O pecado sexual e a vitimização sexual atraem a atenção de todo mundo. A imoralidade é um pecado em letras vermelhas; o abuso sexual é sofrimento em letras garrafais. Eles assombram a consciência e provocam os mexericos. Eles conseguem empurrar os outros pecados e aflições para segundo plano. Sobem na marquise com letras vermelhas de três metros de altura.[i]
Mas consideremos a nossa luta com o pecado e o sofrimento desta forma: Imagine uma sala de cinema com múltiplas salas de projeção que apresentam muitos filmes simultaneamente. O pecado sexual é o “novo filme em cartaz” com propagandas grandes na entrada. Mas outros filmes significativos estão sendo exibidos em outras salas de projeção. A guerra contra o pecado e o triunfo da graça acontecem simultaneamente em muitos lugares. No ministério de alguém que ajuda na luta contra as trevas sexuais, talvez essa pessoa obtenha um lance de entendimento em outra “sala de projeções”, numa área onde ninguém ainda tenha notado ou considerado como sendo algo que se relacione com o pecado visível. Um novo entendimento dos propósitos íntimos de Deus no sofrimento pode reescrever de maneira significativa o roteiro da vida de uma pessoa. Um vislumbre novo — como tratar com a ira, ou o orgulho, ou a ansiedade, ou a preguiça — podem ter efeitos em sequência que eventualmente ajudarão a desarmar o grande bicho-papão que tem dominado toda a atenção e preocupação mais séria.
É muito importante expandir a frente de batalha, não permitindo que os erros que aparecem com mais facilidade nos distraiam de ver o quadro inteiro. O estudo de caso a seguir mostra como o pecado sexual pode e deve ser localizado dentro de batalhas mais amplas.
“MEU ACESSO DE RAIVA CONTRA DEUS”
Tom é um homem solteiro de trinta e cinco anos de idade. Você pode ser capaz de preencher o resto da história, porque o padrão dele é típico de muitas pessoas! Ele veio a Cristo com sincera profissão de fé, aos quinze anos de idade. Mais ou menos na mesma época, começou a sua luta que durou vinte anos contra a lascívia sexual. Essa luta envolveu episódios de uso de pornografia e episódios de masturbação, sobre os quais Tom fica profundamente desanimado. No passar dos anos, ele tem experimentado muitos altos de “vitórias”, como também muitos momentos baixos de “derrotas”.
Tom me procurou para pedir ajuda, junto com o seu presbítero e líder de pequeno grupo. Ele estava desanimado com os recentes fracassos, e pela última queda em um ciclo que parecia não ter fim. Ao longo dos anos, ele havia tentado fazer “todas as cosias certas”, usando as respostas e técnicas padrões. Mediante a prestação de contas, ele havia tentado responsabilizar-se com sinceridade. Isso ajuda algumas pessoas, mas não de modo decisivo. A prestação de contas tem a característica de começar forte, mas se desvia, escorregando para outro rumo. A certa altura, dizer a outras pessoas que mais uma vez havia fracassado, receber interesse simpático ou uma exortação crítica dessas pessoas, parou de ajudá-lo. Tom havia memorizado a Escritura e lutava por aplicar a verdade nos momentos da batalha. Muitas vezes, isso ajudava, mas depois, em momentos de cegueira, como numa tempestade, quando mais precisava de ajuda, ele se esquecia de tudo o que aprendera. O sexo enchia a sua mente, e a Escritura desaparecia de vista. Outras vezes, ele simplesmente ignorava a verdade num ato de rebeldia com a típica frase: “Quem se importa?” Depois se sentia muito mal; a consciência ficava totalmente cega somente por cerca de meia hora de cada vez! Ele orava, e continuava orando. Jejuava. Procurava disciplinar a si mesmo. Planejava coisas construtivas a fazer com o seu tempo, e para ajudar a outros. Envolveu-se num ministério para adolescentes. Tentou até coisas que não estão na Bíblia: vigorosos exercícios, banhos gelados no chuveiro, dietas e regimes ali mentares. Tentou até mesmo seguir brevemente o conselho de um livro de autoajuda, procurando pensar na masturbação como “algo que todo mundo faz, normal, então, permita-se”. Contudo, com sabedoria, a sua consciência nunca conseguia evitar as palavras de Jesus, em Mateus 5.28, sobre cometer adultério no coração.
Tom tinha tentado tudo. A maioria das coisas (com exceção de desistir de lutar) ajudava um pouco. Mas, no final, o sucesso sempre era pouco frequente e frágil. Tom não havia obtido maior entendimento em seu coração nem compreendido como o pecado e a graça trabalham no seu interior. Por vinte anos sempre foi: “O pecado é ruim. Não faça isso. Faça apenas [x, y, ou z] para ajudar a não pecar”.
Toda a sua vida cristã havia sido concebida e construída em volta dessa luta com episódios de pecados sexuais. Seu padrão era o seguinte: as estações de relativa pureza podiam durar dias, semanas, até mesmo alguns meses. Ele media seu sucesso por “quanto tempo desde a última vez que caí?” Quanto mais o tempo passava, mais ele alimentava as suas esperanças: “Quem sabe agora eu finalmente quebrei as pernas do pecado que me assedia”. Mas, em seguida, caía de novo. Tropeçava durante tempos de derrota, caminhando de volta ao mesmo chiqueiro, perguntando: “Será que eu sou cristão? Por que me importo? O que adianta? Nada parece dar certo”. Ele estava atordoado por culpa, vergonha, desânimo e deses- pero. Às vezes, Tom voltava para a pornografia para anestesiar a miséria de seu sentimento de culpa através de mais pornografia. Repetidas vezes, ele implorava o perdão de Deus sem conseguir alívio ou qualquer alegria.
Então, por razões inexplicáveis, a fase mudava para melhor. Ele ficava inspirado a lutar novamente. Foi numa dessas épocas que ele ligou para mim. Ele realmente desejava libertação de uma vez para sempre.
Como eu conseguiria ajudar o Tom? Eu não queria simplesmente dar-lhe mais das mesmas coisas que ele já tentara uma dúzia de vezes sem êxito. Não queria apenas fazer um discurso de ânimo e sugerir uma passagem da Escritura; eu não queria insistir que ele se fortalecesse para continuar na luta, e telefonar de vez em quando para lembrá-lo de sua responsabilidade. O que faltava para ele? O que estava acontecendo nas outras áreas da vida de Tom? Havia ali motivos e padrões que nenhum de nós tivesse percebido? O que ocorria nos dias ou nas horas antes de tropeçar? E como ele manejava os dias e as semanas depois de uma caída? Por que toda a sua abordagem à vida parecia um mecanismo complicado de gerenciar o fracasso moral? Por que a sua abordagem da vida cristã parecia tão desumanizada e despersonalizada? O seu cristianismo parecia uma grande produção, com muito esforço sincero de melhorar a si mesmo. Por que a sua coleção de verdades e técnicas nunca parecia estimular e revigorar a ponto de melhorar a qualidade de seus relacionamentos com Deus e com as pessoas? Será que a peça central da vida cristã realmente é um ciclo infindo de “eu pequei. Não pequei. Pequei. Não pequei. Pequei”. O que não estávamos vendo?
Para obter melhor noção do conteúdo total de sua vida, pedi que Tom fizesse algo simples: “Você pode relatar por escrito quando você é tentado?” Eu queria saber o que estava acontecendo quando essa luta era maior. Quando? Onde? O que tinha acabado de acontecer? O que ele fez? O que ele sem tia? O que ele pensava? Se ele resistia, como o fazia? Se ele caía, como reagia depois da recaída? Algo mais estava relacionado às suas tentações sexuais?
Por todos os altos e baixos, Tom manteve um desarmante senso de humor. Ele dava risada de mim, dizendo: “Eu não preciso manter um relatório. Já sei a resposta. Eu só caio nas noites de sexta-feira ou sábados — em geral nas sextas, porque o sábado é logo antes do domingo”. Se você tem alguns genes de cuidados pastorais, você se anima com uma resposta dessas. Sob inspeção, padrões repetidos sempre provam ser extremamente reveladores. Perguntei: “Por que o pecado sexual surge nas sextas-feiras à noite? O que acontece com isso?” Ele disse: “Eu vou para a pornografia como um acesso de raiva contra Deus”.
Surpreendente! Olhe o que acabamos de descobrir: mais um filme estava passando no cinema da vizinhança. De repente, não estávamos apenas tratando de dois maus comportamentos: ver pornografia e masturbação. Estávamos tratando da ira contra Deus que impulsionava esses comportamentos. Sobre o que era isso?
Tom passou a mostrar um retrato mais completo:“Volto do trabalho para casa, ao meu apartamento, na sexta-feira à noite. Estou sozinho. Imagino que todos os meus amigos solteiros estão saindo com a namorada, meus amigos casados estão passando tempo com a esposa. Mas eu estou sozinho no meu apartamento. Vai aumentando na cabeça o sentimento de pena de mim. Chega às nove, dez horas, eu penso:‘Hoje mereço uma folga’— até mesmo ouço na cabeça a nusiquinGa do McDonalds, (você merece ser feliz) e os desejos sexuais começam a parecer muito, muito doces.
‘Deus enganou você. Se apenas tivesse uma namorada ou esposa… Eu não suporto como me sinto. Por que não me sentir bem por algum tempo? Que importa?’ Aí, me lanço no pecado”.
Surpreendente, não é mesmo? Pornografia e masturbação prenderam toda a sua atenção, gerando toda a culpa, definindo o momento e o ato da “queda”. Vamos chamar isso de sala de cinema #1. Ouvimos então sobre a ira contra Deus como algo que precedeu e legitimou o pecado sexual: sala de cinema #2. Ouvimos o relato sobre autocomiseração de baixa qualidade praticada por horas, murmuração e fantasias invejosas sobre seus amigos e colegas de trabalho: uma apresentação de matinê na sala de cinema #3. Ouvimos Tom dar nome ao desejo original que o levou a ter piedade de si mesmo, de se irar contra Deus, e, finalmente, ceder à lascívia sexual: “Deus me deve uma mulher. Eu preciso, quero, exijo uma mulher que me ame”. Isso estava sendo apresentado na sala de filmagem #4, um filme nada empolgante de censura livre, aparentemente sem problemas. Era o desejo normal de sua carne e não um desejo sexual, que Tom nunca considerara problemático. Na verdade, em sua cabeça, era quase uma promessa de Deus: Salmo 37.4: “Agrada-te do Senhor, e ele satisfará os desejos do teu coração”. “Se eu fizer a minha parte, Deus deve fazer a parte dele e me dar uma esposa.”
Enquanto Tom e eu conversávamos, descobri por que Deus lhe devia uma esposa: “Tenho tentado fazer tudo certinho. Eu o tenho servido. Tenho procurado ser responsável. Tenho memorizado as Escrituras. Tento ser um bom cristão. Participo do ministério. Dou testemunho. Dou dízimo… mas Deus não me dá o que prometeu”. Noutras palavras, as “respostas certas” para lutar contra o pecado são também as alavancas para extrair os benefícios de Deus. As palavras de Tom soam estranhamente como o lamento arrogante de autojustiça do irmão mais velho, na parábola que Jesus contou sobre o filho pródigo: “Sou bom, portanto, Deus me deve os bens que eu desejo”. A subsequente ira contra Deus opera como qualquer outra ira pecaminosa: “O Senhor não me dá aquilo que eu quero, espero, necessito e exijo”. Esse lado “positivo”, fatalmente deficiente, cheio de orgulho, da construção legalista, estava sendo apresentado na sala de cinema #5. Por que Tom se queixou, em depressão autodestrutiva, por dias e semanas depois de pecar, em vez de encontrar renovadas as misericórdias de Deus a cada manhã? Esse é o lado “negativo” de autopunição desesperadora da construção legalista: “Sou mau, portanto, Deus não vai me dar todas as vantagens”. A sala de cinema #6 era onde se exibiam a autopunição, autoexpiação, penitência e o ódio de si mesmo.
Não é necessária muita percepção teológica para ver como todas essas distorções do relacionamento de Tom com Deus expressam diferentes formas de incredulidade básica. Elas suprimem o conhecimento vivo do Deus verdadeiro. Elas criam um universo para si mesmo vazio da presença, verdade e propósitos do Deus verdadeiro. A incredulidade não é um vácuo; pelo contrário, enche o universo de ficções sedutoras e persuasivas. A sala de projeções #7 mostrava um filme de sucesso absoluto que Tom nunca notara como sendo problemático. (Quando a Dama Loucura se mantém vestida e quietinha, ela apaga a consciência de Deus que fica invisível.)
De fato, descobrimos até mesmo por que Tom estava tão ansioso por obter meu conselho. Por que ele desejava vitória sobre seu problema de lascívia, e queria tentar novamente vencer o dragão da lascívia de uma vez para sempre? Ele estava de olho em uma jovem possível candidata que começara a frequentar a nossa igreja. Isso despertou e renovou a motivação para lutar. Se apenas conseguisse vencer esse pecado, Deus ficaria lhe devendo algo, e assim, talvez Tom conseguisse a esposa dos seus sonhos. Até mesmo a sua agenda de busca de aconselhamento pastoral tinha uma parte menor nessa batalha mais ampla; essa era a sala de projeções #8!

O artigo acima é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Fazendo nova todas as coisas: restaurando a esperança para traumas sexuais, de David Powlison, Editora Fiel.
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[i] Essa caracterização surge em parte de tendências dentro da cultura cristã norte-americana. Outras culturas cristãs podem ter seus problemas de consciência de maneira um pouco diferente. Em Uganda, por exemplo, a ira é especialmente vergonhosa, um pecado bicho-papão que desqualifica automaticamente alguém para o ministério. Mas os crentes de Uganda muitas vezes enxergam a imoralidade sexual do jeito que os americanos enxergam surtos de raiva ou glutonaria. Esses comportamentos são pecaminosos, mas não chocam tanto nem produzem tanta condenação. A Divina Comédia de Dante apresenta pecados sexuais “normais” — sensualidade, fornicação — como merecedores de um círculo mais raso no inferno. Como a glutonaria ou indolência, eles são distorções de desejos normais. Mas os pecados de traição, sexuais ou outros tipos de traição, envolvem trair a confiança, e estão no mais profundo abismo do inferno.