da cultura. Autores modernos têm perpetuado essa leitura de Niebuhr e falado da importância de uma fé holítisca no engajamento cultural. Os proponentes dessa visão falam de ir além de envolvimento cultural. 1 Os cristãos devem trazer os efeitos da obra redentora de Cristo para as várias esferas da vida.
Precisamos de cautela para não sermos nem pessimistas demais, nem otimistas demais. Aos cristãos cabe o redirecionamento da cultura numa direção redentiva que a restaure, o máximo possível, dos efeitos do pecado. Isto não significa que nossa postura é de “transformação”, uma palavra otimista demais. Nossa atitude é de Reforma, participando dos movimentos de Deus em restaurar certas áreas da sociedade inclinada ao mal. Podemos ser instrumentos de Deus para frear a derrocada moral e espiritual como foram os reis de Judá que operaram Reforma após períodos de grande incredulidade e vileza (Ex: Asa, Ezequias, Josias). A Reforma Protestante do século 16, o Grande Despertamento na América colonial e Inglaterra do século 18, foram movimentos em que Deus freou a decadência de um povo e permitiu que certas áreas da sociedade fossem reformuladas segundo o padrão bíblico. A linguagem de Reforma impede que sejamos pessimistas quanto ao que Deus pode fazer neste mundo antes da segunda vinda de Jesus.
Todavia, para que não sejamos otimistas demais, faz-se necessário acrescentar ao tripé reformado um quarto pilar: o da consumação. Tal inclusão ajuda-nos a separar o “já” e o “ainda-não” da história da redenção. Isto é, a consumação é o completar da redenção, mas não é para esta vida e não é operada pela igreja. Se, por um lado, somos e devemos ser “sal da terra” (Mt 5.13) no sentido de contribuir para o retardamento da putrefação de nossa sociedade – esse aspecto está de acordo com a visão transformacionista –, por outro lado, a parábola do joio (Mt 13.24-30, 36-43) é uma demonstração de que a construção de uma sociedade com a consequente retirada do mal no mundo será uma realização de Deus por intermédio dos seus anjos (isto é, sem a participação do ser humano) e não ocorrerá nesta vida (como é o anseio de muitos seres humanos).
David VanDrunnen faz uma ressalva à visão transformacionista de representantes modernos como Henry R. Van Til (O Conceito Calvinista de Cultura), Cornelius Plantinga (O Crente no Mundo de Deus) e Albert M. Wolters (A Criação Restaurada). Ele chama atenção para um elemento preocupante da escatologia dos transformacionistas:
“Os autores transformacionistas tendem a colocar muita ênfase no caráter já manifesto do reino escatológico. Embora eles obviamente reconheçam que Cristo está voltando e que somente então é que todas as coisas serão perfeitamente restauradas, é curioso que a sua comum divisão tripartida da história em criação, queda, e redenção não inclua a quarta categoria de consumação. Lendo nas entrelinhas, eu sugiro que o relacionamento muito solto entre a transformação da cultura agora e a transformação final a ser realizada no retorno de Cristo contribua substancialmente para a ausência dessa quarta categoria… [Para eles] A obra de trazer a realização perfeita do reino escatológico na presente terra começa já nos esforços culturais do cristão aqui e agora. Consumação parece ser o clímax de um processo de redenção que já está a caminho ao invés de um evento único e radical na história.” 2
VanDrunnen acertadamente nos lembra do aspecto radical e único da consumação. Cristo não irá só completar o que começou. Ele irá mudar tudo radicalmente. Após o amor esfriar, a apostasia se alastrar, e este mundo ser permeado por um governo maligno, Deus irá eliminar todo o mal com fogo (2 Pe 3.10-13) e para o fogo (Ap 21.10) a fim de criar Novo Céu e Nova Terra.
A ênfase no envolvimento com a cultura, por parte dos transformacionistas, é positiva. Afinal, não fomos remidos para vivermos em um gueto cristão, nos relacionando somente com crentes, realizando tarefas eclesiásticas, criando uma cultura separatista. Porém, nós não fomos chamados para remir a cultura que, de acordo com a Escritura, tende a piorar devido à apostasia. Somos instrumentos para remir pessoas, isso sim. A mensagem de Paulo no Areópago não transformou a cultura de Atenas, mas alcançou pessoas. Só Deus, e isto na consumação, é que promoverá a extinção das culturas pecaminosas e a santificação dos costumes e do conhecimento humano. Só Deus conseguirá plena redenção da cultura.
Kevin DeYoung, avaliando a perspectiva missiológica da igreja moderna, afirma que o que “está faltando na maioria das conversas sobre o reino é alguma doutrina de conversão ou regeneração. O reino de Deus não é essencialmente uma nova ordem da sociedade. Isso era o que pensavam os judeus nos dias de Jesus… Creio que entendo o que as pessoas querem dizer quando falam sobre redimir a cultura ou ser parceiras de Deus na redenção do mundo, mas o fato é que precisamos encontrar outra palavra. A redenção já foi realizada na cruz. Não somos parceiros na redenção de nada. Somos chamados a servir, dar testemunho, proclamar, amar, fazer o bem a todos e embelezar o evangelho com boas obras, mas não somos parceiros de Deus na obra da redenção. De modo similar, não há um texto nas Escrituras que fale que os cristãos constroem o reino. Ao falar sobre o reino, o Novo Testamento usa verbos como entrar, buscar, anunciar, ver, receber, olhar e herdar… no Novo Testamento nunca somos aqueles que trazem o reino.” 3
Essa observação é muito perspicaz. O problema fundamental dessa tendência, de acordo com DeYoung, é que eles “estão repletos de ‘já’ e carentes de ‘ainda não’ em sua escatologia.” 4
Creio que o equilíbrio foi estabelecido pelo nosso Salvador nas parábolas do reino em Mateus 13. Se por um lado a parábola do joio nos apresenta uma redenção completada pelo Salvador sem a nossa participação, por outro lado temos as parábolas do grão de mostarda e do fermento (Mt 13.31-33) que falam do crescimento e da influência dos princípios do reino na sociedade. Não podemos ser extremados em nosso entendimento escatológico. Toda escatologia que enfatiza só o que Deus já fez, e está fazendo, produz uma cosmovisão ufanista demais. Toda escatologia que destaca o que Deus irá fazer na segunda vinda de seu Filho, sem levar em conta a redenção que se iniciou na primeira vinda, gera uma visão pessimista do crente no mundo. Precisamos de equilíbrio em nossa cosmovisão. Precisamos viver o “já” com vistas ao “ainda não”.
Notas:
1 – “De vez em quando os cristãos dizem que nosso alvo principal é mudar o indivíduo, não o sistema. O dualismo persiste: de algum modo nossa vida espiritual pode ser separada de nossa vida cultural, e isso significa que podemos trabalhar no sistema aceito.” Walsh e Middleton, A Visão Transformadora, p. 89. Essa forma de colocar o problema demonstra o espírito revolucionário de subverter o sistema, o qual é próprio dos autores.
2 – David Vandrunnen. “The Two Kindgoms: A Reassessment of the Transformationist Calvin”, Calvin Theological Journal 40, no. 2 (nov 2005), p. 252.
3 – Kevin DeYoung e Tedd Kluck, Por que amamos a igreja (São Paulo: Mundo Cristão, 2010), p. 50, 51.
4 – DeYoung e Kluck, Por que amamos a igreja, p. 40.