Se propriamente concebida como alicerçada no próprio reinado de Deus, a Grande Comissão começa antes da queda da humanidade de sua comunhão com Deus. No sexto dia, o homem foi comissionado por Deus a encher a terra e sujeitá-la, e a dominar sobre as criaturas (Gênesis 1.28). Por conseguinte, pode-se corretamente definir a Grande Comissão como “dominar e sujeitar” a terra e suas criaturas – um entendimento que nós precisaremos elaborar.
Na verdade, a expressão “dominar e sujeitar” tem conotações profundamente negativas em nosso mundo moderno, mergulhado como ele está em memórias de horrendas tiranias e de abuso de poder. Não obstante, nós deveríamos observar que essa comissão foi dada antes da decadência no pecado e miséria, precisamente no contexto do homem em união com Deus – isto é, foi dada ao homem como portador da imagem de Deus (v. 26), criado tanto para andar com Deus como para mediar o bendito reino de Deus sobre toda a terra.
A teologia aqui tem dois aspectos. Adão deve congregar toda a criação ao sétimo dia para louvar e adorar a Deus – isso é o que significa “dominar e sujeitar”. Ele está incumbido de separar (“santificar”) progressivamente a criação, até que toda a terra seja santa, cheia da glória sempiterna de Deus.
Segundo, não há nenhuma bênção a ser desfrutada, por menor que seja, que não proceda do reino de Deus – essa é alegria do que significa “estar sujeito”, especialmente depois da expulsão da vida com Deus. Por essa razão, nós alegremente ensinamos nossos filhos que Cristo executa o ofício de rei “sujeitando-nos a si mesmo” (Breve Catecismo de Westminster, P&R 26).
A Grande Comissão dada a Adão exigia que o seu reinado estivesse a serviço de seu ofício sacerdotal, isto é, que ele “dominasse e sujeitasse” a fim de congregar toda a criação aos pés do Criador, em adoração. A consumação do dia do descanso era o coração e o alvo da comissão dada no sexto dia.
Uma vez que entendemos a Grande Comissão em função do reinado, estamos em melhores condições de avaliar esse projeto ao longo do resto do Antigo Testamento. O reino de Deus é universal e, desde o princípio, o seu plano de salvação visava todas as famílias da terra, nunca negligenciando o fato de que a ele “compete a herança de todas as nações” (Salmo 82.8).
Aqui, o papel de Gênesis 1–11 enquanto prólogo da narrativa de Israel não pode ser superdimensionado, pois a própria identidade de Israel e o seu santo chamado procedem desse contexto universal e é completamente determinado por ele. Após as nações serem dispersas para o exílio a partir da torre de Babel, Deus chama Abrão em Gênesis 12, prometendo que, nele, seriam “benditas todas as famílias da terra” (v. 3). Essa promessa é posteriormente repetida a Abraão: “E em tua semente serão benditas todas as nações da terra, porquanto obedeceste à minha voz” (Gênesis 22.18, ARC; ver 18.18). Ela é então concedida a Isaque (26.4) e, depois, passada a Jacó como o pai das doze tribos de Israel (28.14).
Unida a essa promessa está a garantia do reinado. A Abrão fora prometido: “reis procederão de ti” (17.6), e daí segue uma analogia que desembocará na linhagem de Davi. No final, por meio de Israel, um rei se levantaria para congregar as nações de volta na presença de Deus.
Israel, além disso, havia sido trazido a uma comunhão pactual com Deus, no Sinai, a fim de viver como um reino sacerdotal e uma nação santa (Êxodo 19.6) – isto é, para ser luz aos gentios. Os atributos paralelos dessa definição, sacerdotal e santo, devem ser entendidos no sentido de ser separado pelo Senhor Deus em favor das nações; Israel deveria ser um mediador entre Deus e as nações. Esse chamado santo tinha muito mais a ver com estar sujeito do que com sujeitar outros povos. Israel precisava ser consagrado e santificado – transformado no servo de Deus em favor do mundo – para glorificar a Deus perante as nações. O Salmo 67, um dos muitos salmos que chamam os gentios a louvarem a Deus, declara claramente que Israel havia recebido a misericórdia, e até mesmo a bênção sacerdotal, para que o caminho de Deus fosse conhecido na terra e para que a sua salvação alcançasse as nações.
Nós primórdios de Israel, contudo, “não havia rei em Israel”, o que significava que “cada um fazia o que achava mais reto” (Juízes 21.25). Em outras palavras, sem alguém que encarnasse o reino de Deus, Israel iria persistentemente cair em apostasia. Israel necessitava se sujeitar, antes que pudesse ser uma luz aos gentios.
Com o estabelecimento de Davi como rei de Israel, a Grande Comissão se tornou mais uma vez um encargo dado a um rei humano. O Salmo 2, provavelmente utilizado durante a cerimônia de coroação em Israel, é instrutivo nesse particular.Em meio às nações amotinadas, o Senhor declara: “Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião” (v. 6). O rei então professa o decreto divino: “O SENHOR me disse: Tu és meu Filho; eu hoje te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações por herança e os confins da terra por tua possessão” (vv. 7-8, ARC). A expressão meu filho nos conduz outra vez a Adão e a outra faceta da teologia da Grande Comissão.
Em um sentido peculiar, Adão pode ser chamado o filho “primogênito” de Deus (gerado e criado). A genealogia do Messias em Lucas, por exemplo, nos leva de volta a Sete como “filho de Adão” e, depois, a Adão como “filho de Deus” (Lucas 3.38; ver Gênesis 5.1-3). Como o “primogênito” de Deus, então, a herança de Adão era tão abrangente quanto sua comissão: toda a terra – pois dele são “as alimárias sobre milhares de montanhas” e “o mundo e a sua plenitude” (Salmo 50.10,12, ARC). Adão possuía, em outras palavras, o direito inerente de dominar e sujeitar toda a terra em nome do seu Pai e para a glória de seu Pai.
À medida que a história da redenção avança, Israel então se torna, por assim dizer, o segundo “primogênito” de Deus. Deve-se notar aqui que o Senhor foi bastante específico acerca das palavras que Moisés deveria usar em seu primeiro confronto com Faraó: “Assim diz o SENHOR: Israel é meu filho, meu primogênito. Digo-te, pois: deixa ir meu filho, para que me sirva; mas, se recusares deixá-lo ir, eis que eu matarei teu filho, teu primogênito” (Êxodo 4.22-23; ver Oséias 11.1). O último sinal de Deus, celebrado anualmente na Páscoa, haveria de inculcar aquela revelação original bem no coração de Faraó.
Retornando agora ao Salmo 2, Davi, como cabeça de Israel e por promessa divina (2Samuel 7.14), poderia ser considerado filho de Deus em um sentido especial, uma vez que ele evidentemente recebera o manto de Adão em função do seu ofício. Por sua unção, Davi herdara o papel de Adão enquanto “filho de Deus” e rei da terra. “Fá-lo-ei, por isso, meu primogênito”, Deus diz, “o mais elevado entre os reis da terra” (Salmo 89.26-27).
É importante entender que apenas na condição de rei ungido foi que Davi recebeu a promessa de dominar e sujeitar as nações. A comissão de Davi era para que ele espalhasse a vontade e o reino de Deus pela terra – seus “inimigos” não eram meramente políticos ou pessoais, mas os inimigos de Deus, reis que haviam se colocado contra o Senhor e contra o seu ungido. Na realidade, contudo, o objetivo de sujeitar Israel já seria demais. Pior ainda, foram os próprios reis de Israel que extraviaram o rebanho de Deus, conduzindo-o a perversa rebelião e a abominável idolatria. O exílio era inevitável.
Todavia, de modo surpreendente, no contexto da apostasia de Israel, Deus prometeu levantar um Servo Davídico que não apenas conduziria as tribos de Jacó por um novo êxodo, mas que também seria dado “como luz para os gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra” (Isaías 49.6). Este mesmo Servo, se continuarmos a ler, haveria de sofrer o julgamento de Deus ao tomar sobre si os pecados de muitos, para que, como um sacerdote exaltado, pudesse “borrifar muitas nações” (Isaías 52.13–53.12, ARC; ver 1Pedro 1.1-2). Havendo expiado os pecados de seu povo, esse Messias vindouro – o último Adão, a semente de Abraão, o verdadeiro Israel, aquele que é superior a Davi, o Servo Sofredor, o Filho de Deus – ascenderia às alturas para reinar do Monte Sião celestial, à direita de Deus Pai.
Mateus 28, assim, não é senão a tomada de posse da herança prometida no Salmo 2. Todavia, esse reinado está a serviço de um ofício sacerdotal, para nos guiar à presença de Deus mediante o véu da carne dilacerada e do sangue derramado. Por meio do seu Espírito aspergido, Jesus reina para subjugar e convocar toda a criação à adoração do seu Pai (1Coríntios 15.24-28), sujeitando-nos cada vez mais profundamente, dia após dia, para que possamos aprender como “glorificar a Deus e gozá-lo para sempre”.