Não julgueis e não sereis julgados […] perdoai e sereis perdoados. (Lc 6.37)
A bela esposa do homem rico estava no andar de cima preparando-se para dormir e o bebê estava dormindo em seu quarto quando um amigo apareceu na porta da frente. Parecia uma cena idílica, exceto pelo fato de que a mulher nunca deveria ter sido esposa desse homem. Ela só estava ali porque ele havia permitido que a luxúria levasse à imoralidade, o que fez com que ela engravidasse. Ele encobriu as coisas da melhor maneira que pôde, maquinando o afastamento do marido dela e tomando-a como sua esposa. E tudo isso era passado agora, e ele estava apostando que tudo seria cada vez mais como águas passadas.
Então seu amigo apareceu.
O homem rico o saudou e eles sentaram-se juntos.
— Eu tenho uma história que quero contar-lhe — disse o visitante ao seu anfitrião. — A história sobre dois homens que viviam em uma certa cidade.
— Continue —, disse o homem.
— Bem —, ele disse, — um era rico e tinha muitas ovelhas e gado. O outro homem não tinha absolutamente nada, exceto uma ovelhinha fêmea. Ele a criou desde a infância; ela cresceu com os filhos dele, compartilhou de sua comida, bebeu de seu copo e dormiu em seus braços, e era considerada por ele quase como uma filha.
— Um dia, o homem rico recebeu um viajante para ficar em sua casa. Ao invés de enviar um de seus homens ao campo para pegar uma de suas ovelhas e matá-la a fim de que pudesse prover uma refeição para o viajante, ele mandou que buscassem a pequena ovelhinha que pertencia ao homem pobre; ordenou que a matassem, e assim providenciou a refeição para o viajante.
O homem rico teve um sobressalto e disse: “Isso é horrível. Isso é totalmente errado. O homem que fez isso deveria morrer por tal ação impiedosa”.
E enquanto essas palavras escapavam de seus lábios, a verdade repentinamente lhe ocorreu ao mesmo tempo que seu amigo disse em voz alta: “Você é esse homem”.
Os erros dos outros
O que a história descreveu, de forma muito menos significativa, foi as circunstâncias daquele homem rico da vida real que havia usado seu poder para obrigar uma mulher casada a dormir com ele, e que roubara a esposa de um servo leal, o qual mandara matar para encobrir tudo. Esse homem rico era, é claro, o rei Davi. O visitante era o profeta Natã (veja 2 Samuel 12). E a razão de começarmos este capítulo com essa história é porque ela revela uma tendência que encontro em meu coração, e que talvez você encontre no seu – a saber, a capacidade de detectar rapidamente a falha de outra pessoa enquanto ignoro as falhas dentro de mim. Cada um de nós, se formos honestos, é, por natureza, inclinado a descobrir e condenar as falhas dos outros, enquanto vemos com muito mais leveza nossos próprios pecados. É essa tendência que Jesus destaca ao continuar o Sermão da Planície.
No capítulo anterior, tecemos nossa linha argumentativa em direção à grande declaração de Jesus sobre a natureza de Deus e como devemos imitá-lo como seus filhos: “Sede misericordiosos, como também é misericordioso vosso Pai” (v. 36). Esse foi o resumo de tudo o que ele havia dito sobre amar os inimigos e fazer o bem àqueles de quem não se espera nada em troca. E o que se segue ao versículo 36 é uma continuação de como veremos os outros e os trataremos se nossa prioridade for mostrar-lhes o tipo de misericórdia que nosso Pai celestial tem derramado sobre nós. Jesus continuará nos chamando para sermos muito diferentes de nosso eu natural e pecaminoso ao nos convocar para sermos cada vez mais parecidos com o próprio Deus.
Então, quais são as características da misericórdia? Jesus nos dá dois mandamentos negativos e depois, dois positivos:
Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados; dai, e dar-se-vos-á; boa medida, recalcada, sacudida, transbordante, generosamente vos darão; porque com a medida com que tiverdes medido vos medirão também. (Lc 6.37-38)
Não julgue. Não condene. Perdoe. Dê.
Isso parece simples, mas não é. Pois, juntamente com a Regra de Ouro, o mandamento “Não julgueis” é cercado por mais confusão do que praticamente qualquer outro versículo das Escrituras. Você ouvirá a frase “Não julgue” ser repetida pelas pessoas mais improváveis, nos momentos mais improváveis, e usada das maneiras mais improváveis. Portanto, novamente, precisamos entender exatamente o que Jesus está e não está dizendo aqui.
O que “não julgueis” não significa
Em primeiro lugar, Jesus não quer dizer que o exercício da justiça em um tribunal seja proibido. Alguns pensadores, entre eles o grande romancista russo Liev Tolstói, interpretaram essa frase como se devêssemos deixar de lado os tribunais de direito humano. Mas se permitirmos (como deveríamos) que a Bíblia interprete a Bíblia, fica claro que não é isso o que Jesus está dizendo. Os governantes defendem a justiça porque um governante é “ministro de Deus para teu bem […] vingador, para castigar o que pratica o mal” (Rm 13.4). “Olho por olho e dente por dente” é um princípio de justiça que pertence aos tribunais, e Jesus não está proibindo a administração da justiça aqui nessa passagem. Ele está falando de relacionamentos individuais, não de sistemas de justiça humana.
Em segundo lugar, ele não está nos pedindo para suspendermos nossas faculdades críticas. Temos a tendência de pensar que, se alguém é crítico, isso é algo negativo. Não é verdade! Precisamos ter capacidade crítica para discernir entre a verdade e o erro, entre o bom e o ruim, entre o certo e o errado. É dessa forma que esse versículo é mais frequentemente malcompreendido, mal-aplicado e jogado na cara dos cristãos:“Jesus disse para não julgar os outros, e aqui está você dizendo que isso é errado ou que aquilo é pecado”. Jesus já usou em seu sermão palavras como “pecadores”, “ingratos” e “maus”. Ele não está nos dizendo para deixar de lado o uso dessas categorias. Ele continuará a nos dizer que podemos discernir o coração de alguém por suas ações (o fruto revela a árvore). O ensinamento de Jesus exige que usemos nossas faculdades críticas, não que as descartemos.
Não temos de olhar para o mal e dizer: “Não estou em posição de dizer que essa pessoa está errada por ter feito isso”. Não precisamos viver com uma equivalência moral que desculpe toda ação pecaminosa e que nunca se oponha à justiça. Jesus não está ensinando aqui que devemos fechar os olhos para o pecado, ou que devemos nos recusar a apontar o erro, ou que devemos negligenciar o discernimento entre o bem e o mal.
O espírito recriminador
Então, o que Jesus está dizendo? Ele está desafiando a atitude recriminadora: um espírito de autojustificação, autoexaltação, hipocrisia e criticismo severo. É o tipo de abordagem em relação às pessoas que procura evitar o autoexame ao destacar e condenar os erros dos outros. É negativa, é destrutiva, busca ativamente as falhas dos outros e fica silenciosamente satisfeita quando as encontra. A pessoa recriminadora adora encontrar uma falha para que possa mostrá-la ao outro e dizer: “Está vendo como você é?” ou para que possa ecoá-la em sua própria mente e pensar: “Está vendo como ele é? Você é melhor do que isso”. É esse espírito de julgamento severo que desculpa nossos próprios erros e condena os dos outros – assim como Davi foi tão rápido em julgar o homem que roubou uma ovelha enquanto a mulher que ele havia roubado do marido estava deitada em seu quarto.
John Stott resume isso de maneira útil:
A recriminação […] retrata da pior maneira possível as motivações [das outras pessoas], joga água fria sobre seus planos e é intolerante para com seus erros.[i]
Quando vemos por essa ótica, é óbvio que esse tipo de espírito recriminador viola completamente a lei do amor, que consideramos no capítulo anterior.
Você sente algo disso em si mesmo? Na maneira como você trata seus filhos ou os filhos de outras pessoas? Em como você trata seu cônjuge? No modo como você trata seus funcionários ou seu chefe? Em como você trata os outros em sua igreja? Essa área é um campo minado para mim. Não pretendo desafiar você como se eu fosse alguém que já tem tudo resolvido, mas como um companheiro de luta que sabe o quanto está aquém do alvo e que cai continuamente. O dedo aponta para mim tanto quanto aponta para você. Portanto, precisamos voltar a Lucas 6.36 e à promessa que ele contém: “é misericordioso vosso Pai”. Quando eu falho, ele não falha. Quando deixo de demonstrar misericórdia para com os outros, e volto para ele e admito isso, ele não deixa de demonstrar misericórdia para comigo. E ele não deixará de mostrá-la a você.
O julgamento evangélico
As igrejas reformadas – igrejas nas quais há um forte desejo de manter a pureza teológica, a atitude moral e as expectativas claras em relação à participação na igreja – talvez sejam
as que mais correm o risco de interpretar equivocadamente o que Jesus está dizendo aqui. Com razão, ficamos nervosos com a possibilidade de acabar em uma posição de indefinição teológica, de nunca tomarmos uma posição ou de nunca desafiarmos nada ou ninguém. Mas Jesus não quer que adotemos o outro extremo, enquanto nos sentimos bem por termos nossa doutrina bem definida, nossos códigos morais elaborados e nossas classes de membros da igreja bem definidas, e, portanto, adotando um espírito de julgamento severo em relação aos indivíduos ou a outras igrejas que não “se encaixam” – que não estão, pensamos lá no fundo, praticando o cristianismo tão bem quanto nós.
Todos nós, por natureza, tenderemos a um desses extremos. Se você perguntar a uma criança o que ela faria se fosse diretora de sua escola, ela dirá alegremente que se livraria de todas as regras e deixaria todos fazerem o que quisessem (dessa forma, o caos e a miséria estariam presentes, além dos muitos doces que, tudo indica, seriam consumidos nas dependências da escola); ou ela começaria a distribuir muitas detenções imaginárias, desfrutando o privilégio de poder criar as próprias regras e anunciar multas por várias infrações. A questão é que muitos de nós gostaríamos de usar uma posição de liderança para estabelecer nossos próprios padrões, julgar e condenar os outros.
Mas a verdade é que somos péssimos juízes dos outros. Por quê? Porque não conseguimos ler o coração alheio. Não somos capazes de avaliar com precisão as motivações uns dos outros e não podemos medir o peso dos fardos que os outros carregam. Portanto, preciso ser excepcionalmente cauteloso ao pronunciar uma condenação. E também preciso ser excepcionalmente cauteloso no que digo sobre outros para os outros. Nos círculos evangélicos, temos uma maneira muito perspicaz de criticar os outros ou de nos fazer parecer bons em comparação, enquanto disfarçamos essa recriminação como uma preocupação espiritual ou um pedido de oração. É difícil perceber e erradicar isso, mas um bom jeito de começar é levar a sério a sabedoria da Bíblia quando se trata de nossa fala. Por exemplo:
O mexeriqueiro descobre o segredo, mas o fiel de espírito o encobre. (Pv 11.13)
Ou…
Todo homem, pois, seja pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar. (Tg 1.19)
Então, com esse tipo de sabedoria divina em mente, podemos aprender a nos perguntar: “Isso é gentil, é verdadeiro, é necessário?”. Seríamos muito mais prudentes no falar se filtrássemos nossas palavras por meio dessas métricas antes de proferi-las. Como disse a poetisa Grace Castle há mais de cem anos, mesmo em uma época antes de as redes sociais catalisarem nossa capacidade de julgar rapidamente e falar sem pensar:
Se tudo o que dissermos Em um único dia,
Sem nunca deixar uma palavra de fora, Fosse impresso todas as noites,
Em preto e branco nítido,
Seria uma leitura estranha, sem dúvida.
E então apenas suponha,
Antes que nossos olhos se fechem, Devemos ler todo o registro.
Então não suspiraríamos E não tentaríamos Muito menos falar?
E penso, na maior parte Que muita ruga seria
Mais suave no emaranhado da vida Se metade do que eu digo
Em um único dia
Fosse deixado para sempre sem ser dito.[ii]
Se eu estiver preparado para colocar-me no lugar da outra pessoa, e se estiver preparado para desejar honestamente para ela o que desejo para mim mesmo, em obediência à Regra de Ouro, estarei preparado para substituir a mes- quinhez pela generosidade, a dureza pela compreensão e a crueldade pela bondade.
Isso nos leva às afirmações negativas e às positivas.“Não julgueis”, diz Jesus. “Não condeneis”, diz Jesus. Ao contrário, perdoai e dai.
O perdão é o caminho
Pense por um momento no tipo de transformação que ocorreria em nossos relacionamentos se tão somente levássemos a sério esta diretriz dramática: “Perdoai”. A palavra traduzida como perdoar aqui é apoluo; na verdade, significa “liberar”. A escravidão em que vivem indivíduos, famílias, casais, igrejas e grupos muitas vezes pode ser atribuída à falta de vontade de obedecer a esta simples diretriz: “Perdoai”. Não é o mesmo que “desculpar”. Não é o mesmo que “negar”. Não é o mesmo que “esqueça isso por um tempo, e tudo vai passar e desaparecer”. Na verdade, é um ato de vontade, orientado pela Palavra de Deus, capacitado pelo Espírito de Deus, para reconhecer que alguém o prejudicou, mas escolher não condená-lo e, ao invés disso, perdoá-lo.
Novamente, o perdão é um aspecto de viver o traço de família. Devemos perdoar porque sabemos que somos perdoados. Podemos perdoar porque sabemos que somos per- doados. Shakespeare escreveu em O mercador de Veneza:
Embora a justiça seja seu apelo, considere isto – Que no curso da justiça nenhum de nós
Deve ver a salvação. Nós de fato oramos por misericórdia, E essa mesma oração nos ensina a todos
A praticar os atos de misericórdia.[iii]
Toda vez que me recuso a perdoar do fundo do meu cora- ção, essa é uma escolha fria e deliberada. E toda vez que você e eu fazemos essa escolha fria e deliberada, estamos decidindo aplicar punição àquela pessoa. De fato, o poeta e ministro do século XIX, George MacDonald, chegou a dizer que a falta de perdão pode ser pior do que um assassinato, pois “o último pode ser um impulso no calor do momento, enquanto o pri- meiro é uma escolha fria e deliberada do coração”.
Mas quando decidimos não perdoar, não só estamos punindo a pessoa que não foi perdoada, como também esta- mos nos sepultando, pois quando nos apegamos a um rancor, vivemos em uma masmorra construída por nós mesmos; estamos presos na escravidão de nosso próprio coração implacável. Há um provérbio chinês que diz: “O homem que opta pela vingança deve cavar duas sepulturas, pois ele irá para uma delas”.
Não sei em que parte de sua vida isso o atinge, mas tenho certeza de que o atinge em algum lugar. A maioria de nós está guardando rancor, ou está optando por trazer à mente erros do passado para reavivar nosso sentimento de mágoa; ou está desprezando alguém por causa de um pecado cometido no passado contra nós ou contra alguém que amamos. Jesus não está chamando você a dizer que o erro não teve importância. Ele está chamando você a dizer que o erro teve importância e que você está perdoando a pessoa mesmo assim. Aqui está a explicação de C.S. Lewis para isso:
Perdoar não significa desculpar. Muitas pessoas pare- cem pensar que significa isso. Elas acham que se você lhes pedir para perdoar alguém que as traiu ou as inti- midou, você está tentando fazer parecer que realmente não houve traição ou intimidação. [Em outras palavras, você diz: “Bem, isso nunca aconteceu de verdade”]. Mas se fosse assim, não haveria nada para perdoar. Elas con- tinuam a responder: “Mas eu lhe digo que o homem quebrou uma das mais solenes promessas”. Exatamente. É exatamente isso que você tem de perdoar. (Isso não significa que você deva necessariamente acreditar na próxima promessa dele; significa, sim, que você deve esforçar-se ao máximo para eliminar qualquer vestígio de ressentimento em seu coração, qualquer desejo de humilhá-lo ou feri-lo ou de revidar).[iv]
A propósito, a atitude de não perdoar é uma das conse- quências de nossa cultura ter se afastado da ideia de pecado e da realidade da culpa. É evidente que não precisamos nos sentir culpados por pecados cometidos contra nós em vez de pelos pecados cometidos por nós. Mas a sociedade moderna nos diz que os erros são apenas experiências com as quais devemos aprender, que machucar as pessoas para seguir o que achamos que nos fará felizes é triste, mas necessário, e que a culpa moral é uma noção arcaica e prejudicial. Nossos pedidos de desculpas se tornaram fracos, pouco sinceros e transferidores de culpa. (“Sinto muito que você esteja cha- teado. Eu estava sob muita pressão quando disse isso.”) Mas se não sou culpado, não posso pedir perdão; e se não peço perdão a alguém, não posso ouvi-lo dizer que fui perdoado. E, assim, milhões de pessoas carregam consigo uma sensação incômoda que não conseguem identificar e seguem suas vidas sem serem perdoadas e sem perdoar.
O evangelista britânico Rico Tice diz que as três frases mais importantes em qualquer relacionamento são: “Sinto muito. Eu estava errado. Por favor, me perdoe”.[v] Jesus nos mostra como pedir e como conceder o perdão. Quer saber como perseverar em seu casamento? Perdoe! É claro que os casamentos precisam de mais do que perdão, mas não podem sobreviver sem ele. Quer saber como permanecer em sua igreja quando alguém pecar contra você? Perdoe-o. Se for preciso, vá conversar com ele e diga como ele o magoou, mas, em última instância, perdoe-o.
Este artigo é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro A vida cristã segundo Jesus, de Alistair Begg, Editora Fiel.
Para ler outros artigos que também são trechos deste livro, CLIQUE AQUI.
[i] John Stott, The Message of the Sermon on the Mount: Christian Counter-Culture, p. 176
[ii] Grace W. Castle, “Suppose.”, in: The Christian Century XXIX:3. 18 de janeiro, 1912, p. 16 [Tradução livre]
[iii] William Shakespeare, O mercador de Veneza (Itapevi, SP: Nova Fronteira, 2023).
[iv] C. S. Lewis, The Weight of Glory: And Other Addresses (Nova York: HarperCollins, 1980)
[v] Rico Tice, So This is Christmas (Epsom. The Good Book Company, 2018), p. 14