De tempos em tempos, encontramos uma pessoa pela primeira vez e descobrimos que ela declara ser crente. Se conversarmos por algum tempo com ela a respeito das coisas espirituais, surgirão alguns assuntos doutrinários. Embora muitos evangélicos afirmem que doutrina não é importante, sempre me admiro de que certos assuntos doutrinários surgem inevitavelmente. Uma das perguntas que os crentes me fazem com freqüência é esta: “Você crê na segurança eterna?” Quando tenho certeza de que a pessoa envolvida no dialogo é um arminiano, gosto de brincar um pouco com ela. “Oh! não!”, eu respondo, “eu não creio na segurança eterna”. Um semblante de alívio se estampa na face de meu amigo, quando respondo isso. Então, eu digo logo: “Mas eu creio na perseverança dos santos”. Aquela face se transforma rapidamente em um semblante de espanto que causa a próxima pergunta: “Qual é a diferença?” Isso me dá condições de falar não somente sobre a doutrina da perseverança, mas também sobre tudo o que se relaciona com a doutrina da graça.
O tema da perseverança dos santos não é apenas um assunto de interesse acadêmico. Discutir esse tema não se limita àqueles que manifestam apenas interesse teórico em doutrinas. Todo aquele que professa o nome de Jesus Cristo se deparará, em alguma ocasião, com o assunto da apostasia ou do abandono da fé. Todo crente enfrentará, em determinado momento, perguntas a respeito de o crente perder ou não a salvação. Essas perguntas podem resultar não somente de debates teológicos; podem surgir por causa de alguma coisa que deixa o crente preocupado com o estado de sua alma. Por isso, consideraremos este assunto de suprema importância.
Para entendermos corretamente a doutrina da perseverança dos santos, precisamos entender que esta doutrina não subsiste por si mesma. É uma parte dos Cânones de Dort, chamados “Os Cincos Pontos do Calvinismo”. Todas as cinco doutrinas subsistem juntas; estão inseparavelmente unidas uma à outra. Argumentar sobre a doutrina da perseverança dos santos não levando em conta as doutrinas relacionadas da Depravação Total, Eleição Incondicional, Expiação Limitada e Graça Irresistível significa perder tempo procurando convencer outra pessoa de algo que não fará sentido à parte desta conexão.
É especialmente importante ver a doutrina da perseverança dos santos em sua conexão com a doutrina da eleição incondicional. O apóstolo mostrou, com clareza, essa conexão em 2 Tessalonicenses 2.13-14: “Entretanto, devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados pelo Senhor, porque Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verdade, para o que também vos chamou mediante o nosso evangelho, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo”. Nesta passagem, Paulo revela a conexão entre o ser escolhido (eleição incondicional) e a salvação final (perseverança dos santos).
Quando Paulo afirmou que Deus escolhera os tessalonicenses “desde o princípio”, ele estava expressando o mesmo sentimento que transmitira aos crentes de Éfeso, ao dizer: “Assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo” (Ef 1.4). Paulo fez uma afirmação semelhante em 2 Timóteo 1.9, declarando que Deus nos estendeu sua graça “antes dos tempos eternos”. Estas declarações se referem à eterna escolha de Deus, para salvar um povo para Si mesmo. Deus havia resolvido designar à eterna graça e glória certas pessoas de uma raça humana caída e pecaminosa. Esta resolução de Deus se fundamenta em sua vontade soberana e em seu beneplácito, glorificando a glória de sua graça.
Esta resolução eterna — a eleição incondicional de certas pessoas por parte de Deus — tem como seu alvo final a salvação daqueles que Ele escolheu. Assim, Paulo declarou em 2 Tessalonicense 2.13: “Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação”. No versículo 14, ele disse: “Para o que também vos chamou mediante o nosso evangelho, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo”. A escolha de Deus não foi temporária. Não foi uma escolha que Deus revoga quando um dos eleitos comete pecado. Deus planejou que a salvação do homem ocorra de acordo com a sua vontade soberana, e não de acordo com o bem ou o mal praticado pelo homem. Ele agiu especificamente assim para que a salvação chegue à sua consumação.
Então, como esta idéia difere do conceito moderno de “segurança eterna”, ocasionalmente chamada “uma vez salvo, sempre salvo”? Nesse paradigma de pensamento, a perseverança dos santos é a única das doutrinas da graça com o qual alguém concordaria. No entanto, quando corretamente entendida, até essa doutrina produziria discordância. O conceito moderno de “segurança eterna” afirma que uma pessoa pode confessar a fé em Cristo e, não importando como ela vive depois da confissão, ainda que vire as costas para Deus, ela será salva no final. Uma pessoa pode ser um crente e, apesar disso, não ter desejo de ler a Bíblia, orar, crescer na fé, ter comunhão na igreja, etc. Alguns se referem a tal pessoa chamando-a de “crente carnal”.
Mas o ensino de Paulo em 2 Tessalonicenses 2.13-14 é muito diferente. Ele não somente declara a graça eletiva de Deus e seu alvo final: a perseverança dos santos, mas também revela os meios pelos quais Deus realiza essa perseverança. De acordo com Paulo, Deus realiza essa salvação final por meio da “santificação do Espírito e fé na verdade”. A santificação do Espírito é a obra do Espírito Santo pela qual Ele nos separa como propriedade de Deus. O Espírito de Deus transmite a vida de Deus à alma na obra de regeneração. De acordo com a promessa da Nova Aliança, o Espírito Santo inscreve as leis de Deus em nosso coração. Ele opera em nós a santidade interior, fixando as afeições de nosso coração nas coisas de Deus. Conseqüentemente, isto prova a falsidade da afirmação de que a doutrina da perseverança dos santos leva à libertinagem. A conexão desta doutrina com a da eleição fornece uma santidade autêntica e prática na vida daquele que é nascido de Deus.
Aquilo que Paulo chama de “fé na verdade” é transmitido àquele que é nascido de Deus . Isto não é um mero assentimento intelectual dos fatos do evangelho. Esta fé na verdade é uma aceitação fervorosa da verdade do evangelho, um recebimento do amor da verdade. Em esperança, a alma vem a Cristo, por ter percebido a sua miséria sem a regeneração. Isto é, conforme gostamos de dizer, “um dom que continua a ser dado”. À medida que o Espírito continua a obra da santificação iniciada na regeneração, a fé, sem a qual a santificação é impossível, continua a crescer. A idéia de que uma pessoa pode crer de modo salvífico e parar de crer é estranha à maneira de pensar de Paulo nesta passagem.
Tanto a fé como a santidade são necessárias à nossa salvação final. “Sem fé é impossível agradar a Deus” (Hb 11.6). “Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hb 12.14). Contudo, a fé e a santificação não são a causa, e sim o efeito, de nossa eleição; e Deus as designou como meios de nossa perseverança. Nossa eleição para a salvação, por parte de Deus, assegura a nossa permanência na santidade e na fé.
Como avaliamos aqueles que confessam ser verdadeiros crentes, mas abandonam a fé ou mostram por sua conduta que não são verdadeiros crentes? Isto não é incomum, mesmo na experiência dos apóstolos. Aqueles que pregaram o evangelho em Samaria ficaram tão convencidos da conversão de Simão, o mago, que o batizaram. Todavia, quando Simão pediu a Pedro e a João que lhe vendessem o poder do Espírito Santo, Pedro lhe respondeu: “O teu dinheiro seja contigo para perdição… Não tens parte nem sorte neste ministério, porque o teu coração não é reto diante de Deus” (At 8.20-21). Três vezes Paulo menciona um homem chamado Demas. Paulo o chama de cooperador em Filemom 24 e envia saudações de Demas à igreja de Colossos (Cl 4.14). Entretanto, numa afirmação pungente, em 2 Timóteo 4.10, Paulo escreve: “Demas, tendo amado o presente século, me abandonou e se foi para Tessalônica”. Como explicamos esses afastamentos da fé. Todos já ouvimos histórias semelhantes de pessoas que pareciam ser crentes fortes e que, por uma razão ou outra, não andam mais na fé. Eram crentes, porém agora não são mais? Possuíam a vida eterna e não a possuem mais?
Duas passagens das Escrituras falam primariamente sobre este dilema. Jesus mesmo abordou este assunto em Mateus 7.21-23. Ele deixou bem claro que muitos parecem ser crentes. Conhecem a linguagem correta, ou seja: “Senhor, Senhor”. Aprenderam como se comportar de modo que os outros os aceitem como verdadeiros crentes. Aprenderam a profetizar (pelo menos, da maneira que muitos homens aceitam). Aprenderam a realizar sinais e maravilhas, de modo que muitos jamais ousariam duvidar da realidade de sua fé. Apesar disso, algo está gravemente errado. Para essas pessoas, em contraste com a aprovação que podem receber dos homens, Jesus disse: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade”. O que estava errado, para que Jesus pronunciasse esse veredicto?
A última palavra de Jesus no versículo 23, “iniqüidade”, nos dá a chave para o dilema, especialmente quando unida com a sua afirmativa de que no reino dos céus entrarão aqueles que fazem “a vontade de meu Pai, que está nos céus”. Fazer a vontade do Pai não é nada menos do que um amor e uma obediência fiel para com a lei de Deus como regra de vida. Há muitos que professam o nome de Cristo e não têm qualquer amor para com a lei de Deus. Eles consideram-na uma restrição à sua suposta “liberdade”. Especialmente no evangelicalismo moderno, existem muitos que colocam os sinais e maravilhas como evidência da fé salvífica no lugar do amor e da obediência à lei de Deus, os quais as Escrituras apresentam como evidência da fé salvífica. Eles corrompem ou ignoram a lei de Deus em sua maneira de pensar e em seu viver. Conseqüentemente, não devemos ficar surpresos quando alguns são descobertos como pessoas que têm vidas caracterizadas por imoralidade e licenciosidade. Como Jesus afirmou, eles praticam a iniqüidade. Com todo o seu profetizar e realizar sinais e maravilhas, eles não fazem a vontade do Pai, que está nos céus. Não podem dizer como Davi: “Quanto amo a tua lei! É a minha meditação, todo o dia!”(Sl 119.97.) Também não compartilham do sentimento do apóstolo João, que diz: “Os seus mandamentos não são penosos” (1 Jo 5.3). Não compartilham deste sentimento porque o coração deles ainda não é regenerado. Jesus não disse:
“Eu vos conhecia; agora não vos conheço mais”. Em vez disso, Ele afirmou: “Nunca vos conheci”.
John Gill, escrevendo em seu comentário sobre esta passagem, observou: “Há muitos que desejam ser chamados e considerados crentes. Estes fazem menção do nome de Cristo em seus sermões, somente para se livrarem de seu opróbrio, cobrirem-se, obterem a honra das pessoas, conquistarem a afeição e a aceitação delas; mas não têm amor sincero por Cristo, nem a fé verdadeira nEle. O interesse deles não é pregar o evangelho de Cristo, promover a glória dEle, expandir seu reino e seus interesses. O principal alvo deles é agradar os homens, engrandecer a si mesmos e estabelecer o poder da natureza humana, em oposição à graça de Deus e à justiça de Cristo”. Embora as boas obras sejam resultado da fé salvadora, elas não são boas a menos que sejam feitas com base na fé em Cristo e no desejo pela glória dEle. Uma pessoa pode simular boas obras, assim como alguém pode falsificar dinheiro. Gill prossegue afirmando que fazer a vontade do Pai “denota não apenas a obediência externa para com a vontade de Deus, declarada em sua lei, nem simplesmente a sujeição às ordenanças do evangelho. Denota, em especial, a fé em Cristo para a vida e a salvação, que é a fonte de toda obediência verdadeiramente evangélica e sem a qual nada é aceitável a Deus”.
O apóstolo João também aborda esta questão em 1 João 2.18-19: “Filhinhos, já é a última hora; e, como ouvistes que vem o anticristo, também, agora, muitos anticristos têm surgido; pelo que conhecemos que é a última hora. Eles saíram de nosso meio; entretanto, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos”. João fala com muita severidade sobre aqueles que pareciam ser crentes mas haviam abandonado a igreja e a fé. Ele os chama de “anticristos”. Exteriormente, a vida dessas pessoas eram tais que a igreja as aceitou como verdadeiros crentes. No mínimo, parecia não haver qualquer pecado notório que os identificasse como incrédulos. Mas João observa: “ Eles saíram de nosso meio”. Apostataram da igreja e da fé.
João deixa claro que esta apostasia não é uma questão de alguém ter a fé salvadora e, depois, perdê-la e abandoná-la. A apostasia é uma questão de alguém professar a fé e não ter a realidade a fé salvadora. Ele afirma que tais pessoas saíram do meio da igreja porque não eram “dos nossos”. A. T. Robertson observa que João usa o termo “dos nossos” no sentido de origem. A vida e o espírito dessas pessoas não era da mesma origem da vida daqueles que tinham a fé salvadora. Robertson acrescenta que não havia qualquer comunhão interior e, por fim, eles romperam a comunhão exterior.
Assim como no caso daqueles a respeito dos quais Jesus falou, não havia nestes uma realidade interior que coincidia com a confissão exterior. João prossegue e declara a situação deles com mais veemência: “Se tivessem sido dos nossos [no sentido de origem de sua vida espiritual], teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos”. Por fim, Deus trouxe, em sua providência, circunstâncias que forçaram esses falsos crentes a se manifestarem. Deus os forçou a agir de modo que uma distinção clara apareceria entre os que tinham a verdadeira fé salvadora e os que eram apenas crentes falsos.