Em uma segunda perspectiva sobre os “mil anos”, após a prisão de Satanás, João viu tronos e os juízes que os ocuparam, as almas daqueles que haviam sido decapitados por terem sido fiéis a Jesus (Ap 20.4-6). Essas almas “viveram” e reinaram com Cristo por mil anos. A vinda deles à vida é “a primeira ressurreição”, e isso mostra que “a segunda morte” — o tormento eterno que aguarda os inimigos de Deus (19.20; 20.10, 14-15) — não tem poder sobre eles.
Alguns pré-milenistas interpretam “a primeira ressurreição” como a ressurreição corporal dos crentes na segunda vinda de Cristo (veja 1Ts 4.13-17; 1Co 15.20-23). Embora João não mencione uma “segunda ressurreição”, os pré-milenistas creem que uma subsequente ressurreição corporal dos incrédulos fica implícita na declaração: “Os restantes dos mortos não reviveram até que se completassem os mil anos” (Ap 20.5). Nessa visão pré-milenista do futuro, portanto, há duas ressurreições corporais separadas por mil anos. Os cristãos receberão seus corpos ressurretos na gloriosa volta de Jesus dos céus, e nesse estado ressurreto, eles partilharão do domínio de Jesus sobre uma terra muito melhor se comparada à atual, mas não purificada do pecado. Então, séculos mais tarde, as almas não-cristãs serão restauradas à existência corpórea para encarar o julgamento final. Para determinar o mérito dessa visão, examinaremos o texto mais além.
Se nos aproximarmos dessa visão do ponto de vista das figuras que aparecem no Antigo Testamento que convergem no Apocalipse, outra mensagem emerge. Note que João vê tronos antes que ele vislumbre qualquer pessoa sentada neles. Essa ordem ecoa a visão de Deus entronizado quando João foi convocado “em espírito” aos céus (4.1-2; veja 20.11). Isso também remete a uma visão na qual Daniel vê tronos, depois o Ancião de Dias e depois o tribunal de Deus assentado em julgamento (Dn 7.9-10). Esses ecos não são coincidência. Eles mostram a localidade celestial desse tribunal e seus tronos. Aqueles que reinam com Cristo por mil anos o fazem nos céus, não na terra.
Quem são os juízes que ocupam os tronos? São as almas daqueles que foram decapitados por manterem seu testemunho sobre Jesus. Eles representam não apenas cristãos mortos por decapitação, mas também aqueles martirizados por outros meios (apedrejamento, crucificação, fogueira, espada). Anteriormente, João os havia visto sendo derramados como sangue sacrificial “sob o altar” nos céus (6.9-11). O que distingue essas almas não é a sua morte violenta, mas a sua fidelidade ao testemunho de Jesus e à Palavra de Deus. Implicitamente, inclui-se todos “os mortos que morrem no Senhor” (14.13), independentemente de terem sido chamados para entregarem as suas vidas a fim de manterem sua confissão. Novamente, a identidade dos juízes confirma o local de reunião celestial do tribunal no qual eles governam com Cristo.
Mas, a declaração de que eles “viveram” em uma “primeira ressurreição” não mostra que essas almas estão reunidas com seus corpos antes que elas comecem seu reino de mil anos com Cristo, que os seus corpos ressurretos estarão assentados nos tronos? A palavra “Ressurreição” pode referir-se a outra coisa senão ressurreição “literal” — física, corpórea? De fato, pode, e no novo testamento esse normalmente é o caso.
Paulo lembrou os cristãos em Éfeso, que estiveram “mortos nos delitos e pecados nos quais [andaram] outrora”, que Deus nos dera vida “juntamente com [Cristo] […] e juntamente com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus” (Ef 2.1, 5-6). A sequência é idêntica à de Ap 20.4-6: os mortos revivem, são ressuscitados e são entronizados nos céus para fazer parte do reino de Cristo. Mas Paulo não está descrevendo a ressurreição corporal, ascensão e entronização futura dos crentes. Ele fala da graça recebida em nosso passado e nosso presente, quando o Espírito Santo de Deus aplica a nós a obra de Cristo: “pela graça sois salvos, mediante a fé” (2.8). Os cristãos já fazem parte da ressurreição, vida e reino celestial de Cristo (Cl 3.1-4; Rm 6.4), até mesmo enquanto aguardamos o retorno do nosso Senhor, quando nossos corpos também serão transformados por sua vida ressurreta (Rm 8.11; Fp 3.10-11, 20-21).
O próprio Jesus ligou o poder que concede vida da sua voz no presente com o poder de ressurreição de corpos de sua voz no futuro. No presente, ele disse, “vem a hora e já chegou, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem viverão” (Jo 5.25). Agora, conforme Jesus prega, “quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna, […] passou da morte para a vida” (5.24), embora nossos corpos ainda enfrentem a expectativa da morte física. No futuro, “vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão: os que tiverem feito o bem, para a ressurreição da vida; e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição do juízo” (5.28-29).
Essa futura saída dos túmulos de todos aqueles que morreram fisicamente aparece em Ap 20.12-13: “Vi também os mortos, os grandes e os pequenos, postos em pé diante do trono. Então, se abriram livros. […] O mar […] a morte e o além entregaram os mortos que neles havia. E foram julgados”. Apenas aqueles cujos nomes estão no Livro da Vida do Cordeiro sobreviverão a esse julgamento (v. 15). Embora nunca seja classificada assim, essa é a segunda ressurreição implícita na “primeira ressurreição” (20.5-6).
Assim, na Palavra de Deus, termos como “viver”, “passar da morte para a vida” e “ressurreição”, às vezes, transmitem sentidos simbólicos e espirituais. A “primeira ressurreição” em Apocalipse 20.5-6 é espiritual ou corpórea? Frequentemente, as discussões mais prosaicas de Paulo sobre os eventos futuros nos ajudam a esmiuçar as figuras das vívidas visões de João, e este é um caso desse fenômeno. Em 1 Coríntios 15.22-26, Paulo explica a ordem na qual a vitória de Cristo sobre seus inimigos se desenrolará:
Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo. Cada um, porém, por sua própria ordem: Cristo, as primícias; depois, os que são de Cristo, na sua vinda. E, então, virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver destruído todo principado, bem como toda potestade e poder. Porque convém que ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos pés. O último inimigo a ser destruído é a morte.
Cristo já foi ressuscitado dos mortos como as primícias da ressurreição final de todos aqueles que estão “em” Cristo. Agora Cristo está reinando, subjugando seus inimigos. O último inimigo a ser destruído é a morte, e sua destruição concidirá com a segunda vinda de Cristo e a ressurreição dos cristãos. Essa é a mesma ordem que vemos em Apocalipse 20. Através da morte e da ressurreição de Cristo, o inimigo de Deus, Satanás, foi preso por um longo período (vv. 1-3), para ser eventualmente liberto e destruído (vv. 7-10), quando todos os mortos serão ressuscitados e julgados (vv. 11-13). Por último, a própria morte será destruída (v. 14). Nenhum inimigo sobreviverá depois que a morte, o último inimigo, “morrer”. Então a ressurreição corpórea dos crentes, que é o foco de Paulo em 1 Coríntios 15, é parte de uma ressurreição final geral de todas as pessoas, tanto crentes quanto rebeldes — a segunda ressurreição no retorno de Cristo, o fim da história (Jo 5.28-29; Ap 20.11-13).
Mas se a “primeira ressurreição” não é corpórea, o que ela é? Como João 5 e Efésios 2 mostram, as Escrituras dizem de fato que Deus ressuscita pessoas espiritualmente mortas através do seu chamado eficaz no evangelho. Mas Apocalipse 20.4 se concentra nas “almas”, e tais almas pertencem às pessoas que morreram não através do pecado e da incredulidade, mas por causa do seu fiel testemunho a Jesus. Isso nos aponta para uma direção diferente.
Considere o paradoxo das figuras de Apocalipse, que mostra que as coisas frequentemente não são o que parecem ser. João ouviu que o Leão de Judá havia “vencido” e era digno de abrir o livro de Deus (Ap 5.5). Mas ele viu um Cordeiro de pé, como tendo sido morto; e por causa da sua morte sangrenta, o Cordeiro era digno de abrir o livro (5.9). Poderia a morte do Cordeiro ser a vitória do Leão? Sim; a fraqueza da cruz de Cristo é o poder de Deus (1Co 1.18-25). Novamente, em Apocalipse 11.7 e 13.7, a besta, apoiada por Satanás, vence e mata os santos de Deus. Superficialmente, as mortes sangrentas dos mártires parecem uma derrota completa. Entre essas duas afirmações, entretanto, João vê a real situação: os crentes que Satanás uma vez acusou “venceram-no por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do testemunho que deram e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida” (Ap 12.11). Os mártires que entregaram as suas vidas, confiando no sangue e na justiça de Jesus, saem vitoriosos sobre o próprio Satanás.
Visto que o Cordeiro triunfou ao ser morto e a vitória secreta dos seus seguidores é a fidelidade deles até a morte, a lógica paradoxal de Apocalipse nos leva à surpreendente conclusão de que a primeira ressurreição era, de fato, a morte violenta dos mártires nas mãos de seus perseguidores. Aquela morte os introduziu à presença de Deus, onde eles agora adoram como sacerdotes e reinam como reis (20.6; veja 7.9-12). Embora os mártires ainda aguardem a justiça vingadora de Deus (6.10) e “a redenção do nosso corpo” (Rm 8.23), a partida deles para estar com Cristo é, para eles, “incomparavelmente melhor” (Fp 1.23), um doce antegosto da segunda ressurreição na volta de Cristo, quando “tragada [for] a morte pela vitória” (1Co 15.54).