“Ainda tenho dificuldade em cantar o hino ‘How Deep the Father’s Love for Us’ [Quão profundo é o amor do Pai por nós]”, disse Amy (nome fictício).
Assim como Ângela, no capítulo 1, Amy tem três filhos, porém é mãe solteira: “Lembro-me de estar na primeira fileira da igreja, ao lado do meu marido, com a igreja inteira cantando alto. No entanto, parte do meu corpo doía ou ardia no lugar onde ele tinha me batido na noite anterior. Então, ele subia no púlpito e pregava.”
Amy foi casada com esse pastor por quinze anos. Ela conheceu Rick (nome fictício) logo após se converter ao cristianismo, na faculdade. Rick era charmoso, carismático e um líder conhecido no campus. Amy não conseguia acreditar que um rapaz tão incrível se interessaria por ela; suas amigas ficaram até com um pouco de inveja. Ao mesmo tempo, desde que se tornara cristã, muitas coisas em sua vida pareciam novas e empolgantes. Quando tinha cerca de doze anos, ela e sua irmã haviam sido violentadas por um dos presbíteros de sua igreja. Em casa, a vida não era muito melhor. O pai de Amy era um empresário bem-sucedido que ficava ausente metade do ano; então, ao retornar, passava a outra metade agredindo fisicamente Amy, sua irmã e sua mãe. A vida no lar era materialmente confortável, porém fisicamente perigosa e desesperadora. Sua mãe adotara uma postura de “manter a paz” e ensinava a Amy: “É assim que todo casamento funciona”, conselho que Amy aceitou sem questionar.
Até conhecer Rick. Todos esperavam grandes coisas desse jovem promissor. Rick estava se preparando para o pastorado, no qual, sem dúvida, faria grandes coisas por Cristo. Amy começou a pensar: “Talvez minha mãe esteja errada.”
Abuso
“Quanto tempo de casamento demorou para você perceber que Rick não era quem você pensava?”, perguntei a Amy.
Sem hesitar por nem um segundo, ela respondeu: “Três dias. No início da lua de mel, ele agarrou meu cabelo, me bateu e me estuprou. Lembro-me de chorar no chuveiro naquela noite, percebendo que minha mãe estava certa. Acho que simplesmente todo casamento é assim.” O que se seguiu foram anos de abuso: chutes e murros; costelas quebradas e concussões; exigências perversas na cama; uma cirurgia renal que se tornou necessária após uma surra; ser trancada em um armário; ter os nós dos dedos pressionados sobre a boca quente de um fogão; e a lista continua. Em épocas boas, ele a machucava mensalmente; em épocas ruins, diariamente.
Rick também a ensinou a não o contradizer ou questionar, mesmo com questões triviais como: “Você quer frango ou carne?” Pedidos simples ameaçavam sua necessidade de dominação total, desencadeando violência. Rick também cortou os relacionamentos dela, inclusive com sua própria família, e restringiu seu acesso à internet e à mídia. Ele a mantinha dentro de casa e só permitia que saísse para a igreja ou para cumprir pequenas tarefas. Ela só ficava sabendo do noticiário ao chegar à igreja.
No que lhe dizia respeito, Amy mantinha os olhos na Bíblia. Ela lia passagens como: “Fazei tudo sem murmurações nem contendas” (Fp 2.14), repetindo essa frase para si mesma várias vezes. Ela se esforçava para ser uma boa cristã, submissa ao marido e à vontade do Senhor para a sua vida, confiando nos bons propósitos de Deus, mesmo nas provações. Amy não percebia que Satanás pode usar a Bíblia, também (cf. Mt 4.1-11).
Pedindo ajuda
Na primeira vez que fugiu de um dos arroubos violentos de Rick, Amy dirigiu até a casa de um dos copastores de seu marido. Ela apareceu sem sapatos e com o nariz sangrando. O pastor e sua esposa a receberam, ouviram, garantiram-lhe que todo casamento é difícil no começo, e então a mandaram para casa. Mais castigos físicos se seguiriam — só que agora piores, pois Rick a considerava uma traidora.
Esse padrão continuou ao longo dos anos, em várias igrejas. Ela mantinha o abuso em segredo o máximo que podia. Quando finalmente falava sobre o assunto com um dos copastores de Rick ou com uma esposa de pastor, às vezes acreditavam nela e tomavam medidas para confrontar Rick. Contudo, também a exortavam a voltar para casa e se esforçar mais para se submeter sem murmurar, o que, por sua vez, permitia que seu abuso continuasse e até piorasse.
Por fim, os colegas pastores de Rick o removeram do cargo. Exigiram que Rick e Amy buscassem aconselhamento conjugal especializado com um homem em quem Amy não confiava, pelo modo como ele olhava para as mulheres. Ela recusou. Nessa mesma época, Amy se separou de Rick. Os pastores reagiram excomungando Amy, e seus poucos amigos na igreja a evitavam. Por sinal, aquele conselheiro foi posteriormente removido de sua função por causa de infidelidade conjugal, ao passo que o pastor que exigira que Rick e Amy se aconselhassem com ele foi removido por causa de seus problemas com ira.
Antes do divórcio, Amy acionou a polícia várias vezes, quase sempre sem resultado. Porém, depois do divórcio, passou a ligar para a polícia com mais frequência, especialmente quando Rick praticava abuso contra as crianças. Ele foi preso algumas vezes. A justiça determinou que ele buscasse aconselhamento, mas nada conseguia impedi-lo de aparecer na casa de forma consistente e de continuar com todos os seus velhos hábitos.
Em certa ocasião, o advogado de Amy apresentou ao tribunal provas da violência de Rick contra uma das crianças. Os policiais confirmaram os fatos, e a própria criança testemunhou contra o pai. Parecia uma causa ganha para Amy. Todavia, o advogado de Rick inventou uma narrativa em que a criança estaria fora de controle, e que ele apenas tentara contê-la para evitar que se ferisse ou machucasse outras pessoas. Mais uma vez, o juiz ordenou que Rick buscasse mais aconselhamento e, em seguida, enviou a filha de volta para casa com o próprio pai — o homem violento e irado contra quem ela havia acabado de testemunhar.
Na audiência, como acontece com muitas vítimas de trauma, Amy esquecia detalhes, colocava os acontecimentos na ordem errada ou, às vezes, se contradizia. Ela entrava em pânico facilmente, o que levava a mais confusão no que estava dizendo.
A mesma coisa ocorria no gabinete de pastores ou conselheiros. As performances de Rick, no entanto, eram fluidas e convincentes. Sua habilidade natural com as pessoas, que outrora as convencera de que ele deveria se tornar pastor, funcionava a seu favor. Rick sabia como conquistar um auditório, bem como o que fazer para desestabilizar Amy. A diferença entre as versões pública e privada de Rick é bem descrita pelo salmista:
A sua boca era mais macia que a manteiga, porém no coração havia guerra; as suas palavras eram mais brandas que o azeite; contudo, eram espadas desembainhadas. (Sl 55.21)
Em público, Rick sutilmente persuadia com um discurso brando como o azeite. Em particular, desembainhava as espadas e declarava guerra.
Uma lição que aprendi, ao ver Amy batalhar com seu agora ex-marido pela guarda dos filhos, é o quão complicados casos de abuso podem se tornar nos tribunais, até mesmo quando se trata de abuso físico. Regras sobre o que conta como evidência admissível ou testemunho confiável, além da difícil escolha entre fazer um acordo ou ir a julgamento, custarão a uma mãe solteira dezenas de milhares de dólares (dinheiro que ela não tem) com despesas judiciais e honorários de advogado. É fácil dizer: “Basta chamar a polícia!” para uma esposa que está sendo espancada. Contudo, mergulhe nos emaranhados de suas circunstâncias reais e você descobrirá como a justiça e a proteção podem ser ilusórias. Também é fácil supormos que a polícia e os tribunais são bons e honestos. Mas com que frequência esse não é o caso? Você diria: “Basta chamar a polícia!” para um afro-americano no Sul dos EUA durante as Leis Jim Crow ou para uma esposa muçulmana no Afeganistão de hoje?
Impiedade, até mesmo na casa da justiça
Um único versículo que captura a história de Amy, assim como tantas outras histórias, é Eclesiastes 3.16: “Descobri também que debaixo do sol: No lugar da justiça havia impiedade, no lugar da retidão, ainda mais impiedade” (NVI). O autor vai ao tribunal esperando por justiça, mas recebe impiedade. Caminha até o templo esperando por retidão, mas encontra mais impiedade ainda.
Quão caído é o mundo e suas autoridades!
Cada uma das autoridades estabelecidas por Deus na vida de Amy fracassou com ela, seja por abusar dela ou por deixar de protegê-la do abuso. Seu pai falhou com ela, assim como seu marido, seus pastores, várias igrejas e até os tribunais. Será que ainda há alguma categoria de autoridade para nomear que não seja culpada dessa acusação? Não consigo pensar em nenhuma.
Uma vez, pedi a Amy por e-mail uma recomendação de advogado para outra mulher que fora espancada pelo marido. Amy respondeu: “Essa mulher vai acabar gastando uma quantidade considerável de tempo (anos) e dinheiro (dezenas de milhares), e tudo o que ela fizer vai enfurecer ainda mais o marido.” Não só isso: “O advogado de defesa do marido dela vai passar horas na tribuna tentando desacreditá-la, atacando-a como pessoa e fazendo dela uma mentirosa, uma louca, uma mãe ruim e assim por diante. Cada erro que ela já cometeu na vida será exagerado, distorcido e fogueteado diante de um tribunal de completos estranhos.” Amy concluiu: “Seja como for, eu imploro: não ofereça a ela nenhum tipo de esperança de que o sistema judicial a protegerá. Não estou falando apenas a partir da minha experiência pessoal, mas de ouvir histórias em grupos de apoio, enquanto vivia em abrigos e tendo passado pelo sistema.”
A experiência de Amy não é o quadro completo, mas é parte dele. Lembre-se novamente da triste realidade de Eclesiastes 3.16.
Evidentemente, Amy não foi a primeira pessoa a encontrar maldade nos lugares da justiça e da retidão. Aconteceu primeiro com Deus. Quando Deus foi caminhar pelo jardim na viração do dia, Adão e Eva se esconderam, e Deus gritou: “Onde estás?” O jardim deveria ser um lugar de justiça e retidão, mas Deus encon- trou impiedade ali.
Para uma criatura exercer autoridade, ela deve estar debaixo de autoridade. A Queda ocorreu quando Adão e Eva, tendo sido colocados por Deus em posição
de autoridade, saíram de debaixo da autoridade dele. Eles pensaram que poderiam se colocar em pé de igualdade com o Senhor e ser “como Deus”, como a serpente prometera (Gn 3.5).
Para Satanás, a autoridade é como o martelo e a serra que uma criança encontra na oficina do pai. O pai os usa para construir coisas, mas a criança os utiliza para destruir. E o que Satanás busca destruir é principalmente a adoração. Ele busca suplantar Deus.
Conclusão
Já ouvi dezenas de vezes (literalmente) um velho amigo pastor advertir: o abuso de autoridade é um pecado especialmente odioso, pelo modo como deturpa a verdade sobre Deus e como usa a autoridade dele de forma distorcida.
De fato, poucos dias atrás, ouvi-o explicar novamente a alguém: “Se você quiser arruinar verdadeiramente uma pessoa, pegue a autoridade que você tem na vida dela e abuse dela. Será como se você se colocasse entre ela e Deus, falando em lugar de Deus da maneira mais enganosa e caluniosa possível.” Ele prosseguiu, explicando que os casos em que os pastores provavelmente gastam mais tempo são com esposas que sofreram abusos: “Elas estão divididas entre seu amor por Deus e seu amor pelo marido. É extremamente confuso.” A mesma situação se aplica a crianças abusadas, talvez até mais.
Reitero: você não terá compreendido o propósito deste capítulo se sair apenas refletindo sobre quão terríveis são as outras pessoas. Você e eu precisamos ser como o publicano, que batia no peito e clamava: “Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (Lc 18.13). Não queremos que nem sequer um fragmento, um til, uma partícula dessa impiedade atue em nossa cabeça, em nosso coração ou em nossas mãos enquanto lideramos os outros.
Em sua misericórdia, Deus usa até mesmo as autoridades más e egoístas para o bem neste mundo caído. Todavia, nosso objetivo constante deve ser o arrependimento de qualquer forma de maldade e o anseio por exercer autoridade à semelhança de Cristo. É para esse ponto que nos voltamos agora.

Este artigo é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Autoridade redimida, de Jonathan Leeman, Editora Fiel (em breve).
