segunda-feira, 6 de outubro
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Bonhoeffer e a redenção do eu

Como a entrega e o serviço moldam nossa identidade em Cristo

A Escritura não nos chama ao “polimento moral” de nossa própria alma, mas a algo totalmente diferente. Bonhoeffer desafia a sua audiência ansiosa com uma promessa: deixe que sua paixão seja pelo outro; mergulhe no serviço e no sacrifício pelos seus amados, e você “de alguma forma incompreensível saberá que fomos criados de novo como um outro, novo e melhor eu”.  Você deve estar disposto a perder sua vida para ganhá-la. Este novo self não é descoberto alimentando um padrão de isolamento, mas numa nova ligação com os outros que é fomentada por meio do sacrifício, do serviço e do amor. 

Tanto em nossa própria experiência quanto nos relatos bíblicos, as pessoas que agem como se fossem unidades isoladas ou o centro do mundo exibem um sentido distorcido do self.  Bonhoeffer, em contraste, afirma que podemos encontrar-nos por meio da autoentrega, subordinando-nos aos outros: “Ser capaz de entregar-se, esquecer-se e perder-se, ser capaz de se curvar sob a reivindicação do próximo no espírito de sacrifício apaixonado — e ser capaz de encontrar-se novamente aqui no altar da entrega mais extrema; essa é a nossa bênção, essa é a graça de Deus.”  No entanto, se eu me entregar pelos outros, isso não significa que “eu” deixarei de ser eu? Permanecerei “sem forma” e insignificante? Minha alma será perdida em vez de salva? 

Lucas 17.33 curiosamente afirma que tentar preservar sua alma significa que você na realidade a perderá. Por quê? Há uma estranheza na “redenção do ego” da qual as Escrituras e Bonhoeffer falam. Concentrar-se na alma — no seu self — significa que você se perde. Isso me lembra o paradoxo hedonista: se você se concentrar em ganhar sua felicidade, ela sempre fugirá de você. Somente não se concentrando em sua própria felicidade você pode experimentar as verdadeiras profundezas da felicidade real. Da mesma forma, a alma é perdida e salva não negando a sua particularidade, mas entregando-se diante do Deus vivo, deixando que a vontade dele seja mais importante do que a minha vontade, submetendo-me assim aos seus propósitos e planos. Para nossa surpresa, quando isso acontece, descobrimos a verdadeira vida.

A redenção do eu, como Bonhoeffer coloca, não vem por meio de esforços de autoaperfeiçoamento nem de explorar cada vez mais o autoconhecimento, “mas por meio da contemplação da bondade singular de Deus”.  E, não obstante, essa “redenção” acontece sempre “no mundo”, não em alguma esfera platônica. Por quê? Porque é neste mundo que está o nosso próximo, e precisamos do nosso próximo até mesmo para conhecermos a nós mesmos em relação a Deus. “Vocês, que se entregam completamente ao próximo, estão se entregando a Deus; por meio do seu próximo, vocês serão redimidos por Deus.”  Embora isso pareça difícil para muitos, Bonhoeffer está nos conduzindo para enxergar a ligação intrínseca entre os mandamentos bíblicos de amar a Deus e amar o próximo. Lembre-se, somos necessariamente criaturas sociais — foi assim que Deus nos criou.

Não possuímos um manuscrito completo do sermão, porém as palavras finais registradas que temos são: “Você se libertou; não, Deus o prendeu, prendeu […].” Pode-se imaginar que, como bom pastor luterano, Bonhoeffer completaria o pensamento: liberto da escravidão do pecado, você se descobre preso a Deus e à justiça dele.  Como o apóstolo Paulo repetidamente afirma, saímos da escravidão do pecado para sermos escravos da justiça (Rm 6.16, 18-20). No entanto, isso não é escravidão, mas a verdadeira liberdade. O axioma de Lutero capta essa dinâmica:

O cristão é senhor de todos, perfeitamente livre e sujeito a ninguém.

O cristão é servo de todos, perfeitamente submisso, sujeito a todos. 

Jesus encarna esse paradoxo. A forma como nos relacionamos com Deus muda a forma como nos relacionamos com os outros. Isso é liberdade no Criador e Redentor, o qual nos diz quem somos e nos liberta para viver e amar. O self liberto é sempre necessariamente um self-em-relação. 

O que significa tudo isso? Bonhoeffer sabe que, quando nos concentramos em nós mesmos, quando tentamos centrar nossa vida em nosso ego isolado, o resultado não é calmo, mas caótico; não claro, mas confuso; não generoso, e sim egoísta. Por quê? Porque, tal como acontece com os alunos de Matt Vos que tentam se descrever à parte das suas relações, qualquer tentativa de viver como o meu próprio centro mostra que preciso de outros para me compreender, e preciso ainda mais deles para ser uma criatura humana saudável e próspera. Foi assim que Deus nos fez. 

Por termos o nosso ser em relação e não à parte dessa realidade, conhecer o self corretamente só pode ocorrer no contexto de ser conhecido, de estar em relacionamentos, de ser amado. O self sozinho — o ego isolado — é uma contradição em termos: almejar essa contradição não leva a um conhecimento vivificante, mas a uma solidão sufocante e a uma insegurança sem fim. Essa busca tão equivocada é fomentada pelo desajuste do mundo fora de nós e pelo mundo desordenado dentro de nós.

Edte artigo é um trecho adaptado e retirtado com permissão do livro Conheça seus limites, de Kelly Kapic, em breve pela Editora Fiel.


Autor: Kelly M. Kapic

(PhD, King’s College, Universidade de Londres) é professor de Estudos Teológicos no Covenant College em Lookout Mountain, Geórgia, onde leciona desde 2001. Ele é um orador popular e o premiado autor e editor de mais de quinze livros, incluindo Mapping Modern Theology, The God Who Gives, e, premiado pela revista Christianity Today, Embodied Hope: A Theological Meditation on Pain and Suffering. Kapic publicou nos sites Christianity Today e Gospel Coalition e trabalhou em grupos de pesquisa financiados pela Fundação John Templeton. Ele também contribui para o Journal of Spiritual Formation and Soul Care e vários outros periódicos.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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