terça-feira, 16 de abril

A Teologia é uma ciência?

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O trecho abaixo foi extraído com permissão do livro Eu Sou – Volume 3, de Heber Carlos de Campos, Editora Fiel.

Via de regra, nas listas das ciências modernas, a Teologia não faz mais parte dos campos da ciência. Até a chegada dos tempos modernos, quando a cosmovisão estava mais próxima do cristianismo, a Teologia era considerada a rainha das ciências. Entretanto, nos tempos atuais, depois das revoluções industrial e filosófica, bem como do cientificismo, a Teologia ficou fora da lista.

A coisas da religião não entram nas coisas das ciências, porque Deus está fora da investigação científica, pois está na esfera daquilo que Kant chamou de mundo numênico, e não na esfera do mundo fenomênico. As coisas do mundo fenomênico são verificáveis, mas não as do mundo numênico. Logo, a Teologia não pode ser uma ciência. Essa visão, pois, permite o estudo da religiosidade, mas não de Deus.5

Entretanto, se tomarmos como verdadeira a ideia de ciência fornecida por Harold Brown, e rapidamente analisá-la, podemos ver a Teologia como uma ciência. Se a Teologia é uma ciência, teremos de aplicar os mesmos princípios adotados para a verificação de outras ciências a ela. Como ciência, portanto, apliquemos mais demoradamente à Teologia os mesmos quatro princípios já analisados brevemente:

1. O objeto real de estudo da Teologia
A Teologia é uma ciência somente se tiver um objeto real de estudo. Podemos saber muitas coisas a respeito de Zeus, a famosa divindade grega, porque os gregos creram nele. Ele existiu na mente e na subjetividade de muitos gregos, mas não pode ser objeto de investigação científica porque, na verdade, não existe como uma personalidade real, como um objeto concreto.

Se o objeto de estudo tem de ser algo real, disponível para ser fisicamente medido, alguma coisa que exista concretamente, algo que possa ser pesquisado e objetivamente verificável, então Deus, o Deus verdadeiro, em si mesmo, também não pode ser objeto de investigação científica. Embora Deus esteja fora do pesquisador e de sua subjetividade, existindo de forma independente de seu pensamento, não pode ser verificável, observável, mensurável, como os outros objetos da investigação científica o são. Deus está além da verificação científica. Ele não pode ser provado, embora exista objetivamente, ou seja, existe fora da subjetividade do pesquisador. Mesmo que o pesquisador não creia nele, ele existe.

Deus só pode ser observável e conhecível em seus próprios termos, de acordo com suas próprias regras estabelecidas, mas ele, em si mesmo, não é objeto de estudo.

Qual é, então, o objeto da investigação científica na Teologia? Deus? Não! A definição mais comum de Teologia é “a ciência de Deus”. Muitas definições tendem a interpretar literalmente o termo “Teologia” e chegam à conclusão de que Deus deve ser objeto do estudo científico do homem. Essa ideia é, de fato, insatisfatória, porque Deus não é passível de investigação por um ser inferior, pois ele chamou à existência todas as coisas. Ele é a realidade última de tudo, e é aquele que põe em ordem e sistematiza todas as coisas.

Abraham Kuyper desafiou essa definição de Teologia como “o estudo de Deus”, argumentando que Deus não pode ficar debaixo de investigação, ou seja, debaixo de um microscópio,6 como os outros campos da investigação ficam. Numa ciência, o pesquisador está sempre debruçado sobre o objeto investigado. Mas isso não acontece com Deus. Ele está sobre e além da capacidade do homem de investigá-lo. O homem não tem condições de investigar Deus porque ele está muito acima de seu alcance, pelo fato de sua natureza ser infinitamente superior e inatingível pelo homem. Se é assim, como se pode saber alguma coisa sobre Deus? Por meio de sua autorrevelação. Deus é autoexistente, não verificável em si mesmo, mas é um ser pessoal que se comunica e se torna acessível, deixando marcas na história, sendo conhecível através de proposições revelacionais que estão registradas na Escritura. Essa, sim, é o objeto da investigação do homem. O homem estuda Deus mediante aquilo que Deus revela de si mesmo. Portanto, a Teologia deve ser entendida como a “ciência da revelação” ou a “ciência da Escritura”. De modo inverso, dentro do estudo científico da Teologia, o pesquisador está debaixo do “objeto” investigado, porque depende dele para obter as informações necessárias. Nas outras ciências, o pesquisador trabalha com elementos que não têm resposta voluntária, somente reagindo a estímulos que são governados pelas leis naturais. Mas não é assim na pesquisa científica da Teologia. Nela, o pesquisador não tem controle sobre o “objeto” pesquisado, como acontece nas outras ciências. Nesse sentido, a Teologia é uma ciência singular. O pesquisador tem de estar submisso às informações que Deus dá de si mesmo em sua revelação, ficando dependente e sob a autoridade das Escrituras.

A Teologia está muito preocupada com o “aspecto pístico”, que, via de regra, deve estar vinculado à única fonte de revelação e autoridade, a qual, para os reformados, é a Escritura, conforme se afirma em seus símbolos confessionais.

2. O meio apropriado para o estudo da Teologia
O estudo científico de qualquer matéria exige que se disponha dos meios adequados. Não se estuda cientificamente a Teologia como se estuda Física ou Química. Os meios devem estar em consonância com a natureza dos “objetos” estudados.

O Deus da Escritura Sagrada não é um ser impessoal, ou o “Primeiro Motor” ou a “Primeira Causa”, ou uma “Força Cósmica” para todas as coisas, como, em geral, as filosofias ensinam, mas é um Deus excelentemente pessoal.

Porque Deus é pessoal, devemos procurar conhecê-lo através de modos apropriados para pessoas. As coisas podem ser estudadas por observação, por medidas e por computação. As pessoas podem ser conhecidas somente quando duas condições são preenchidas: primeiro, a pessoa deve comunicar-se, geralmente em linguagem inteligível, e, segundo, aquele que recebe a comunicação deve responder com uma medida de confiança. Neste ponto, é da maior importância enfatizar que a confiança não é um substituto para um conhecimento pessoal, embora tenhamos de confiar porque não conhecemos. Confiar é o meio apropriado para se obter conhecimento das pessoas; sem essa confiança, não podemos conhecer outra pessoa de modo íntimo, e sem o equivalente teológico, que usualmente chamamos fé — simplesmente outra palavra para a mesma coisa —, não podemos conhecer Deus.

O elemento pístico (elemento de fé) é extremamente importante para o conhecimento de Deus. Não há possibilidade de se ter qualquer conhecimento real dele sem que se creia no que ele diz. Isso é assim em relação a todos os seres pessoais. Se não confiarmos no que as pessoas dizem, não saberemos nada a respeito delas ou da verdade. No estudo dos seres pessoais, tem de haver um elemento de comunicação e um elemento de confiança naquilo que é dito. Se não houver tal comunicação, não haverá conhecimento, e, se não houver um elemento de confiança naquilo que foi comunicado, o conhecimento não se subjetivará. E, quando não se subjetiva, não é conhecimento verdadeiro para quem pesquisa. O elemento de confiança nas informações de um paciente no estudo da Psicologia, por exemplo, é fundamental. Então, podemos afirmar, com certeza, que o elemento confiança na comunicação é algo que deve ser considerado científico. Seria não científico desprezar esse tipo de conduta. Se isso é verdade no estudo das Ciências Humanas, também o é no estudo do Ser Divino da maneira como se revela e como reagimos em resposta à sua revelação.

O Deus que não é crido não é verdadeiramente conhecido. Os incrédulos podem conhecer coisas sobre Deus ao ouvirem falar dele, mas isso não implica que o conheçam verdadeiramente. O conhecimento real implica comunicação e fé reflexa. Brown diz:

Se um teólogo cientista não traz nenhuma confiança ou fé à sua obra, não está se comportando cientificamente, porque está privando a si mesmo do meio necessário e apropriado para se obter conhecimento, e por essa razão não tem nada a sistematizar.

Portanto, só pode fazer Teologia cientificamente aquele que realmente confia na comunicação recebida. Isso quer dizer que um teólogo não apresentará uma pesquisa válida se não confiar pessoalmente em Cristo, que é o revelador de Deus. Este se comunica, como ser pessoal que é, e o teólogo científico trabalha, de forma confiante, com as informações recebidas, sistematizando-as.

Quando os pesquisadores não confiam na revelação divina, podemos dizer com certeza que seu conhecimento é falho, pois terá faltado o elemento pístico – fundamental para a ciência teológica.

3. O método da Teologia
Não há como sistematizar se não houver dados para a sistematização. Em outras palavras, não podemos usar qualquer método para uma ciência se não tivermos o “objeto” a ser estudado, nem os meios apropriados para estudá-lo.

Se tivermos os dois primeiros critérios, poderemos começar a aplicar o terceiro, ou seja, a sistematização dos dados recebidos. Não existe ciência sem sistematização das informações. “Mas o método não produzirá os resultados que valham a pena, a menos que o meio esteja disponível e seja colocado em uso.”

O pesquisador tem de usar todas as fontes de informação para a elaboração de seus conceitos. Em Teologia, isso não é muito diferente. O teólogo cientista tem de usar todos os recursos para a elaboração sistemática de seu trabalho.

4. A verdade como meta
O objetivo de todo cientista é chegar a conclusões justas e verdadeiras. Mas, nessa busca da verdade, o cientista deve ser honesto e não permitir que suas pressuposições controlem o resultado da pesquisa. Embora o teólogo cientista vá às fontes com pressuposições, porque é impossível ser cientista sem algum tipo de pressuposição, não deve permitir que a busca da verdade seja prejudicada por seus próprios sentimentos no que diz respeito ao “objeto” pesquisado. A meta de seu trabalho é o alcance da verdade. Nessa busca, ele deve contar com alguns elementos importantes e fundamentais: a revelação divina e a fé para trabalhar corretamente com as informações de que dispõe.

É ponto pacífico entre os cristãos evangélicos que a revelação divina é o ponto focal de estudo dos teólogos. Sem ela, não há qualquer material para o estudo de Teologia. Não há verdade, objetivamente falando, sem a autorrevelação de Deus. Contudo, não podemos olvidar que a Teologia é uma ciência e, como tal, tem de trabalhar cientificamente com dados.

A Teologia é uma disciplina intelectual, uma ciência, e deve, diferentemente das outras ciências, começar com a fé. Sem a fé, é impossível fazer Teologia. Entendida desse modo, a fé precede a Teologia, porque a Teologia é elaborada com a fé nos dados que o cientista possui. A submissão em fé à revelação produz Teologia. Quanto mais fidelidade à revelação de Deus, mais próxima da verdade estará a Teologia. “Nesse sentido, um teólogo deve ser algo parecido com um cientista físico, um químico, um biólogo, porque cada um deles deve lidar com a realidade como é, e não como ele gostaria que fosse.”

A busca da verdade deve ser o alvo final e principal do teólogo que trata cientificamente da revelação de Deus. E ele deve fazer isso crendo no que Deus diz de si mesmo, dos homens e de suas relações com o mundo, crendo em algo que, de fato, é digno de confiança.


Autor: Heber Carlos de Campos

É graduado pelo Seminário Presbiteriano de Campinas (1973); fez seu mestrado em Teologia Contemporânea (Th.M.) no Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição (1987) e doutorou-se em Teologia Sistemática no Concordia Theological Seminary, Saint Louis, Missouri, EUA (1992). Foi diretor do Seminário Presbiteriano Brasil Central (Goiânia, 1985-1989) e professor do Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição, foi diretor do CPAJ entre 1993 a 1999 (2004, interinamente) e tem exercido o ministério pastoral na Igreja Presbiteriana do Brasil por mais de 35 anos. É membro da Academia Paulista Evangélica de Letras (APEL). Além de artigos em periódicos brasileiros, suas obras significativas são: "O Ser de Deus e Seus Atributos" (1999), "Fé Cristã e Misticismo" (2000 – co-autor), "A Providência de Deus e Sua Realização Histórica" (2001), "As Duas Naturezas do Redentor" (2004), "A união das naturezas do Redentor" (2005), "A humilhação do Redentor - Encarnação e Sofrimento" (2008). Dr. Heber está presentemente concluindo sua próxima obra, "A Humilhação do Redentor - Sua morte e sepultamento".

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