sábado, 23 de novembro
Home / Artigos / Teologia bíblica e crise de sexualidade

Teologia bíblica e crise de sexualidade

A sociedade ocidental experimenta, atualmente, o que pode se chamar de fato uma revolução moral. O código moral de nossa sociedade e a avaliação ética coletiva acerca de uma questão particular sofreram não apenas pequenos ajustes, mas uma completa inversão. O que antes era condenado, agora, é celebrado; e a recusa a celebrar, agora, é condenada.

O que torna a presente revolução sexual e moral tão diferente das revoluções morais anteriores é que ela está acontecendo a uma velocidade absolutamente sem precedentes. As gerações anteriores experimentaram revoluções morais ao longo de décadas, até mesmo séculos. A presente revolução está acontecendo à velocidade da luz.

À medida que a igreja responde a essa revolução, devemos nos lembrar de que os atuais debates acerca da sexualidade apresentam à igreja uma crise que é irredutível e inescapavelmente teológica. A crise é equivalente ao tipo de crise teológica que o gnosticismo apresentou à igreja primitiva, ou que o pelagianismo apresentou à igreja no tempo de Agostinho. Em outras palavras, a crise da sexualidade desafia o entendimento da igreja acerca do evangelho, do pecado, da salvação e da santificação. Advogados da nova sexualidade exigem uma completa reescrita da metanarrativa da Escritura, uma completa reordenação da teologia, uma mudança fundamental em como nós pensamos o ministério da igreja.

“Transgênero” está na concordância bíblica?

Textos-prova são a primeira reação de protestantes conservadores em busca de uma estratégia de resistência e reafirmação teológica. Essa reação hermenêutica ocorre naturalmente com os cristãos evangélicos porque nós cremos na Bíblia como a inerrante e infalível Palavra de Deus. Nós entendemos, como B.B. Warfield disse, que “quando a Escritura fala, Deus fala”. Eu devo deixar claro que essa reação não é inteiramente errada, mas também não é inteiramente certa. Não é inteiramente errada porque certas Escrituras (isto é, “textos-prova”) falam acerca de questões específicas de um modo direto e identificável.

Contudo, existem óbvias limitações a esse tipo de método teológico – o que eu gosto de chamar de “reação da concordância bíblica”. O que acontece quando você lida com uma questão teológica para a qual nenhuma palavra correspondente aparece na concordância? Muitas das questões teológicas mais importantes não podem ser reduzidas meramente a encontrar palavras relevantes e seus versículos correspondentes em uma concordância bíblica. Tente encontrar “transgênero” em sua concordância. Que tal “lésbica”? Ou “fertilização in vitro”? Elas certamente não estão no final da minha Bíblia.

Não é que a Escritura seja insuficiente. O problema não é uma falha da Escritura, mas uma falha de nossa abordagem da Escritura. A abordagem-concordância da teologia produz uma Bíblia rasa, sem contexto, sem aliança ou pacto, sem uma narrativa principal – três fundamentos hermenêuticos essenciais para entender a Escritura corretamente.

Uma teologia bíblica do corpo

A teologia bíblica é absolutamente indispensável para que a igreja molde uma resposta apropriada à presente crise sexual. A igreja precisa aprender a ler a Escritura de acordo com o seu contexto, envolta em sua narrativa principal e progressivamente revelada em linhas pactuais. Nós precisamos aprender a interpretar cada questão teológica por meio da metanarrativa bíblica da criação, queda, redenção e nova criação. Especificamente, os evangélicos precisam de uma teologia do corpo que esteja ancorada no próprio desvelar do drama da redenção ao longo da Bíblia.

Criação

Gênesis 1.26-28 indica que Deus criou o homem – diferentemente do resto da criação – à sua própria imagem. Essa passagem também demonstra que o propósito de Deus para a humanidade era uma existência corporal. Gênesis 2.7 também enfatiza esse ponto. Deus criou o homem do pó da terra e, depois, soprou nele o fôlego de vida. Isso indica que éramos corpo antes de sermos pessoa. O corpo, como se vê, não é incidental à nossa personalidade. Adão e Eva recebem a comissão de multiplicarem-se e sujeitarem a terra. Os seus corpos lhes permitem, pela criação de Deus e por seu plano soberano, cumprirem aquele mandato como portadores da imagem divina.

A narrativa de Gênesis também sugere que o corpo vem com necessidades. Adão sentiria fome, então Deus lhe deu o fruto do jardim. Essas necessidades revelam, no bojo da ordem criada, que Adão é um ser finito, dependente e derivado.

Além disso, Adão teria a necessidade de companhia, então Deus lhe deu uma esposa, Eva. Tanto Adão como Eva deveriam cumprir o mandato de multiplicar-se e encher a terra com portadores da imagem divina, mediante o uso apropriado das habilidades reprodutivas com as quais foram criados. Ligado a isso está o prazer corporal que ambos experimentariam ao se tornarem uma só carne – isto é, um só corpo.

A narrativa de Gênesis também demonstra que o gênero é parte da bondade da criação de Deus. Gênero não é meramente uma construção sociológica imposta a seres humanos que, de outro modo, poderiam negociar um número indefinido de permutas.

Ao contrário, Gênesis nos ensina que o gênero é criado por Deus para o nosso bem e para a sua glória. O gênero é planejado para o florescimento humano e é estabelecido pela determinação do Criador – assim como ele determina quando, onde e que nós devemos existir.

Em suma, Deus criou sua imagem como uma pessoa corpórea. Como seres corpóreos, recebemos do próprio Deus o dom e a mordomia da sexualidade. Nós somos feitos de um modo que testifica os propósitos de Deus a esse respeito.

Gênesis também molda toda essa discussão em uma perspectiva pactual. A reprodução humana não é simplesmente para propagar a raça. Em vez disso, a reprodução enfatiza que Adão e Eva devem multiplicar-se a fim de encher a terra com a glória de Deus refletida nos portadores de sua imagem.

Queda

A queda, o segundo movimento na história da redenção, corrompe a boa dádiva divina do corpo. A entrada do pecado traz a mortalidade ao corpo. Em termos de sexualidade, a Queda subverte os bons planos de Deus para a complementaridade sexual. O desejo de Eva é de dominar o seu marido (Gênesis 3.16). A liderança de Adão será cruel (3.17-19). Eva experimentará dor ao dar à luz filhos (3.16).

As narrativas que seguem demonstram o desenvolvimento de práticas sexuais aberrantes, desde a poligamia até o estupro, as quais a Escritura aborda com notável franqueza. Esses relatos em Gênesis são seguidos pela entrega da Lei, a qual é planejada para refrear o comportamento sexual aberrante. Ela regula a sexualidade e as expressões de gênero ao fazer pronunciamentos claros acerca da moralidade sexual, travestismo[1], divórcio e uma miríade de outras questões corporais e sexuais.

O Antigo Testamento também associa o pecado sexual à idolatria. Adoração por meio de orgias, prostituição cultual e outras horrendas distorções da boa dádiva divina do corpo são todas vistas como parte da adoração idólatra. As mesmas associações são feitas por Paulo em Romanos 1. Havendo mudado “a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis” (Romanos 1.23), e havendo mudado “a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador” (Romanos 1.25), homem e mulher mudaram suas relações naturais um com o outro (Romanos 1.26-27).

Redenção

No tocante à redenção, precisamos notar que um dos mais importantes aspectos de nossa redenção é que ela vem por meio de um Salvador com um corpo. “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (João 1.14; cf. Filipenses 2.5-11). A redenção humana é realizada pelo Filho de Deus encarnado – que permanece encarnado eternamente.

Paulo indica que esta salvação inclui não meramente a nossa alma, mas também o nosso corpo. Romanos 6.12 fala do pecado que reina em nosso “corpo mortal” – o que implica a esperança da futura redenção corporal. Romanos 8.23 indica que parte de nossa esperança escatológica é a “redenção do nosso corpo”. Mesmo agora, em nossa vida de santificação, nós somos ordenados a apresentar o nosso corpo como um sacrifício vivo a Deus, em adoração (Romanos 12.1). Além disso, Paulo descreve o corpo redimido como um templo do Espírito Santo (1Coríntios 6.19) e, claramente, devemos entender a santificação como tendo efeitos sobre o corpo.

A ética sexual no Novo Testamento, assim como no Antigo, regula as nossas expressões de gênero e sexualidade. Porneia, a imoralidade sexual de qualquer espécie, é categoricamente condenada por Jesus e os apóstolos. Semelhantemente, Paulo claramente indica à igreja de Corinto que os pecados sexuais – pecados cometidos no corpo (1Coríntios 6.18) – são o que traz má reputação à igreja e ao evangelho, porque proclamam ao mundo que nos observa que o evangelho não possui qualquer eficácia (1Coríntios 5-6).

Nova criação

Finalmente, chegamos ao quarto e último ato do drama da redenção – a nova criação. Em 1Coríntios 15.42-57, Paulo nos aponta não apenas a ressurreição de nosso próprio corpo na nova criação, mas também o fato de que a ressurreição corporal de Cristo é a promessa e o poder dessa esperança futura. Nossa ressurreição será a experiência da glória eterna, no corpo. Esse corpo será uma continuação transformada e consumada da nossa existência corporal presente, do mesmo modo como o corpo de Jesus é o mesmo corpo que ele possuía na terra, embora absolutamente glorificado.

A nova criação não será simplesmente uma recomposição do jardim. Será melhor do que o Éden. Como Calvino observou, na nova criação, nós conheceremos a Deus não apenas como Criador, mas como Redentor – e essa redenção inclui nosso corpo. Reinaremos com Cristo corporalmente, assim como ele também está reinando corporalmente como o Senhor do cosmo.

Em termos de nossa sexualidade, embora o gênero permaneça na nova criação, o mesmo não ocorrerá com a atividade sexual. Não é que o sexo seja nulificado na ressurreição; em vez disso, ele é cumprido. A ceia escatológica de casamento do Cordeiro, para a qual o casamento e a sexualidade apontam, terá finalmente chegado. Nunca mais haverá qualquer necessidade de encher a terra com portadores da imagem divina, como era o caso em Gênesis 1. Em vez disso, a terra estará cheia do conhecimento da glória de Deus, como as águas cobrem o mar.

A indispensabilidade da teologia bíblica

A crise da sexualidade tem demonstrado o fracasso do método teológico adotado por muitos pastores. A “reação da concordância” simplesmente não pode alcançar o tipo de pensamento teológico rigoroso que se exige nos púlpitos hoje. Pastores e igrejas devem aprender a indispensabilidade da teologia bíblica e devem praticar a leitura da Escritura de acordo com a sua própria lógica interna – a lógica de uma história que se move da criação para a nova criação. A tarefa hermenêutica diante de nós é imensa, mas é também indispensável para um fiel engajamento evangélico com a cultura.

Notas:

[1]: N.T.: Usar roupas do sexo oposto.

 

Tradução: Vinícius Silva Pimentel
Revisão: Vinícius Musselman Pimentel


Autor: Albert Mohler Jr.

Albert Mohler Jr. é reconhecido como um dos líderes mais influentes dos Estados Unidos pelas revistas Time e Christianity Today. Possui um programa no rádio que é transmitido em mais de 80 estações em todo o país. É presidente da escola mais importante da Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos, a Southern Baptist Theological Seminary.

Parceiro: 9Marks

9Marks
O ministério 9Marks tem como objetivo equipar a igreja e seus líderes com conteúdo bíblico que apoie seu ministério.

Ministério: Ministério Fiel

Ministério Fiel
Ministério Fiel: Apoiando a Igreja de Deus.

Veja Também

pregação expositiva

A idolatria à pregação expositiva e a falta de oração

Veja neste trecho do Episódio #023 do Ensino Fiel os perigos da frieza espiritual e idolatria a conceitos, como por exemplo, à pregação expositiva.