Este artigo faz parte da série Versículos-chave.
Todas as seções de comentários adaptadas da Bíblia de Estudo da Fé Reformada com Concordância, Editora Fiel.
A Deidade de Cristo
Para ser cristão, faz-se necessário exercer fé na deidade de Cristo. Esse é um aspecto essencial do evangelho de Cristo, no Novo Testamento. Todavia, em cada século, a Igreja tem sido forçada a lidar com pessoas que reivindicam ser cristãs enquanto continuam negando ou distorcendo a deidade de Cristo.
No Concílio de Niceia, em 325 d.C., a Igreja, em oposição à heresia ariana, declarou que Jesus é gerado, e não feito, e que sua natureza divina é da mesma essência (homoousios) do Pai. Essa afirmação declarava que a segunda pessoa da Trindade é una em essência com Deus, o Pai. Ou seja, o “ser’ de Cristo é o ser de Deus. Ele não é meramente semelhante à Deidade; ele é Deidade.
A confissão da deidade de Cristo é extraída do múltiplo testemunho do NT. Como o Logos encarnado, Cristo é revelado não só como preexistente à Criação, mas também como, eterno. Lemos que ele estava no princípio com Deus e também que ele é Deus (Jo 1.1-3). O fato de que ele está com Deus demanda uma distinção de pessoa dentro da Divindade; o fato de que ele é Deus, por sua vez, demanda inclusão na Divindade.
Em outros lugares, o NT atribui termos e títulos a Jesus que são claramente títulos da deidade. Deus lhe outorga o preeminente título divino de Senhor (Fp 2.9-11). Como o Filho do Homem, Jesus afirma ser Senhor do Sábado (Mc 2.28) e ter autoridade para perdoar pecados (Mc 2.1-12). Ele é chamado o “Senhor da glória” (Tg 2.1) e, espontaneamente, recebe louvor, como quando Tomé confessa: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20.28).
Paulo declara que a plenitude da Deidade habita corporalmente em Cristo (Cl 1.19) e que Jesus é mais elevado que os anjos, um tema reiterado no livro de Hebreus. Cultuar um anjo, ou qualquer outra criatura, não importa quão exaltada seja, equivale a violar a proibição bíblica contra a idolatria. O Eu Sou do evangelho de João também dá testemunho da identificação de Cristo com a Deidade.
No quinto século, o Concílio de Calcedônia (451 d.C.) afirmou que Jesus era verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus. Afirmou-se que as duas naturezas de Jesus, a humana e a divina, não se misturam, não se confundem, nem se separam ou se dividem.
1. João 6.35
Declarou-lhes, pois, Jesus: Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que rê em mim jamais terá sede.
A afirmação “Eu sou o pão da vida” é a primeira das sete afirmações “Eu sou” no evangelho de João (8.12; 9.5; 10.7, 9, 11, 14; 11.25; 14.6; 15.1, 5). A expressão recua a Êxodo 3.14 e é uma reivindicação implícita à deidade (4.26; 6.20; 8.58, 59 e notas).
2. João 14.6–11
Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e na vida; ninguém vem ao Pai senão por mim. Se vós me tivésseis conhecido, conheceríeis também a meu Pai. Desde agora o conheceis e o tendes visto. Replicou-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta. Disse-lhe Jesus: Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai? Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas obras. Crede-me que estou no Pai, e o Pai, em mim; crede ao menos por causa das mesmas obras.
A confusão de Tomé acerca do destino e da rota de Jesus em sua partida propicia outro pronunciamento de Jesus para o “Eu sou” – o caminho. Ele está indo para o Pai (v. 12), e ele é o único “caminho” pelo qual alguém pode chegar a Deus (Mt 11.27; Hb 10.19-22).
Não uma mera existência como esta, mas a existência em cumprimento do desígnio de Deus, no sentido de que nós seríamos seu templo vivo (1.4).
“Senão por mim” é uma afirmação forte de que unicamente Cristo é o caminho da salvação. O ato de imaginar e proclamar outros caminhos equivale a confundir as pessoas e esquecer a necessidade de sua vinda e redenção (At 4.12; Rm 10.14, 15; 1Jo 5.12).
Todas as bênçãos previamente mencionadas estão sumariadas no conhecimento de Deus – “se me tivésseis conhecido” –, o qual é mais que mera apreensão mental, visto que envolve uma relação pessoal de compromisso irrestrito.
O pedido de Filipe – “mostra-nos o Pai” – revela outra incompreensão (v. 5), um tema que domina o evangelho (2.21, nota), porém abre a via para seguir a articulação da capacidade única de Jesus, no sentido de revelar Deus, o Pai.
Jesus não está negando a distinção de pessoas em Deus – “quem me vê a mim vê o Pai”. Ele está lembrando Filipe de que ele é o único que revela o Pai (Hb 1.3; 2Co 4.4-6).
A expressão “eu estou no Pai e que o Pai está em mim” revela a habitação recíproca anunciada em 10.38 e aqui desenvolvida, bem como no v. 20 e outra vez em 17.21. Três grandes unidades são proclamadas na Escritura: a unidade das três pessoas da Trindade; a unidade das naturezas divina e humana de Cristo; e a unidade de Cristo e seu povo na redenção. Sobre a habitação mútua das três pessoas da Trindade, ver nota em 10.38.
Para as multidões incrédulas, Jesus apelava para o testemunho confirmatório das obras poderosas que Deus lhe dera para fazer – “por causa das mesmas obras” – (10.25, 26, 37, 38). Agora, para seus discípulos de corações atribulados e confusos, ele aponta aquelas mesmas obras com o fim de reforçar sua fé. Ver nota teológica “Milagres”, na p. 532.
3. João 8.56–59
Abraão, vosso pai, alegrou-se por ver o meu dia, viu-o e regozijou-se. Perguntaram-lhe, pois, os judeus: Ainda não tens cinquenta anos e viste Abraão? Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade eu vos digo: antes que Abraão existisse, Eu Sou. Então, pegaram em pedras para atirarem nele; mas Jesus se ocultou e saiu do templo.
Abraão viu o dia de Cristo quando abraçou com fé as muitas promessas que lhe foram dadas por Deus, promessas que demandavam a vinda de Cristo para que fossem cumpridas. Visto que
o contexto da discussão tem sido Satanás como homicida e Jesus como aquele cuja morte liberta da morte, isso pode aludir especialmente à provisão divina do carneiro como substituto quando Abraão estava pronto a sacrificar Isaque. Essa afirmação mostra claramente que, mesmo nos tempos do AT, os crentes eram salvos pela fé em Cristo, o qual lhes foi apresentado nas sombras e nos tipos dados por Deus para revelar seu plano redentor (cf. At 4.12; Hb 10.1-18).
Jesus já se aproximava dos trinta anos quando a afirmação – “cinquenta anos” – foi feita (Lc 3.23).
A expressão “antes que Abraão existisse, Eu Sou” – trata-se de uma referência clara à eterna preexistência de Jesus. Visto que esse é um atributo exclusivo de Deus, este texto é uma afirmação contundente da deidade de Jesus. O tempo presente do verbo pressupõe o eterno presente da eternidade de Deus. “Eu Sou” é também uma reminiscência do nome de Deus em Êxodo 3.14 (vv. 24, 28, nota).
Evidentemente, os judeus reconhecem que Jesus está reivindicando ser Deus, porém não aceitam essa reivindicação, uma vez que a veem como uma blasfêmia e, nesse caso, o que a lei requeria era apedrejamento – “pegaram em pedras” – (Lv 24.16; cf. Jo 10.31; Mt 26.65).
4. Filipenses 2.5–7
Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana.
O versículo 5 conecta as exortações (vv. 1-4) com o hino a respeito de Cristo (vv. 6-11). Dirigindo-se ao orgulho que está na raiz da discórdia dos filipenses (1.27–2.4), Paulo mostra Cristo como o supremo exemplo de humildade. Mas Cristo é não somente um exemplo (Rm 15.1-3; 2Co 10.1); ele é, antes e acima de tudo, Senhor e Salvador (v. 11; 3.20).
Esse “Hino para Cristo” (vv 6-11) pode ser dividido em seis estrofes. As três primeiras (vv. 6-8) celebram a humilhação de Cristo, enquanto as três últimas (vv. 9-11) celebram sua exaltação.
A palavra “forma” – “em forma de Deus” – refere-se à realidade subjacente, e não à aparência. Ser Jesus na “forma de Deus” significa que ele é divino, como o ato de assumir a “forma de servo [escravo]” envolveu o ato de abraçar humildemente essa identidade em sua encarnação (v. 7).
Essa figura de linguagem – “não julgou como usurpação” – significa que algo desejável era realmente possuído, mas Cristo não o utilizou em vantagem pessoal. Ao contrário de Adão no jardim, Cristo não tentou tornar-se Deus, nem se aproveitou dos privilégios que sempre foram dele, movido por interesse próprio.
Não se diz que Cristo removeu de si mesmo ou sua deidade ou sua identidade como Deus. Em vez disso, o Filho de Deus acrescentou à sua pessoa a natureza humana, sem renunciar a qualquer de seus atributos divinos. A expressão – “a si mesmo se esvaziou” – significa que ele humilhou a si mesmo (v. 8), não perdendo seu ser divino, mas abraçando desonra ao se tornar humano. O caráter de seu “autoesvaziamento” é definido em três expressões que se seguem (“assumindo… tornando-se… reconhecido em”). Ver Introdução: História de Interpretação e nota teológica “A Humanidade de Cristo”, na p. 2279.
“A forma de servo” – ou seja, de um escravo. Essa linguagem expressa vividamente a disposição de Cristo em se privar do gozo da glória de seu status e identidade divinos (v. 6, nota). Embora continuasse a ter essa glória, chegando até mesmo a revelar seu esplendor aos discípulos de vez em quando (por exemplo, Mt 17.1-8), Cristo a ocultou em carne humana durante seu ministério terreno, a fim de salvar seu povo dos pecados deles.
“Em semelhança de homens” – Cristo é verdadeiramente humano. “Semelhança” significa mais do que similaridade. Para morrer (v. 8), ele tinha de ser completamente humano. Ao mesmo tempo, Paulo faz uma distinção importante entre Cristo e outros seres humanos. De uma forma diferente deles, Cristo não tem pecado (2Co 5.21; cf. Rm 8.3). E, no que diz respeito à sua natureza divina, ele permanece transcendente sobre a realidade criada. Não pode e não deixará de ser uma pessoa divina, com uma natureza divina, mesmo em sua humilhação.
A aparência de Cristo como homem – “em figura humana” – não era uma ilusão. Ele se revelou por meio de uma natureza humana genuína e completa, unida com sua natureza divina em uma única pessoa. Ele possui todos os atributos essenciais da humanidade, embora, diferentemente de nós, nunca tenha pecado (cf. 1Pe 2.21-25).
5. Colossenses 1.15–20
Este é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado opor meio dele e para ele. Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste. Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as coisas ter a primazia, porque aprouve a Deus que, nele, residisse toda a plenitude e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus.
Paulo irrompe em doxologia à grandeza de Deus e à glória de Jesus Cristo. Alguns acreditam que Ao mostrar a supremacia de Cristo, tanto na Criação (vv. 15-17) como na Redenção (vv. 18-20), Paulo ressalta o que faltava no falso ensino de Colossos: um ponto de vista inadequado sobre a pessoa e a obra de Cristo. Ao explicar Jesus Cristo dessa maneira, Paulo convida seus leitores a adorarem o Filho de Deus.
Para Paulo, crer na divindade de Cristo (2.9, 10; Rm 9.5; Fp 2.6; Tt 2.13) é prático. Como Cristo é Deus por natureza, ele revela o Deus – “imagem do Deus invisível” – que, de outro modo, seria invisível (1Tm 1.17; 6.16). Um pensamento semelhante se encontra em João 1.1-18 e Hebreus 1.3. Em seu comentário sobre Colossenses 1.15, João Calvino observa que “devemos ser cuidadosos em não procurar Deus em qualquer outra fonte, senão em Cristo, pois, sem Cristo, tudo que se apresenta a nós em nome de Deus é um ídolo”.
Paulo não está dizendo que o Filho foi o primeiro a ser criado – “o primogênito de toda a criação” – (v. 17, nota). No Antigo Testamento, um primogênito era o principal herdeiro de um patrimônio (Dt 21.17; cf. Êx 4.22), e a palavra é usada metaforicamente para expressar a preeminência de Davi e sua dinastia entre os reis das nações (Sl 89.27). Usada a respeito de Cristo, a palavra “primogênito” lhe atribui supremacia, honra e dignidade — ele é o Davi mais elevado e o principal herdeiro do Pai. Cristo é especialmente amado por seu Pai (v. 13), e todas as coisas foram criadas nele, por ele e para ele (vv. 16, 17).
“Tudo foi criado por meio dele e para ele” – porque Cristo é tanto o agente como o alvo da Criação, ele é o Senhor de tudo que existe, até mesmo da hierarquia angelical que os colossenses estavam sendo tentados a aplacar ou reverenciar (2.18, nota).
Uma reafirmação forte da prioridade temporal e da importância universal de Cristo, este versículo torna explícito o que estava implícito no v. 16. Cristo existia desde antes de toda a Criação. Ele mesmo é, portanto, não criado. Não se pode dizer, como disseram posteriormente os seguidores de Ário (c. 250–336 d.C.), que “houve um tempo em que Cristo não existia”. O pensamento de que Jesus é, a cada momento, o Sustentador do universo, cujo poder unificador faz a ordem criada se manter coesa, é ecoado em Hebreus 1.2, 3.
1.18 cabeça do corpo, da igreja. Usando esse tema da segunda seção do hino, Paulo explica posteriormente a figura em Efésios 1.21-23 e desenvolve suas implicações em Efésios 4.15 e 5.23.
A ressurreição de Jesus marca o começo de uma nova Criação (3.10, nota; cf. 2Co 5.17; Gl 6.15). Por ser o primeiro a ressuscitar dos mortos, para nunca morrer de novo (At 26.23), Cristo inaugura a nova Criação e a nova época predita pelos profetas do Antigo Testamento (At 2.29-36; 13.32-35), fundando em si mesmo uma nova humanidade. Sua própria ressurreição é uma antecipação e uma garantia da ressurreição que todos os seus irmãos e suas irmãs gozarão (Rm 8.29; 1Co 15.20-28; Hb 1.6; 12.23).
Sem depreciar a glória que o Filho preexistente tinha com o Pai, o Novo Testamento ensina que a ressurreição de Cristo define, para ele, uma nova e mais elevada posição e autoridade – “para… a primazia” –, ganhando para ele um nome ainda mais sublime, agora como o Messias encarnado, obediente e exaltado (At 13.33, 34; Rm 1.4; Ef 1.20-23; Fp 2.1-11; Hb 1.4, 5). Em virtude de sua ressurreição dos mortos, Jesus Cristo é demonstrado como o Senhor do universo, que foi criado por ele, que ele sempre sustentou e agora redimiu. Porque Jesus é verdadeira e plenamente Deus, morreu e ressuscitou dos mortos em nossa natureza, é totalmente suficiente para a salvação dos pecadores.
Paulo (ou o hino que ele está citando) usa palavras de Salmos 68.16, que descrevem a preeminência do monte Sião como o lugar do santuário do Antigo Testamento (ver Êx 40.34; 1Rs 8.11). Cristo é a plenitude desse templo (Jo 2.19-22), e a plenitude da presença de Deus nele refuta toda afirmação de que o acesso superior a Deus pode ser obtido por qualquer outro caminho (ver 2.4, 8, 18, 20-23).
A Queda da humanidade no pecado trouxe consigo a corrupção de toda a Criação, visível e invisível (Gn 3; Rm 5.12; 8.20; Ef 2.2; 6.12). Por meio da encarnação e da morte expiatória de Cristo, a justiça de Deus é satisfeita (Rm 3.21-26), a paz entre Deus e os pecadores é restaurada (2Co 5.17-21), a glorificação final da ordem criada é assegurada (Rm 8.18-21) e os seres espirituais rebeldes são subjugados (2.15, nota). E acontecerá até a paz com inimigos intratáveis, o que pode ser entendido como a pacificação do fim do tempo, quando os oponentes de Cristo serão colocados totalmente em sujeição a ele, uma sujeição que começou na cruz e na ressurreição (cf. 2.13-15).
6. João 1.1–3
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e do Verbo era Deus. Ele estava no
princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada
do que foi feito se fez.
João associa seu evangelho à criação original, fazendo ecoar as palavras iniciais do primeiro livro de Moisés (e da Bíblia, em Gn 1.1). A referência de Mateus ao “livro da genealogia” (do
grego, “geração”) ecoa igualmente Gênesis (2.4), assinalando que a manifestação de Cristo na história dá início a uma nova criação.
O termo “Verbo” (ou Palavra; grego: logos) designa Deus, o Filho, no que diz respeito à sua deidade; “Jesus” e “Cristo” se referem à sua encarnação e à sua obra salvífica. Durante os primeiros três séculos, as doutrinas da pessoa de Cristo focaram intensamente em sua identidade como o Logos. Na filosofia grega, o Logos era a “razão” ou a “lógica”, como uma força abstrata que trazia ordem e harmonia ao universo. Mas, nos escritos de João, tais qualidades do Logos são enfeixadas na pessoa de Cristo. Na filosofia neoplatônica e na heresia gnóstica (nos segundo e terceiro séculos d.C.), o Logos era visto como um dos muitos poderes de intermediação entre Deus e o mundo. Tais noções estão muito distantes da simplicidade do evangelho de João.
Nesse versículo, a Palavra é expressamente afirmada como sendo Deus. A Palavra já existia “no princípio”, que é a maneira de denotar a eternidade que é única em Deus. João afirma claramente: “a Palavra era Deus”. Alguns têm observado que aqui a palavra traduzida por “Deus” não tem o artigo definido, e têm argumentado, sobre essa base, que significa “um deus”, e não “Deus”. Trata-se de um entendimento equivocado; o artigo é omitido por causa da ordem das palavras na sentença grega (o predicado “Deus” foi colocado em primeiro lugar, com vistas a enfatizá-lo). O NT nunca endossa a ideia de “um deus”, como expressão que implica politeísmo e está em nítido conflito com o monoteísmo consistente da Bíblia (10.34-38, nota). Dependendo das exigências da gramática grega, a palavra grega para “Deus” ocorre com frequência no NT sem o artigo definido, quando, obviamente, designa o único Deus verdadeiro (p. ex., vv. 6.12, 13, 18; 3.2, 21).
“A Palavra está com Deus” indica uma distinção de pessoas dentro da unidade da Divindade. Pai, Filho e Espírito Santo não são formas sucessivas do aparecimento de uma pessoa, mas, sim, pessoas eternas presentes desde “o princípio” (v. 2). “Com” pressupõe uma relação de estreita intimidade pessoal. Ver nota teológica “A Triunidade de Deus”, na p. 1204.
O versículo 1.3 “Todas as coisas foram feitas por intermédio dele” também enfatiza a deidade da Palavra, visto que a Criação pertence exclusivamente a Deus. Ver também v. 10; Cl 1.16, 17; Hb 1.2.
7. Lucas 22.66–71
Logo que amanheceu, reuniu-se a assembleia dos anciãos do povo, tanto os principais sacerdotes como os escribas, e o conduziram ao Sinédrio, onde lhe disseram: Se tu és o Cristo, dize-nos. Então, Jesus lhes respondeu: Se vo-lo disser, não o acreditareis; também, se vos perguntar, de nenhum modo me respondereis. Desde agora, estará sentado o Filho do Homem à direita do Todo-Poderoso Deus. Então, disseram todos: Logo, tu és ao Filho de Deus? E ele lhes respondeu: Vós dizeis que eu sou. Clamaram, pois: Que necessidade mais temos de testemunho? Porque nós mesmos o ouvimos da sua própria boca.
Nenhum dos Evangelhos traz um relato completo do julgamento de Jesus. É óbvio que houve dois estágios: os judeus o julgaram perante o Sinédrio e obtiveram um veredicto de que ele era um blasfemador e merecia morrer. Entretanto, somente os romanos detinham o direito de executá-lo, e não executariam um homem por blasfêmia contra o Deus de Israel. Tinha de haver um julgamento adicional perante os romanos para tentar estabelecer alguma violação da lei romana que merecesse a pena capital.
Os julgamentos judaicos tinham de ser realizados durante o dia. Não obstante, Marcos indica que uma audiência extraoficial, realizada na casa do sumo sacerdote, ocorreu durante a noite (Mc 14.53-65, 72) e precedeu a reunião pública do Sinédrio (Mc 15.1), a qual Lucas registra aqui.
Lucas não fala de uma acusação formal ou de um julgamento segundo um procedimento específico. O Sinédrio simplesmente exige que Jesus incrimine a si mesmo de acordo com a visão que eles tinham do Messias. Ele declina de fazer isso, visto que não crerão nele.
A oposição dos anciãos, principais sacerdotes e escribas, com algumas poucas exceções (23.50, 51; Jo 3.1; 7.50-52; 19.38, 39), é tão arraigada que eles simplesmente se recusam a responder às perguntas de Jesus que os desafiam (20.3-8, 39, 40, 44).
Jesus diz que “desde agora” está vindo uma mudança, quando o Filho do Homem estiver no mais elevado lugar de honra no céu, cumprindo Daniel 7.14 e Salmos 110.1. Seu derramamento do Espírito Santo no Pentecoste constitui uma exibição pública, sobre a terra, de sua entronização à direita de Deus no céu (At 2.33).
A combinação que Jesus faz de textos do AT traz consigo o glorioso “aquele como filho de homem”, que governará todos os povos com o sacerdote rei a quem Davi chama “meu Senhor”
(20.41-44). O Sinédrio infere corretamente que ele está reivindicando ser o Filho de Deus em um sentido singularmente exaltado (1.31-35; 3.22; 9.35).
Jesus admitiu a acusação do Sinédrio de que reivindicava ser o Filho de Deus; no que diz respeito a eles, ele é culpado de blasfêmia (cf. Mt 26.65; Jo 10.30-33). Persuadir os romanos a agirem requer uma acusação diferente, mas, para o Sinédrio, essa é uma questão consumada. A seus olhos, Jesus é culpado, e só resta garantir sua execução.
8. João 5.14–18
Mais tarde, Jesus o encontrou no templo e lhe disse: Olha que já estás curado; não peques mais, para que não te suceda coisa pior. O homem retirou-se e disse aos judeus que fora Jesus quem o havia curado. E os judeus perseguiam Jesus, porque fazia estas coisas no sábado. Mas ele lhes disse: Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também. Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus cera seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus.
5.14 não te suceda algo pior. O ponto da admoestação não é necessariamente que o homem portasse sua doença pessoal em razão de algum pecado específico. Alguns pecados podem fazer com que Deus lance um juízo físico e temporal (1Co 11.28-32), mas a doença não se relaciona necessariamente a pecados específicos (9.1-3). Se o homem não respondesse à bondade de Deus com arrependimento e graciosa obediência (Rm 2.4), a misericórdia que havia recebido teria agravado sua culpa (Lc 10.13-15; Hb 6.4-6). 5.17-47 Jesus discute com os judeus acerca de sua relação com o sábado e com Deus. Ele não argumenta com seus oponentes no sentido de eles entenderem ou não corretamente a legislação do sábado. Seu interesse é se entendem quem ele é. Jesus declara ser Deus, apontando para algumas de suas prerrogativas divinas (vv. 17-30), e exibe a base para sua reivindicação (vv. 31-47).
5.17 Meu Pai trabalha… e eu também trabalho. Jesus não discute com os judeus se eles estão certos em criticar o aleijado. Ele nega que possam criticá-lo, pois ele está apenas fazendo o que seu Pai faz. Embora Deus tenha descansado no sétimo dia de sua obra de Criação (Gn 2.2, 3), ele sustenta constantemente o universo por meio de sua providência ativa. Os judeus entendem corretamente que Jesus está afirmando igualdade com Deus ao falar de Deus como seu Pai, porém rejeitam sua reivindicação como sendo blasfema (v. 18; 8.56-59; 10.30-38).
5.18 fazendo-se igual a Deus. Jesus descreve a si mesmo como aquele que tem a mesma autoridade sobre o sábado que o autor do sábado (Lc 6.5), autoridade que recua à própria ordem da Criação.
9. João 10.25–33
Respondeu-lhes Jesus: Já vo-lo disse, e não credes. As obras que eu faço em nome de meu Pai testificam a meu respeito. Mas vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas. As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão. Aquilo que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar. Eu e o Pai somos um. Novamente, pegaram os judeus em pedras para lhe atirar. Disse-lhes Jesus: Tenho-vos mostrado muitas obras boas da parte do Pai; por qual delas me apedrejais? Responderam-lhe os judeus: Não é por obra boa que te apedrejamos, e sim por causa da blasfêmia, pois, sendo tu homem, te fazes Deus a ti mesmo.
Jesus já afirmara isso – “já vo-lo disse” – à samaritana (4.26) e ao cego de nascença (9.37), e ele aceitara a confissão dos discípulos (v. 24, nota; 1.49). Em suas discussões com as autoridades judaicas, ele deu a entender isso sobejamente (8.28, 58). Aqui, uma vez mais, ele afirma sua identidade messiânica em termos absolutos.
Anteriormente, Jesus se referiu às suas obras como evidência da fidedignidade de suas reivindicações (5.36; cf. 3.2) e, mais tarde, insistiu nesse ponto de vista diante dos discípulos (14.11; 15.24). O cego de nascença raciocinou com base nos mesmos termos (9.32, 33).
Fecharam seus olhos para a clara evidência – “não credes” –. Somente os que são de Cristo, aqueles que o Pai deu a ele, vêm à fé. Os demais – “porque não sois das minhas ovelhas” – são tão cegos por seus terríveis preconceitos que se recusam a crer. Somente os regenerados, que já “nasceram de novo” (3.3, 7), creem.
“Minhas ovelhas” – elas ouvem Jesus (vv. 3-5) e o seguem (v. 4). Esses crentes exibem renovação na nova diretriz e no compromisso de suas vidas. Observe Mateus 25.31-46, passagem em que o Filho do Homem age como um pastor a separar suas “ovelhas” dos “cabritos”, conduzindo as primeiras à vida eterna e enviando os últimos à punição eterna.
O Senhor dá às suas ovelhas vida infindável de comunhão com Deus (17.2, 3; cf. Ap 7.14-17). Ele as protege de perecer, em conformidade com a infalibilidade da graça divina, e não permite que nenhuma delas seja arrebatada de sua mão. Os santos perseveram porque Deus os preserva. As ovelhas não podem escapar da mão de Deus, porque o Pastor divino guardará todas as suas verdadeiras ovelhas do extravio (cf. 17.12). As advertências solenes da Escritura contra a apostasia não se destinam a suscitar dúvida sobre a perseverança divina em relação àqueles a quem ele salvou (cf. 1Jo 2.19). Ver nota teológica “Perseverança dos Santos”, na p. 1994.
A mão do Pastor é também a mão do Pai, e o supremo poder de Deus é a garantia última de segurança das ovelhas.
Não pessoas idênticas, mas um em essência divina (a palavra grega para “um” é neutra, e não masculina, como seria esperado se as pessoas fossem idênticas umas às outras). O Pai, o Filho e o Espírito Santo têm a mesma plenitude da natureza divina. Essa unidade essencial realça sua unidade no propósito redentor. O versículo indica mais que unidade de propósito.
Os judeus entenderam bem a reivindicação de Jesus à deidade (vv 31-33), e já estão se preparando para apedrejá-lo por blasfêmia (8.59).
10. Colossenses 2.9–10
Porquanto, nele, habita, corporalmente, toda a plenitude da Divindade. Também, nele, estais aperfeiçoados. Ele é o cabeça de todo principado e potestade.
Um refutação franca dos falsos mestres que incentivavam a sujeição aos “rudimentos do mundo” (v. 8) como um meio de vencer os temores de não ser aceito diante de Deus. Como explicado nos versículos seguintes, a “plenitude” de Deus, que os falsos mestres simulavam oferecer, habita em Cristo, “corporalmente”, por meio de sua encarnação, que aconteceu por causa de sua morte reconciliadora (1.20, 22). Essa plenitude é, portanto, obtida somente por meio dele (1.19, 20). Ver nota teológica “A Deidade Cristo”, na p. 1851.