Para compreender corretamente a autenticidade, precisamos definir nossos termos. Porque “autenticidade” é uma daquelas palavras que passaram por transformações. Se você procurar na internet, encontrará definições variadas. Aqui estão três delas:
Viver a sua vida de acordo com seus próprios valores e objetivos.[1]
Agir de modo a revelar o seu próprio eu e como você se sente.[2]
Real ou genuíno: não copiado ou falsificado.[3]
Note que as três apresentam pequenas diferenças. A primeira se baseia totalmente na construção de si mesmo. E acredito ser esse o pensamento da maioria das pessoas quando falam sobre viver de modo autêntico hoje em dia. De acordo com essa definição, eu faço as regras e as sigo, não importa o que os outros digam. É outra maneira de dizer “viva a sua verdade”. Mas, como aprendemos no capítulo 3, viver conforme a sua própria verdade não funciona assim tão bem. É autenticidade artificial.
E a definição seguinte? “Agir de modo a revelar o seu próprio eu e como você se sente.” Isso chega um pouco mais perto. Nós deveríamos ser honestos a respeito de nossos sentimentos e celebrar a exclusividade de nossos dons, talentos e personalidade. Não somos bonecos de biscoito, todos cortados pelo mesmo molde com o exato mesmo propósito. Não deveríamos aparecer na igreja e nos gabar de quão vitoriosa foi a nossa semana se na realidade mal conseguimos nos levantar da cama naquela manhã.
E a terceira? “Real ou genuíno: não copiado ou falsificado.” Essa acerta em cheio. Essa definição inclui a ideia de que nós deveríamos ser honestos a respeito de nossos sentimentos (genuínos), mas tira o contexto do domínio do eu e o inclui no domínio da verdade. É o oposto da autenticidade artificial, que é um paradoxo. Viver conforme a verdade é a maneira mais autêntica de se viver porque é o que fomos feitos para fazer.
A Bíblia tem muito o que dizer sobre quem somos e como viver essa identidade de modo autêntico. Conforme João 1.12, a todo aquele que recebe a Cristo e crê em seu nome é dado o direito de ser feito filho de Deus. É maravilhoso e surpreendente — nossa identidade não está vinculada a nós, mas sim a ele. O apóstolo Paulo nos diz, em Gálatas 2.20, que quando nos tornamos seguidores de Jesus é como se tivéssemos sido crucificados com Cristo. Isso significa que nós de fato morremos para a nossa vida antiga e não vivemos mais para nós mesmos. Na verdade, Paulo escreve: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim.” Não quer dizer que os talentos, personalidades e dons exclusivos com os quais fomos criados estão mortos. Em vez disso, de modo contínuo, nós mortificamos os pecados que mancham e desonram as qualidades e virtudes dadas por Deus. Isso nos liberta para sermos quem realmente fomos criados para ser.
Paulo nos diz, em 2 Coríntios 5.17, que se alguém está em Cristo, é nova criatura. As coisas antigas já passaram, e fomos literalmente feitos novos. Mas que fundação para se construir! Autenticidade começa com uma morte. De modo específico, a morte do “eu” e o redirecionamento do viver para Cristo.
Encontrar o nosso “eu” autêntico?
Cristo pagou um preço imensurável para nos redimir; não há dúvidas de que nos envolvemos em problemas quando enfatizamos nossa identidade caída acima dele. Brené Brown é uma professora, pesquisadora, palestrante e autora que escreve sobre vergonha e vulnerabilidade. Apesar de ter sido batizada na Igreja Episcopal quando criança, ela foi criada como católica até se desvincular de organizações religiosas na juventude. Aproximadamente 20 anos depois, ela e seu marido retornaram à Igreja Episcopal porque ela queria encontrar “uma casa espiritual onde há lugar para todos.”[4] Ela é muito popular na indústria da autoajuda, e vários cristãos buscam nela sabedoria para lidar com questões relacionadas à autenticidade. Em seu livro Braving the wilderness [Enfrentando o deserto], ela escreveu:
Pertencimento real é a prática espiritual de acreditar e pertencer a si mesmo de maneira tão profunda que você é capaz de compartilhar o seu eu mais autêntico com o mundo e encontrar sacralidade tanto em ser parte de algo como em estar sozinho no deserto. Pertencimento real não requer que você mude quem você é; requer que você seja quem você é.[5]
Jen Hatmaker inclui a citação de Brown em seu livro Fierce, free and full of fire [Feroz, livre e em chamas]. Em seu comentário, ela menciona sua “incômoda natureza profética” que a impede de prosperar como uma “líder feminina cristã na subcultura evangélica”. A respeito da incapacidade dela de reprimir essa parte de sua identidade, Hatmaker diz: “Estou completamente preparada para identificar, lamentar e confrontar injustiças. Isso não é algo que eu faço. Isso é quem eu sou.”[6] Eu quero analisar o que Brown e Hatmaker estão dizendo aqui, mas primeiro eu gostaria de fazer uma observação. Tenho visto alguns líderes cristãos progressistas definirem-se como “proféticos”. De certo modo, eu entendo o que eles estão querendo dizer. Eles acreditam estar falando a verdade com poder. Mas ainda que possa ser dito que seus livros são tietados por celebridades, elogiados como os mais recentes grandes milagres da autoajuda e tenham lugar de destaque na lista de mais vendidos do New York Times, há grandes chances de você não estar sendo profético. E se a maioria em uma cultura sem Deus ama a sua mensagem, há grandes chances de você não estar sendo profético. No Evangelho de Lucas, Jesus fala: “Ai de vós, quando todos vos louvarem! Porque assim procederam seus pais com os falsos profetas” (6.26). Eles mataram os profetas. Eles adoram influenciadores que santificam pecados. Verdadeiros profetas sempre permaneceram contra o pecado e chamaram as pessoas ao arrependi- mento, o que em geral provocou a perseguição e morte dos reais profetas. Foram os falsos profetas que saíram por aí assegurando uma falsa paz, garantindo que tudo ficaria bem e que Deus não iria de fato julgar as pessoas (Jr 6.13-14).
Agora, vamos destrinçar as afirmações de Brown. Ela argumenta que você está preparado para compartilhar o seu eu mais autêntico com o mundo ao “acreditar em você mesmo e pertencer a si mesmo”. Ela está convocando seus leitores para construir seus alicerces em que tipo de fundação? Lembra da introdução, quando discutimos sobre construir sua casa na rocha ou na areia? Para compreender corretamente a autenticidade, é preciso construir sobre uma fundação sólida.
Quando enxergamos o “eu” como a fundação, como Brown parece defender, estamos construindo em solo instável, vulnerável à qualquer afirmação positiva atual que soe certa ao nosso eu mais “autêntico” naquele momento. Lógico, percebi que uma das coisas mais controversas que se pode dizer nas mídias sociais nos EUA atualmente é: “meu ‘eu’ está quebrado”. Eu sei. Eu entendo. Não devemos dizer uma coisa dessa. Devemos dizer que somos lindos, inocentes, inquebráveis, suficientes e perfeitos, tudo graças a nós mesmos. Você nunca encontrará um especial da Netflix com a mensagem “eu estou quebrado”. Mas como isso tem funcionado para nós? Já imaginou se tudo o que precisássemos fazer fosse nos conectar com nossos deuses e deusas interiores? As redes sociais seriam um lugar bem mais amigável, não seriam?
E isso nos leva de volta à citação de Hatmaker: “Estou completamente preparada para identificar, lamentar e confrontar injustiças. Isso não é algo que eu faço. Isso é quem eu sou”. Identificar, lamentar e confrontar injustiças são boas atitudes, certo? Com certeza. A menos que você tenha se divorciado da definição bíblica de justiça e começado a acreditar em sua própria definição. Deus reprova injustiças todas as vezes. Vai contra à sua natureza e caráter. Deus é justo. Considerando que isso é um dos seus atributos, é melhor definirmos justiça como ele faz. A justiça de Deus equivale à sua lei. Na verdade, por mais que sejam duas palavras diferentes em português (“justiça” e “lei”), elas são traduções do mesmo grupo de palavras no Hebraico e Grego.[7] Em outras palavras, elas descrevem o mesmo atributo de Deus.
Visto que a justiça bíblica começa com o caráter e a natureza de Deus, e não com o nosso próprio senso interior de certo e errado, não depende de nós determinar se a justiça que estamos perseguindo em nosso mundo é bíblica. A definição de justiça da atual cultura é um reflexo do que o mundo (ou nosso próprio coração) está dizendo que é bom, moral e verdadeiro. Justiça bíblica é um reflexo do que Deus diz que é bom, moral e verdadeiro. São duas coisas muito diferentes e que podem, em geral, ser opostas! Se definimos justiça como a nossa atual cultura faz, podemos acabar violando a definição de Deus sobre justiça quando defendermos algo que ele considera mau e condenarmos algo que ele considera bom. Você consegue perceber como uma definição de justiça não-bíblica pode, na verdade, gerar injustiça? Você consegue perceber que basear sua identidade nos seus próprios instintos defeituosos pode ser um jogo perigoso?
Na introdução de Fierce, free and full of fire, Hatmaker escreve que ela finalmente sabe quem ela é, o que a capacita a ajudar seus leitores a descobrirem quem eles são. Ela comemora que o seu exterior finalmente combina com o seu interior “sem suplicar, posar ou fingir”.[8] Isso introduz o tema que é tratado ao longo do livro: você pode ser honesto quanto aos seus próprios desejos, inclinações e verdadeiro eu ou pode ser uma farsa, influenciável, um espectador passivo da sua própria vida. Essa é uma falsa dicotomia, mas eu consigo entender o motivo de ser tão atraente. Ninguém quer ser uma estátua ou um capacho. Não queremos, todos nós, que o nosso exterior combine com o interior?
O sutil problema com essa metodologia é que o nosso interior não está sempre certo a respeito de questões como moralidade, sexualidade ou definições de palavras como amor e justiça. Como cristãos, precisamos submeter nossa vida à autoridade das Escrituras, e algumas vezes isso requer abdicar de nossos desejos, nos arrepender de tendências pecaminosas e reformular nossas ideias para se alinharem à verdade revelada de Deus. Quando não fazemos isso, podemos nos encontrar lutando contra Deus e tentando construir nossa identidade sobre uma fundação rachada.

Este artigo é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Não é errado se me faz feliz : e outros enganos desta geração, de Alisa Childers, em breve pela Editora Fiel.
[1] Mark McCormack, “Authenticity: be true to yourself ”, HRZone, disponível em: https://www.hrzone.com/community/blogs/mark-mccormack/authenticity- be-true-to-yourself, acesso em: 17 jul. 2023.
[2] “The big personal values list and their meanings”, Harmonious Way, disponível em: https://harmoniousway.com/blog/the-big-personal-values-list-and-their- meanings/, acesso em: 17 jul. 2023.
[3] Britannica Dictionary, s.v. “authentic”. Disponível em: https://www.britannica. com/dictionary/authentic. Acesso em: 17 jul. 2023.
[4] Lisa Capretto, “Why Brené Brown ‘abandoned’ the church — and why she went back”, HuffPost, outubro 16, 2015. Disponível em: https://www.huffpost.com/entry/brene–brown-church_n_56200e7be4b069b4e1fb6e7a. Acesso em: 17 jul. 2023.
[5] Brené Brown, Braving the wilderness (New York: Random House, 2017), p. 40.
[6] Jen Hatmaker, Fierce, free, and full of fire: the guide to being glorious you (Nashville: Nelson Books, 2020), p. 8.
[7] Wayne A. Grudem, Systematic theology: an introduction to biblical doctrine (Grand Rapids, MI: Zondervan Academic, 2020), p. 204 [edição em português: Teologia sistemática: complete e atual, 2. ed. rev. e amp. (São Paulo: Vida Nova, 2022)].
[8] Jen Hatmaker, Fierce, free, and full of fire (Nashville: Nelson Books, 2020), p. xiv.
