segunda-feira, 28 de abril
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Devemos classificar as leis do Antigo Testamento como civis, cerimoniais e morais?

Compreendendo a Lei de Deus

Em gerações passadas, os intérpretes da Bíblia às vezes dividiam as leis do Antigo Testamento em três partes — civis, cerimoniais e morais — para ajudar a diferenciar entre as leis que continuam a vigorar na Nova Aliança (as leis morais) e as que não vigoram mais (as leis civis e cerimoniais). Essa é a abordagem da Confissão de Fé de Westminster (1646), por exemplo (o rótulo “judiciais” é utilizado para se referir ao que outros chamam de leis “civis”):

Além dessa lei, geralmente chamada lei moral, agradou-se Deus de conceder ao povo de Israel, considerado uma igreja sob tutela, leis cerimoniais, que contêm diversas ordenanças tipológicas — que, em parte, se referem ao culto, prefigurando Cristo, suas graças, seus atos, seus sofrimentos e seus benefícios, e, em parte, representam várias instruções de deveres morais. Todas as leis que são consideradas cerimoniais estão ab-rogadas no Novo Testamento.

A eles também, considerado como um corpo político, ele deu leis judiciais, que terminaram com o Estado daquele povo e que não mais obrigam nação alguma, além do que a sua equidade geral exige.

A lei moral obriga todos para sempre a prestar-lhe obediência, tantos as pessoas justificadas quanto as outras, e isso não somente em relação à matéria nela contida, mas também pelo respeito à autoridade de Deus, o Criador, que a deu. Cristo, no Evangelho, não desfaz essa obrigação; antes, confirma-a. (CFW, 19.3-5, ênfase minha)[1]

Os 39 Artigos da Igreja da Inglaterra (1571) também contêm essa distinção:

O Antigo Testamento não é contrário ao Novo; porquanto, em ambos, tanto no Antigo como no Novo, se oferece a vida eterna ao gênero humano, por Cristo, que é o único Mediador entre Deus e o homem, sendo ele mesmo Deus, o Homem. Portanto, não devem ser ouvidos os que pretendem que os antigos pais só esperaram promessas transitórias. Ainda que a lei de Deus, dada por meio de Moisés, no que respeita a cerimônias e ritos, não obrigue os cristãos, nem devam ser recebidos necessariamente os seus preceitos civis em nenhuma comunidade, não há cristão algum que esteja isento da obediência aos mandamentos que se chamam morais. (Os 39 Artigos, VII, ênfase minha)

Essa tripartição pode ser benéfica, visto que, quando se fala em “leis cerimoniais”, a referência normalmente é ao sistema de sacrifícios, ao sacerdócio e ao templo. A História da Redenção mostra que a obediência direta e literal a essas leis não é mais necessária, porque elas se cumpriram em Cristo. Além disso, as chamadas “leis civis” (também conhecidas como “leis judiciais”) incluem as que foram dadas para o governo de Israel como nação, e a História da Redenção mostra que essas leis não devem mais ser utilizadas como um guia detalhado para a legislação civil de nossos dias, pois os cristãos não vivem mais em uma entidade nacional separada.

               Contudo, há alguns problemas com esse tipo de categorização:

  1. Essas categorias de leis não são explicitamente mencionadas em nenhuma parte do Antigo ou do Novo Testamento. Além disso, o Novo Testamento não sugere que devamos analisar o Antigo Testamento com base nessas categorias para recebermos instruções éticas.
  2. É errado pensar que somente algumas partes da aliança mosaica foram ab-rogadas e que outras partes continuam a vigorar. Isso contradiz a ênfase do Novo Testamento de que a aliança mosaica inteira chegou a um fim e deixou de vigorar. Portanto, parece errôneo ensinar que as leis “morais” da aliança mosaica continuam a vigorar.
  3. Nem sempre há clareza sobre a categoria de cada lei e o processo de atribuir uma lei a uma determinada categoria pode se tornar um processo subjetivo e arbitrário.[2] As categorias sobrepõem-se porque, em certo sentido, todas as leis são “morais”. Então, por exemplo, Paulo entende que as passagens do Antigo Testamento sobre o santuário contêm um elemento moral que comunica sabedoria aos cristãos do Novo Testamento. Como os nossos corpos são agora “santuários do Espírito Santo”, devemos nos abster da imoralidade sexual (1Co 6.18-20).

Considere outro exemplo da lei mosaica:

A paga do jornaleiro não ficará contigo até pela manhã. (Lv 19.13)

Mas, quando leciono no Phoenix Seminary, a instituição não me paga antes de eu ir para casa naquele dia. Aliás, o seminário me paga somente duas vezes por mês. Meus empregadores estão violando Levítico 19.13? Não parece que se trata de uma lei moral cujo objetivo é preservar o bem-estar dos empregados?

Uma melhor solução é entender que, embora a lei mosaica tenha sido completamente ab-rogada, podemos encontrar sabedoria nela quando buscamos determinar o tipo de conduta que é agradável a Deus. Sendo assim, podemos enxergar o sábio princípio de pagar os trabalhadores no momento em que você combinou pagá-los, para que eles recebam o salário no momento em que tinham a expectativa de recebê-lo.

Aqui está outro exemplo de lei que parece ser “moral”, porque seu objetivo é garantir a segurança física das pessoas:

Quando edificares uma casa nova, farás no telhado um parapeito, para que não ponhas culpa de sangue na tua casa, se alguém de alguma maneira cair dela. (Dt 22.8, ARC)

Se dissermos que as leis “morais” continuam a vigorar para as pessoas de nossos dias, minha casa no Arizona (com um telhado inclinado e sem um parapeito de segurança) está violando os mandamentos de Deus!

Alguém pode contra-argumentar que essa lei em Deuteronômio 22 foi escrita em um contexto histórico e cultural em que as casas tinham terraços no telhado. Era o lugar de receber visitas, e, às vezes, as pessoas até dormiam no terraço. O parapeito era necessário para impedir que as pessoas acidentalmente caíssem. Na verdade, eu também tenho um telhado plano em um dos cômodos da minha casa, e ninguém sobe nesse telhado por qualquer motivo (exceto para consertar vazamentos). A lei não diz: “farás no telhado um parapeito se as pessoas subirem no telhado”. A lei simplesmente diz: “farás no telhado um parapeito”. Estou violando essa lei por não ter um parapeito em meu telhado plano? Se dissermos que as leis “morais” da aliança mosaica continuam a vigorar em nossos dias, e se essa lei ordena que um parapeito seja construído em telhados planos, parece que eu deveria construir um parapeito no meu telhado.

Novamente, uma abordagem mais apropriada é reconhecer que a aliança mosaica inteira chegou ao fim e deixou de vigorar. Não estamos mais debaixo de nenhuma parte da aliança mosaica enquanto lei vigente. Porém, ainda podemos adquirir sabedoria da aliança mosaica, e, nesse caso, uma conclusão sábia parece ser reconhecer que Deus se agrada quando tomamos precauções razoáveis para proteger a segurança física das pessoas que se encontram em nossa propriedade. Exemplos disso envolveriam remover o gelo da calçada da frente de casa ou jogar areia nela durante o inverno (em climas frios) para impedir que as pessoas caiam; instalar um corrimão na escada que desce para o porão, em vez de deixá-la sem proteção; colocar uma cerca na piscina, a fim de impedir que crianças caiam; ou literalmente colocar um parapeito no telhado quando há um terraço em que as pessoas ficam (como é o caso de um dos meus vizinhos).

Minha conclusão, então, é que, embora a distinção entre leis civis, cerimoniais e morais possa ter alguma utilidade, não é uma ferramenta tão útil para entender de que maneira o Antigo Testamento se aplica à conduta ética do Novo Testamento quanto o processo de (1) reconhecer que a aliança mosaica, em sua totalidade, foi ab-rogada; (2) reconhecer as diferenças específicas entre a Antiga e a Nova Aliança; e depois, à luz dessas diferenças, (3) buscar adquirir sabedoria de vida no Antigo Testamento inteiro, inclusive em todas as suas leis.

Este artigo é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Ética Cristâ, de Wayne Grudem, Editora Fiel (em breve).

CLIQUE AQUI para ler mais artigos que são trechos deste livro.


[1]Confira uma distinção semelhante entre esses tipos de leis em Charles Hodge, Teologia Sistemática (São Paulo: Hagnos, 2001), p. 1222-23.

[2]Frame diz com clareza: “Assim, moral é apenas um rótulo para aquelas leis que cremos ser normativas no presente, e não uma qualidade das leis que nos leva a essa conclusão. O mesmo acontece com o rótulo cerimonial… Parece que os teólogos denominam certas leis de ‘cerimoniais’ não porque compartilham o mesmo tema, mas porque são julgadas como inapropriadas à Nova Aliança” (A Doutrina da Vida Cristã, p. 218). Além disso, Dorsey apresentou uma longa lista de leis mosaicas relacionadas a práticas agrícolas, econômicas e maritais (e essas não são questões morais?) que seriam impossíveis de observar fora do contexto geográfico e climático da Palestina. Ele diz que isso sugere que “esse conjunto de leis nunca foi dado para servir como as leis da Igreja cristã, que está espalhada por todos os climas do mundo habitado” (“The Law of Moses and the Christian”, p. 326).


Autor: Wayne Grudem

É professor pesquisador de Teologia e Bíblia no Phoenix Seminary. É bacharel em ciências humanas (Harvard), mestre e doutor em teologia (Westminster Seminary, Philadelphia) e PhD em Novo Testamento (University of Cambridge). Foi tradutor da Bíblia English Standard Version, editor geral da ESV Study Bible e presidente da Evangelical Theological Society. Publicou mais de vinte livros, entre eles Ética Cristâ, publicado pela Editora Fiel.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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