quarta-feira, 27 de agosto
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O resultado do Evangelho em nós

Contexto geral e imediato de Gálatas 5

A frutificação da terra sempre é uma boa notícia para quem trabalha nessa área. O ciclo do plantio pode se antecipar em até um ano antes da colheita. Desde a compra das sementes, dos fertilizantes e mesmo do maquinário até o planejamento do calendário agrícola e a preparação da terra, tudo, enfim, culmina na colheita dos frutos. Mesmo para uma sociedade industrializada e, portanto, terceirizada, encontrar bons frutos no mercado também é uma ótima notícia.

Toda boa notícia aponta para a Boa Notícia final (ou empalidece diante dela), com artigo definido, a saber, o Evangelho, que é a Boa-Nova do que Deus fez, está fazendo e fará por nós em Cristo Jesus e no seu Espírito. A passagem do fruto do Espírito está no capítulo 5 de Gálatas, e, à medida que nos atentamos para o contexto e propósito dessa magnífica carta apostólica, veremos a centralidade do Evangelho claramente exposto nesse texto inspirado.

Portanto, o presente capítulo visa imergir o leitor no contexto imediato dessa carta paulina, o que deixará evidente que o fruto do Espírito é fruto do Evangelho — é resultado da aplicação do que Cristo fez por nós.

Contexto geral e imediato

Gálatas foi escrito por Paulo na década de 40 do primeiro século.[1] É uma de suas cartas mais antigas, junto às duas correspondências à igreja em Tessalônica. Paulo a escreve para combater o falso ensino de certos judaizantes naquelas igrejas, que vinham adulterando a mensagem do Evangelho.

Nesse embate, Paulo estrutura sua carta de forma tipicamente judaica, ou seja, com uma forma concêntrica chamada “quiasmo”. Köstenberger e Petterson definem “quiasmo” da seguinte maneira:

Na estrutura quiástica, a segunda metade de uma composição utiliza as mesmas palavras, os mesmos temas ou assuntos da primeira metade, mas na ordem inversa. Muitas vezes essas duas partes se unem em torno de um núcleo comum, que pode constituir a ideia mais proeminente ou a ênfase pretendida pelo autor.[2]

Assim, seguimos o esboço geral (a macroestrutura) proposto por Douglas Moo, em seu magistral comentário de Gálatas:[3]

A. A cruz e a nova criação (1.1-10)

B. A verdade do Evangelho (1.11–2.21)

C. A defesa do Evangelho (3.1–5.12)

B’. A vida no Evangelho (5.13–6.10)

A’. A cruz e a nova criação (6.11–18)

Começando e terminando com a cruz de Cristo e com a realidade da nova criação que ela inaugura (A, A’), Paulo expõe a verdade do Evangelho e como viver de acordo com ela (B, B’), tendo como centro de sua carta uma defesa do Evangelho de tirar o fôlego (C).

Uma vez que tenhamos uma visão geral dessa epístola, podemos afunilar mais nossa atenção para a passagem do fruto do Espírito em Gálatas 5.22-23. Esse texto está dentro da quarta seção da carta (B’, 5.13–6.10), dedicada à “vida no Evangelho”, que, por sua vez, pode ser dividida em mais quatro partes:

  1. O padrão básico da nova vida: Servir uns aos outros em amor (5.13-15)
  2. Implementando (suprindo, praticando) a nova vida: andando pelo Espírito (5.16-24)
  3. Alguns parâmetros específicos da nova vida (5.25–6.6)
  4. A urgência de viver a nova vida (6.7-10)[4]

O fruto do Espírito se encontra dentro da subseção sobre “andar no Espírito” (5.16-24). Mais uma vez, temos um quiasmo, no qual Paulo centraliza o fruto do Espírito em contraste com as obras da carne:

A. Garantia sobre a carne (5.16-17)

B. Quem é guiado pelo Espírito não está sob a lei (5.18)

C.As obras da carne (5.19-21)

C’. O fruto do Espírito (5.22-23)

B’. Nenhuma lei se opõe ao Espírito (5.23b)

A’. Garantia sobre a carne (5.24)[5]

Portanto, o fruto do Espírito está dentro da atmosfera do Evangelho. O Cristo que nos amou, entregou-se por nós e vive em nós faz com que nosso velho eu seja crucificado para vivermos para Deus (Gl 2.19-20). Paulo instrui que, como o Espírito gera virtudes nos gálatas, a fidelidade ao Evangelho é o verdadeiro caminho, ao contrário da lei, que conduz apenas às obras da carne.

Dizer que o fruto do Espírito é o fruto do Evangelho é dizer que o bendito Espírito aplica a obra de Cristo em nós, não apenas nos salvando da culpa do pecado, mas moldando nosso caráter ao de Cristo, que é verdadeiramente santo e escatologicamente orientado, ou seja, é uma antecipação real do que seremos de forma perfeita na eternidade. É dessa realidade escatológica do fruto do Espírito que trataremos no próximo capítulo.

A importância da narrativa para as virtudes e personalidade

Uma grande inovação na teorização da estrutura da personalidade foi oferecida pelo modelo “New Big Five”, de Dan P. McAdams e Jennifer L. Pals.[6] Essa estrutura inclui cinco camadas, cujos três níveis médios constituem uma estrutura de personalidade de três níveis:

  1. Traços disposicionais, que se referem a amplas dimensões relativamente estáveis e descontextualizadas das diferenças individuais.
  2. Características adaptáveis, que dizem respeito a construções altamente contextualizadas no tempo, lugar e/ou papel social, além de incluírem “motivos, objetivos, planos, esforços, estratégias, valores, virtudes, esquemas, autoimagens, representações mentais de outras pessoas significativas, tarefas de desenvolvimento e muitos outros aspectos da individualidade humana”.[7]
  3. Narrativas integrativas de vida, que se referem a “histórias de vida internalizadas e em evolução, as quais reconstroem o passado e imaginam o futuro para fornecer identidade (unidade, propósito, significado) à vida de uma pessoa”.[8]

Assim, os três níveis do modelo de McAdams e Pals podem ser vistos como três camadas de descrição: o comportamento de uma pessoa, em parte, responderá a traços inerentes; em parte, a empurrões e puxões situacionais; e, em parte, à história de vida internalizada que a orienta.

Uma lição importante é que os fatores de personalidade não precisam ser atribuídos exclusivamente a um nível ou outro, pois podem ter aspectos que os ligam a cada uma das três esferas do modelo ao mesmo tempo.

Tomando esse modelo como estrutura teórica, Sarah A. Schnitker, Pamela E. King e Benjamin Houltberg definiram virtudes espirituais como “unidades híbridas de personalidade que emergem quando adaptações características recebem significado por meio de uma identidade narrativa transcendente”.[9] Em sua formulação, essas virtudes envolvem: traços disposicionais, como tendências relativamente estáveis à compaixão ou à paciência; características adaptáveis, já que se expressam em situações concretas da vida cotidiana por meio de atitudes e comportamentos específicos; e narrativas integrativas de vida, pois são moldadas por histórias espirituais que conferem significado transcendente e orientam o envolvimento moral — isto é, “uma identidade narrativa que valoriza algo além do eu de uma maneira culturalmente apropriada”.[10] Assim, as virtudes espirituais ilustram como um fator psicológico pode operar simultaneamente nos três níveis da personalidade, articulando disposições internas, contextos de vida e narrativas de identidade.

Em Cristo e pelo seu Espírito, temos nossa personalidade renovada. O fruto do Espírito é trabalhado dentro de nós tanto no contexto externo da igreja, que é positivo, quanto no contexto deste mundo, que é negativo. A vida na comunidade de fé nutre o fruto do Espírito, assim como as dificuldades e tribulações deste mundo caído forjam ainda mais essas virtudes em nós.[11] No entanto, tanto esses novos traços internos como as situações externas para o crescimento do fruto do Espírito estão dentro dessa metanarrativa que é o Evangelho. Sem essa grande História de Redenção em Cristo, não haveria a plantação e muito menos o cultivo desse fruto em nós. Portanto, Cristo é o grão semeado, e o fruto é colhido na igreja pelo poder do Espírito Santo.[12]

O artigo acima é um trecho retirado com permissão e adaptado do livro O fruto do Espírito, de Willian Orlandi, em breve pela Editora Fiel.


[1] Existe um grande debate sobre o local e a data em que Paulo escreveu Gálatas. As boas introduções ao NT fornecerão os detalhes ao leitor. Veja, por exemplo, Michael J. Kruger, ed., Introdução Bíblico-Teológica ao Novo Testamento (São José dos Campos: Editora Fiel, 2023), p. 334-36.

[2] Andreas J. Köstenberger e Richard D. Patterson, Convite à Interpretação Bíblica: A Tríade Hermenêutica (São Paulo: Vida Nova, 2015), p. 270.

[3] Douglas Moo, Galatians, BECNT (Grand Rapids: Baker Academic, 2013), p. 63-64.

[4] Ibid., p. 342.

[5] Ibid., p. 351-52.

[6] Dan P. McAdams e Jennifer L. Pals, “A New Big Five: Fundamental Principles for an Integrative Science of Personality”, Am. Psychol. 61, n. 3 (2006): 204-17.

[7] Ibid., p. 208.

[8] Ibid, p. 212.

[9] Sarah A. Schnitker, Pamela E. King e Benjamin Houltberg, “Religion, Spirituality, and Thriving: Transcendent Narrative, Virtue, and Telos”, J. Res. Adolesc. 29, n. 2 (2019): 276.

[10] Ibid., p. 280.

[11] Sempre pressupondo o agir do Espírito. E isso também não é negar momentos de felicidade legítimos na Criação e momentos de tristeza e pesar na igreja.

[12] Kathryn Greene-McCreight, Galatians, BTCB (Grand Rapids: Brazos Press, 2023), p. 153.


Autor: Willian Orlandi

É casado com Vitória, pai da Alice e do Nicolas. Graduado em Teologia (Seminário Martin Bucer) e em Letras (PUC-Campinas). Pós-graduado em Novo Testamento (UNIFIL) e em Psicolinguística (Metropolitana). Mestrando em Novo Testamento (Seminário Teológico Jonathan Edwards). Professor de Teologia em vários Seminários Teológicos do país.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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