domingo, 17 de novembro
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A dor é um meio, e não um obstáculo

O trecho abaixo foi extraído com permissão do livro Santificação profunda, de Dane C. Ortlund, Editora Fiel.

 

Maturidade cristã

Nossos instintos naturais nos dizem que o caminho para avançarmos na vida cristã é evitarmos a dor, para que, assim, não distraídos, nos dediquemos à tarefa imediata de crescer em Cristo. Porém, Novo Testamento nos diz, repetidas vezes, que a dor é um meio, e não um obstáculo, para nos aprofundarmos na maturidade cristã. A angústia, o desapontamento e a futilidade que nos afligem são blocos edificadores de nosso crescimento. Somos “herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados” (Rm 8.17). Conhecemos mais profundamente Cristo quando compartilhamos “dos seus sofrimentos” (Fp 3.10). Porque “toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça” (Hb 12.11). A dor fomentará o crescimento de uma forma única, desde que o permitamos.

A universalidade da dor

Um esclarecimento que precisamos fazer neste exato momento é que todos nós experimentamos a dor. Digo isso porque é comum, em alguns segmentos da igreja ocidental, falar, pregar e escrever como se apenas em outras partes do mundo os crentes sofressem de dor.

Sem dúvida, é verdade que a perseguição pública não é um fenômeno universal. Também é claramente perceptível que alguns crentes de outras partes do mundo (escrevo do Ocidente e na qualidade de ocidental) enfrentam toda sorte das mais variadas dificuldades que muitos de nós não enfrentamos — escassez de água potável, ostracismo social, restrições governamentais de reuniões públicas para culto, pobreza, cuidado de saúde precário, falta de bons recursos bíblicos e teológicos, abundância de teólogos da prosperidade, que seduzem e enganam os crentes, e assim por diante.

No entanto, essa nota de relativo conforto circunstancial no Ocidente pode, por vezes, ser tocada de modo a minimizar e obscurecer a dor peculiar às vidas de todos os crentes. Nenhum cristão, a despeito do lugar onde vive, está imune às experiências dolorosas de um câncer, à traição de irmãos em Cristo, ao desapontamento vocacional, às desordens psicológicas, às frustrações emocionais, a filhos rebeldes, a chefes abusivos ou a centenas de outras adversidades.

Contudo, quando menciono a universalidade da dor, tenho em mente outra coisa, algo que subjaz a todos esses exemplos concretos de adversidade. Para todos nós que vivemos entre os dois primeiros capítulos da Bíblia e os dois últimos, há uma futilidade que permeia tudo — nossa mente, nosso coração, nossa consciência, cada pensamento, cada palavra, cada reunião, cada e-mail e cada novo amanhecer —, há algo difícil de articular que infecta tudo. Um senso de perda, de frustração, de não florescer, de abatimento, de falta de propósito angustiante, de desperdício de tempo e esforço, de incapacidade de seguir em frente. A Bíblia trata disso e nos diz que a criação “foi submetida à futilidade” (Rm 8.20, NVI) e “geme” como uma mãe no parto (Rm 8.22). Devemos ser cuidadosos para entender que a expressão “toda a criação” (Rm 8.22) não diz respeito a toda a ordem natural criada, menos os humanos. Estamos inclusos nessa futilidade. O texto prossegue dizendo que nós também “gememos em nosso íntimo”, enquanto aguardamos que Deus corrija todas as coisas no final (Rm 8.23). Somos como um belo carro que tenta chegar do ponto A ao ponto B, mas o motor e partes interiores, sob o capô, estão totalmente emporcalhados. Não funcionamos como deveríamos.

Miséria, trevas, angústia, remorso, vergonha e lamento afetam tudo que dizemos e pensamos. A realidade de pesadelo mostra que essa dor e essa futilidade alcançam até mesmo nosso subconsciente e nosso sono. Não podemos ir a lugar algum para escapar da futilidade e da dor da vida neste mundo caído. Isso é verdadeiro em relação a todos os crentes e também, obviamente, aos incrédulos. Contudo, para os crentes, a dor é diferente, porque sabemos e sentimos de forma mais profunda que Deus não criou um mundo em que havia dor. As coisas não deveriam ser assim. É por isso que Romanos 8 conecta nosso gemido com a presença das “primícias do Espírito” (v. 23). Nós, crentes, fomos ressuscitados espiritualmente, mas ainda não fomos ressuscitados fisicamente. Essa dissonância acentua nossa consciência de que nossa pequena existência caída é imperfeita. Toda cultura suporta diariamente as futilidades da vida neste mundo caído — aquele senso premonitório de total absurdo que permeia a vida e nos envolve em novo desespero a cada nova manhã.

A dor não é uma ilha em nossa vida, mas o oceano. O desapontamento ou a decepção é o palco em que toda a vida se desdobra, e não uma aberração ocasional numa vida confortável e tranquila.

O que quero dizer neste capítulo é que um bloco crucial que edifica nosso crescimento na graça é uma abertura humilde ao recebimento da amargura da vida como o caminho amoroso de Deus para nos tirar da miséria do ego e nos conduzir a uma maturidade espiritual mais profunda. Por meio da dor, Deus está nos chamando para cima, “à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4.13). Devemos ser cuidadosos e cautelosos em relação à forma como abordamos esse assunto, pois estamos lidando com uma realidade que não é mera abstração teológica. Este capítulo é como remover um curativo de uma ferida aberta e realizar uma desagradável punção. A primeira coisa a ser feita com aqueles que experimentam uma dor nova em sua vida não é dar-lhes um livro, ou indicar-lhes um versículo, ou ainda lhes dar um lembrete teológico. A Bíblia diz: “Chorai com os que choram” (Rm 12.15), e não “ofereçam respostas teológicas aos que choram”. Uma palavra de explicação teológica, ainda que seja uma palavra verdadeira de explicação teológica, dada a pessoas que vivenciam dor severa agrava a dor. Elas não precisam que as encaremos e falemos sem parar. Precisam que estejamos a seu lado, chorando. O fato de que, na Bíblia, Romanos 8.28 vem antes de Romanos 12.15 não significa que deve vir primeiro em nosso aconselhamento e em nossas amizades.

No entanto, embora haja um tempo de chorar, há também um tempo de pensar (Ec 3.1-8). Durante todo o curso de nosso discipulado em Cristo, temos de edificar um profundo e forte alicerce para entender como processar e até mesmo redimir a angústia de nossa vida. Sem esse alicerce, nosso crescimento em Cristo será severamente limitado. Esse é o principal ensino deste capítulo.

Cortando galhos

Todos nós somos como uma videira saudável, a qual tem a inclinação perversa de envolver todas as suas gavinhas ao redor de uma árvore venenosa que pareça nutritiva, mas que, na verdade, a enfraquece. Fomos advertidos de que abraçar tal árvore nos matará, mas não conseguimos sair dessa situação. Nós nos emaranhamos ao redor dela. Há apenas um recurso para o viticultor amoroso. Ele tem de nos cortar para nos deixar livres. Ele deve até mesmo podar galhos inteiros. O viticultor tem de nos fazer passar pelo caminho estreito da perda, pela dor de sermos diminuídos, de sermos reduzidos, para que possamos libertar-nos.

O mundo e suas ofertas fraudulentas são como aquela árvore venenosa. Nosso Viticultor celestial nos ama tanto que não nos deixará continuar a cometer suicídio de alma, à medida que nos tornamos mais profundamente ligados ao mundo. Por meio da dor do desapontamento e da frustração, Deus nos desapega do amor a este mundo. Parece que estamos sendo mutilados, como se estivéssemos morrendo. Mas, na realidade, estamos sendo libertos dos falsos prazeres deste mundo.

Em 1949, C. S. Lewis escreveu para Warfield Firor, um professor norte-americano de cirurgia, e, com uma revigorante honestidade, disse:

Está tudo lá no Novo Testamento […] “Morrendo para o mundo” — “o mundo está crucificado para mim, e eu, para o mundo”. E acho que ainda nem comecei; não, pelo menos, se isso significa (e pode significar menos) desligar-se resoluta e progressivamente de todas as motivações provenientes dos objetos meramente naturais ou mundanos. É como treinar uma trepadeira a crescer numa parede, e não em outra. Não me refiro ao desligamento em relação a coisas erradas em si mesmas, mas, digamos, da própria noite agradável que esperamos ter ao saborearmos um presunto amanhã à noite ou em relação à própria satisfação em meu sucesso literário […] Não se trata das coisas nem mesmo do prazer nelas, mas do fato de que nesses prazeres meu coração — ou grande parte dele — repousa.

Ou, dito de maneira fantástica, se uma voz me dissesse (uma voz na qual eu não pudesse deixar de crer): “você nunca verá a face de Deus, nunca ajudará a salvar a alma de seu vizinho, nunca será liberto de seu pecado, mas viverá em saúde perfeita até os cem anos, será muito rico, morrerá como o homem mais famoso do mundo e passará para um estado um tanto turvo de consciência, de um tipo vagamente agradável, por toda a eternidade”, em que medida isso me deixaria preocupado? Em que medida, quando comparamos essa possibilidade com outra guerra ou mesmo com um anúncio de que eu teria de extrair todos os meus dentes? Você consegue perceber? E que direito tenho de esperar a Paz de Deus, enquanto coloco todo o meu coração — pelo menos, todos os meus desejos mais intensos — no mundo contra o qual ele me adverte?

Bem, graças a Deus, não ficaremos presos ao mundo. Todos os terríveis recursos de Deus (mas somos nós que o forçamos a usá-los) serão trazidos contra nós para nos separar do mundo — insegurança, guerra, pobreza, dor, impopularidade, solidão. Temos de aprender que essa ten- da não é nosso lar.

Aqui, Lewis expõe nosso coração. Nós, que somos honestos para conosco, reconhecemos quão intrincadamente entrelaçada está a vinha de nosso coração neste mundo. Isso não significa que devemos recusar-nos a gozar as coisas boas do mundo — uma refeição favorita, um lindo pôr do sol, os prazeres íntimos de um cônjuge, a satisfação de um trabalho bem-feito. Resistir totalmente a esses prazeres é, de acordo com os apóstolos, algo demoníaco (1Tm 4.1-5). Em vez disso, devemos reconhecer que nosso coração se apegará a qualquer coisa deste mundo que seja desprovida de Deus e buscará obter forças desse objeto criado, e não do Criador e de seu amor. A qualificação bíblica para essa inclinação perversa de nosso coração, a inclinação de buscar as coisas do mundo para satisfazer a sede de nossa alma, é idolatria. A idolatria, conforme defini no capítulo 5, é a insensatez de pedir a uma dádiva que se torne o doador. A Bíblia nos instrui a depositar no próprio Deus nossos anseios e anelos supremos. Somente ele pode nos satisfazer (Sl 16.11), e ele promete que o fará ( Jr 31.25).

O problema é que não podemos, por nossos próprios recursos, remover do mundo as esperanças mais profundas de nosso coração e colocá-las em Deus. Pensamos que podemos. Tentamos. Porém, isso é como uma criança que vai para uma cirurgia de coração confiante de que é capaz de reparar por si mesma o próprio coração. Ela precisa que um cirurgião atente para o seu caso e empregue toda a sua expertise médica na operação.

Também precisamos de uma cirurgia de coração. Precisamos, igualmente, dos recursos de um médico, o médico divino, que não somente tem toda a expertise necessária, como também nos envolveu em seu amoroso coração e nos ama com um amor tão amplo quanto seu próprio ser (Ef 3.18-19).

A operação dura toda a vida e costuma machucar, mas está nos curando.


Autor: Dane C. Orland

Dane C. Ortlund (PhD, Wheaton College) serve como pastor principal da Naperville Presbyterian Church, em Naperville, no estado de Illinois. É o autor de Manso e humilde: o coração de Cristo para quem peca e para quem sofre. Dave e sua esposa, Stacey, têm cinco filhos.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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Um modelo de maturidade cristã a partir de várias passagens da Escritura que leva a uma maior conformidade com a imagem de Deus.