Ao considerar este assunto bastante prático, penso que um estudo sobre o apóstolo Paulo como o pregador ideal, observando especialmente seus métodos e princípios, nos será proveitoso. Em Gálatas 1, podemos obter certos princípios que influenciaram o apóstolo neste assunto. Dois princípios são revelados, em especial, nesse capítulo. O primeiro é a maneira como Paulo enfatiza o cuidado que devemos ter ao expor a verdade, tal como ela é apresentada na Palavra. Quando pregamos, precisamos ser cuidadosos para falar exatamente o que está registrado na Palavra de Deus. O segundo princípio enunciado aqui refere-se à atitude que devemos adotar para com aqueles que proclamam outro evangelho. Ao invés de encorajá-los, devemos evitá-los como pessoas sobre quem repousa a maldição do Senhor. A linguagem que Paulo utilizou nesta passagem é bastante severa. Ele disse que, se ele mesmo voltasse atrás e pregasse um evangelho diferente daquele que já havia anunciado, deveria ser anátema. Mesmo se um anjo viesse dos céus e pregasse outro evangelho, os crentes da Galácia não deveriam receber esse evangelho.
É óbvio que hoje Paulo seria visto como um extremista, pois vi- vemos numa época em que não há lugar para homens assim. Mas não desejamos chamá-lo de extremista. Podemos descrevê-lo como um homem sem rodeios; e isto é o que nossa época necessita, mais do que qualquer outra coisa, homens que sejam francos em proclamar o evangelho, tal como ele foi entregue aos apóstolos, pelo Espírito do Senhor, em sua própria Palavra.
Primeiramente, vejamos o que está implícito quando usamos a expressão “comprometimento na pregação”. Nisso, há dois fatores envolvidos. O primeiro é que existe uma norma ou um padrão que tem de ser preservado puro e completo. O outro fator implícito é que existe um poder ou uma influência contrária. Comprometer a pregação significa conceder tanto à influência ou ao poder contrário, a fim de que nosso ponto de vista ou nossa mensagem possa ser abraçada por aqueles que defendem o outro ponto de vista. É uma espécie de barganha. Isto é algo muito proeminente na vida contemporânea. Aonde quer que você vá, sempre encontra homens barganhando, a fim de que outros aceitem o que eles têm a dizer.
Isso existe em escala internacional. Estadistas se reúnem, por exemplo, de tempos em tempos, em diferentes partes do mundo; e, em todas as suas reuniões barganham na esperança de fazerem certas concessões, para cada lado, de modo a alcançarem algo que satisfará ambos os lados. Quando pensamos no relacionamento entre patrões e empregados, encontramos a mesma coisa. E no âmbito eclesiástico isso é ainda mais prevalecente. Para que haja união entre as igrejas, espera-se que umas façam concessões a outras.
Expressando-o de forma mais clara e simples, comprometer significa dizer: “Se você me der dois centavos, eu lhe dou um centavo, e ficamos quites”.
Esse é o princípio que norteia o comprometimento; e a sabedoria desse mundo o aprova, dizendo: “Meio pão é melhor do que pão nenhum”. Se você se mantiver firme em seus princípios e recusar abrir mão de qualquer coisa, a outra pessoa será tão teimosa quanto você. Aonde você chegará? A lugar nenhum. Mas a sabedoria dos céus afirma algo diferente: “Ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema”.
Quanto à pregação do evangelho, nossa norma ou padrão é aquilo que está declarado na Palavra de Deus, e, ao proclamarmos essa mensagem, nos defrontamos com muitas teorias contrárias propostas em nome do mesmo evangelho. É exatamente nisso que está o perigo. Os pregadores precisam ser cuidadosos em declarar todo conselho de Deus. Ao pregar o evangelho, precisamos ter o cuidado de pregar cada aspecto do evangelho. Não temos o direito de ignorar qualquer parte do conselho de Deus. Já ouvi alguém dizer: “Ah! eu creio na doutrina da eleição, mas não a proclamo”. Nenhum homem que, em nome do evangelho, anuncia a Palavra de Deus, tem o direito de reter qualquer parte da Palavra e dizer: “Eu creio nisso, mas não o ensino, porque as pessoas não estão preparadas para aceitá-lo”. Deus sabe melhor do que nós. A doutrina da eleição está em sua Palavra para ser anunciada por aqueles que proclamam essa Palavra. Temos de pregar todo o conselho de Deus, e não deve haver qualquer modificação nessa mensagem. Ele requer que mantenhamos o padrão da Palavra que nos foi entregue — “Mantém o padrão das sãs palavras” (2 Tm 1.13).
Consideremos, em segundo lugar, como podemos comprometer o evangelho. Entretanto, antes de tratarmos deste assunto, permitam-me dizer que, como pregadores do evangelho, precisamos usar o bom senso. Não há qual- quer ocasião para sermos desnecessariamente ofensivos. Alguns pregadores são descuidados na abordagem que utilizam. Parecem estar dizendo a coisa errada. Como pregadores, é provável que acabemos ofendendo alguém, e não somos capazes de impedi-lo. A fidelidade tal- vez exija isso, mas quero dizer que não devemos ser desnecessariamente ofensivos. Precisamos cuidar para não demonstrarmos preconceito; pois se despertamos preconceitos em nossos ouvintes, isso fechará a porta de suas mentes àquilo que temos a dizer-lhes. Precisamos cuidar também para não fatigar nossos ouvintes. Há alguns pregadores que têm dificuldade em saber quando parar. Lembro-me de nosso velho diretor McCulloch, de Glasgow, que costumava falar com freqüência acerca “daquele dom fatal da fluência”. Temos de usar nosso bom senso. Entretanto, no momento em que nos deparamos com outro evangelho, não podemos nos demorar pensando em evitar a ofensa. Temos uma batalha a travar em nome de nosso Senhor.
De que maneira estamos sujeitos ao comprometimento? Podemos comprometer o evangelho ao procurar agradar nossos ouvintes. Gostamos de agradar as pessoas; isso é bastante natural. Ficamos felizes quando as pessoas dizem que apreciam nossa mensagem. Existe, portanto, o perigo de irmos longe demais ao pro- curarmos agradar nossos ouvintes. Talvez cheguemos ao ponto de nos afastarmos da verdade. Outra maneira de nos comprometermos é pregar apenas um aspecto do evangelho. Existem dois aspectos no evangelho: um é magnífico, o outro, tenebroso. As pessoas naturalmente gostam de ouvir sobre o aspecto magnífico do evangelho; gostam de ouvir sobre o amor de Deus, o poder de Cristo para salvar, as coisas que aguardam aqueles que se entregaram ao Senhor, a plenitude das promessas e assim por diante. Nós gostamos muito de ouvir essas coisas, mas não podemos negligenciar o outro aspecto do evangelho, onde existem as sombras. Temos de lidar com o pecado, revelando-o em sua triste realidade bíblica, como uma ofensa indizível à santa lei de Deus. Precisamos abordar as conseqüências da negligência ou da rejeição do evangelho, por parte de nossos ouvintes. Essas coisas não podem ser escondidas. Se pregarmos apenas um aspecto do evangelho, somos culpados de comprometimento.
Existe, também, o comprometimento de fazermos muitas concessões ao modernista. Para enfrentarmos o modernista, talvez achemos aconselhável fazer-lhe certas concessões. Mas não temos necessidade de ceder nada, porque, afinal de contas, nada temos em comum com ele. Ele é inimigo do Senhor Jesus Cristo e inimigo daquela fé que professamos. Não deveríamos tentar aprimorar o evangelho. Não pode- mos melhorá-lo; é presunção tentarmos melhorar aquilo que Deus, em sua perfeição, nos outorgou. Se começarmos a brincar com o evangelho, diminuindo aqui e acrescentando ali, para torná-lo mais aceitável aos nossos ouvintes, não podemos esperar que Deus abençoe aquilo que Ele não outorgou. Temos de pregar o evangelho assim como ele se encontra na Palavra de Deus; e, quando nos propomos a expor um texto, precisamos declarar exatamente o que o texto afirma.
Por que os homens esperam que nos comprometamos? A razão fundamental é que os homens, por natureza, possuem uma aversão inata pelo evangelho. Existem verdades agradáveis no evangelho; eles estão preparados para ouvir apenas essas. Há outras verdades, entretanto, que eles não estão preparados para aceitar. Em relação a estas, eles esperam que nos comprometamos. Eles prefeririam que nada falássemos sobre tais verdades. Vejamos algumas verdades a respeito das quais eles esperam que comprometamos o evangelho:
A primeira é a doutrina da ruína do homem por causa da Queda — a total corrupção de nossa natureza.
Os homens gostam que mantenhamos oculta essa doutrina. Eles não gostam de ouvir que, através da Queda, perdemos a comunhão com Deus, estamos debaixo de sua ira, de sua maldição e somos incapazes de cumprir sua lei. Entretanto, devemos pregar essa verdade continuamente para que os homens compreendam que são pecadores. A primeira coisa necessária na apresentação do evangelho é mostrar aos homens sua necessidade como pecadores. Somente então eles podem valorizar o evangelho. Portanto, a doutrina da depravação total do homem é uma verdade que devemos proclamar constantemente logo de início, não importa em que situação esteja nosso auditório ou de quem ele seja constituído.
Outra verdade que espera-se não mencionemos é o fato de que as obras humanas são totalmente inúteis. Os homens não gostam de ouvir isso. Eles querem receber o mérito por suas boas obras. Estão procurando ser tão bons quanto podem e fazer tanto bem quanto são capazes. E, quando ouvem que isto não vale nada diante de um Deus santo, os homens sentem-se ofendidos. Mas é exatamente isso que os homens precisam ouvir hoje. Eles precisam ouvir que aos olhos do Altíssimo suas boas obras não passam de “trapos de imundícia” e que tais boas obras não lhes trarão qualquer proveito no que se refere à salvação de suas almas.
Há outra verdade sobre a qual as pessoas gostariam que não falássemos: o fato de que não temos nenhuma participação em nossa salvação. Os homens querem sentir que podem fazer alguma coisa. Desejam ter pelo menos uma pequena parte da glória de sua própria salvação. Mas devemos ensinar aos pecadores que eles não podem desfrutar a doçura da salvação do Redentor, enquanto não se prostrarem aos pés da soberana misericórdia de Jesus Cristo. Somos absolutamente dependentes da soberana vontade de um Deus misericordioso. Temos de proclamar isso e jamais ocultá-lo.
Também é muito desagradável aos homens ouvirem que, se desejam a salvação de suas almas, precisam separar-se do amor e da prática do pecado. Em outras palavras, eles precisam arrepender-se. Vivemos em uma época quando os pregadores parecem tentar fornecer um atalho para os pecadores, trazendo-os a Cristo por meio da decisão, de modo que o arrependimento fique de lado. O pecador tem de vir pelo caminho exposto na Palavra — o velho caminho do arrependimento, da tristeza e da separação do pecado.
Outra doutrina que eles prefeririam que não mencionássemos é a da eterna punição do pecado. As pessoas não querem ouvir sobre isso. Quanto menos pregarmos a esse respeito, maior aprovação teremos do povo. Mas precisamos ser fiéis, e, como mensageiros do Senhor, a aprovação que nos deve preocupar não é a dos homens, nem mesmo a do povo de Deus, e sim a aprovação de nosso Senhor.
Por último, consideremos o efeito do comprometimento. Com- prometer o evangelho é o mesmo que ser infiel ao nosso Senhor e isto entristece o seu Espírito. Não importa o motivo que temos para o comprometimento (e talvez pensemos que estamos plenamente justificados por aquilo que já fizemos), se nos afastarmos um milímetro da doutrina das Escrituras, entristeceremos o Espírito. E o pior de tudo é que isso provavelmente afetará nossos ouvintes. Um pregador pode conhecer bem o evangelho e, apesar disso, ter aberrações em sua mensagem, como se estas fizessem parte do evangelho que ele prega. Em alguns aspectos, existe um toque de insanidade em algumas doutrinas proclamadas por ele. E mesmo que, de um modo geral, ele seja abençoado, os efeitos disso estarão presentes. O povo ficará desequilibrado em sua concepção da verdade do evangelho.
Lembro-me de algo que me contou um velho ministro que conheci na ilha de Arran. Ele tinha grande deleite em repetir citações de um pastor que o instruiu quando era jovem. O velho ministro costumava dizer: “Uma deformação no nascimento acompanhará um homem durante toda a sua vida”. É lógico que ele dizia isto com um significado espiritual, embora isso também seja verdadeiro no âmbito natural e físico. Uma deformação no nascimento não apenas pode estar presente em toda a vida de um homem, mas também em uma comunidade de crentes. Se no início, quando o evangelho é recebido com poder, existir algo que não está de acordo com a Palavra, esse algo é capaz de produzir uma deformação espiritual, como se o desvio fosse próprio daquela comunidade.
Outra maneira pela qual o comprometimento poderá afetar nossos ouvintes é esta: quando estivermos procurando cercar o pecador com princípios da lei de Deus, atraindo-o a Cristo, divagamos e deixamos portas abertas; e, antes de podermos levá-lo a pensar mais profundamente, ele escapa por uma dessas portas. Portanto, o que precisamos fazer, em termos doutrinários, é limitar as divagações, permitindo que o pecador medite na lei; e, se o Espírito do Senhor estiver com o pregador, o pecador será conduzido até encontrar-se face a face com o próprio Senhor Jesus Cristo.
Além disso, se comprometermos o evangelho, entristeceremos os crentes maduros de nossas congregações. Estes podem detectar o comprometimento e serem por ele magoados. Mas, acima de tudo, destruímos a intimidade de nosso relacionamento com o Mestre. É algo doloroso quando temos de pregar e estamos conscientes de que temos entristecido nosso Mestre. Pregamos e procuramos fazê-lo com fidelidade, mas por trás de tudo existe aquele sentimento de que Cristo ocultou-nos sua face. Quando Ele esconde o seu rosto de nós, perdemos nosso poder, nos sentimos fracos, desencorajados e sem ânimo.
Concluindo, precisamos enfatizar a necessidade de sermos fiéis.
Isto possui importância vital em nossos dias, por causa da força dos poderes que lutam contra nós. Precisamos vigiar atentamente nossos co-rações, pois é ali que começa o comprometimento. Embora sejamos pregadores do evangelho, ainda é verdade que nossos corações são enganosos acima de todas as coisas e desesperadamente corruptos. Devemos almejar a fidelidade, mais do que o sucesso. Pense em Noé: ele pregou e foi descrito no Novo Testamento como “pregador da justiça”, mas que sucesso ele obteve? Quanto às conversões, a não ser em sua própria casa, ele não obteve qualquer sucesso.
Recordo-me de que, sendo ainda um jovem estudante de teologia, inesperadamente fui convocado a ocupar o púlpito da igreja que, quando menino, costumava freqüentar. Era também a igreja onde o grande Dr. Kennedy realizara seu ministério. Senti-me desanimado só em pensar no assunto. Permaneci assim o dia todo e, após o culto da noite, senti-me grandemente perturbado, deprimido, abatido. Um oficial da igreja, um homem de valor chamado Alexander MacLean, estava me esperando no gabinete pastoral. Ele era uma pessoa de grande estatura e gostava muito dos jovens. Quando entrei, ele simplesmente colocou seus enormes braços ao meu redor e disse: “Não se preocupe, meu jovem. Como dizia o Sr. Finlayson, de Helmsdale (o Sr. Finlayson é um dos destacados ministros do norte, e foi sob o ministério dele que Alexander MacLean obteve a bênção), não está escrito ‘muito bem, servo bom e bem-sucedido’, e sim ‘muito bem, servo bom e fiel’”. No último dia, o que realmente será levado em conta não é o nosso sucesso, e sim a nossa fidelidade.
Nós, que vivemos nesta época tão tenebrosa e conhecemos tão pouco sucesso, se formos verdadeiros e fiéis, ao final de tudo chegaremos perante o Senhor e dEle receberemos um elogio em nossa frágil maneira de ser fiéis, no lugar onde Ele nos colocou. Oh! Quão necessária é a oração suplicando que isso aconteça! Temos grandes razões para confessar que, depois de haver buscado fazer a vontade do Senhor, ainda somos servos inúteis!