sexta-feira, 22 de novembro
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Agostinho: uma vida de graça e palavras

Agostinho é uma pensador influente na história da igreja e na civilização ocidental. No que se refere ao campo da teologia, poderíamos dizer o que Cássio disse a respeito de César na peça Júlio César, de William Shakespeare: “Ele cavalga o mundo estreito como um colosso, e nós, homens pequeninos, andamos por baixo de suas pernas gigantescas”.1 Exceto os autores da Escritura, nenhum outro personagem teve, na Idade Média, impacto maior no pensamento cristão do que Agostinho.2 E, no que concerne à Reforma, estes dois personagens importantes, Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564), citaram Agostinho “mais frequentemente do que qualquer outro teólogo e viram a si mesmos como resgatadores da ênfase e do espírito de Agostinho para a condição da igreja em seu tempo”.3 Como Benjamin B. Warfield comentou acertadamente: “Quando aconteceu o grande avivamento do cristianismo que chamamos de Reforma… foi, em seu lado teológico, um avivamento do agostinianismo”.4 Como Gerald Bonner escreveu, Agostinho “continua a atrair grande número de alunos, que são fascinados por sua personalidade e suas ideias… e muitos deles, embora reconheçam as falhas nos ensinos de Agostinho, admitem que têm recebido muito discernimento e inspiração procedentes de seu pensamento”.5

Primeiros anos, conversão e chamado ao ministério

Os fatos dos primeiros anos da vida de Agostinho são bem conhecidos porque ele os registrou em suas famosas Confissões.6 Nascido em 13 de novembro de 354, no que era naquela época a província romana da Numídia, ele era filho de um pobre oficial inferior, Patrício (morreu por volta de 371), e de sua esposa cristã, Mônica (331-387).7 Dentre os seus pais, foi Mônica quem teve muito maior influência em sua vida. Logo depois de sua conversão, Agostinho comentou que as orações de sua mãe foram instrumentos para trazê-lo à fé viva em Cristo.8 O historiador Jaroslav Pelikan resumiu os anos anteriores à conversão de Agostinho, quando disse que ele “se moveu de uma preocupação para outra, de uma preocupação com o ego para doze anos como membro da obscura seita dos maniqueus, para vários tipos de neoplatonismo, para o cristianismo ortodoxo”.9

A conversão à fé cristã aconteceu no final do verão de 386, em um jardim, em Milão, onde Agostinho trabalhava como um retórico imperial, ou seja, um professor de oratória. O momento crítico veio por meio da leitura de um texto paulino, Romanos 13.13-14, a respeito do que Agostinho escreveu posteriormente: “A luz da confiança inundou meu coração e todas as trevas de dúvida foram dissipadas”.10 Em suas Confissões, Livro 9, Agostinho descreveu mais plenamente como ele entendeu, mais tarde, a obra salvadora de Deus em sua vida:

Durante todos aqueles anos [de rebelião], onde estava o meu livre-arbítrio? De que lugar secreto e oculto ele foi convocado num momento, para que eu pudesse curvar meu pescoço ao teu jugo suave e receber o teu fardo leve sobre os meus ombros, Cristo Jesus, meu Ajudador e Redentor? Quão doce foi para mim livrar-me daquelas alegrias infrutíferas que antes eu temia perder, mas agora me alegrei em rejeitar! Tu as tiraste de mim, tu que és a verdadeira, a soberana alegria. Tu as tiraste de mim e tomaste o seu lugar, tu que és mais agradável do que todos os prazeres, embora não para a carne e o sangue, tu que excedes em brilho toda luz, mas estás escondido mais profundamente do que qualquer segredo em nosso coração, tu que excedes toda honra, embora não aos olhos dos homens, que veem toda honra em si mesmos.11

Na primavera de 387, num culto de vigília da Páscoa, no sábado à noite, Agostinho foi batizado por Ambrósio (c. 340-397), bispo de Milão. No ano seguinte, ele voltou para sua cidade natal no Norte da África. Por volta de 391, ele decidiu se mudar para a cidade litorânea de Hipona, a uns 240 km de Tagaste, para fundar uma comunidade em que ele e outros poderiam dedicar-se à leitura das Escrituras. Mas as coisas não saíram como ele tencionava, como ele mesmo lembrou em um sermão que pregou em meados dos anos 420:

Um escravo não pode contradizer o seu Senhor. Vim para esta cidade para ver um amigo, que eu pensava ganharia para Deus, a fim de que vivesse conosco em um monastério. Sentia-me seguro, porque o lugar já tinha um bispo. Fui apanhado. Fui constituído um presbítero… e, a partir disso, me tornei o bispo de vocês.12

Esse tipo de procedimento não era incomum na igreja da antiguidade no Norte da África.13 Alguns que foram “ordenados” desta maneira aproveitaram, sem dúvida, a primeira oportunidade que tiveram para escapar das responsabilidades que lhe foram impostas. Mas Agostinho não agiu assim, porque ele viu nessa experiência não buscada uma chamada inesperada da parte de Deus para uma vocação como pregador do evangelho. Como ele mesmo disse, “um escravo não pode contradizer o seu Senhor”.

Submetendo-se à Escritura

Dois anos depois de haver-se tornado bispo de Hipona, o que aconteceu em 395, Agostinho teve uma experiência que Gerald Bonner julga ser a mais decisiva em sua vida depois de sua conversão e batismo em 386/387. Simpliciano (falecido por volta de 400), um velho amigo de Milão, o qual sucedera Ambrósio como bispo da congregação naquela cidade, lhe fez um pedido de esclarecimento sobre o texto paulino de Romanos 9.10-29, que trata do amor eletivo de Deus para com Jacó e da rejeição de seu irmão, Esaú.14 Agostinho se dedicou ao estudo de Romanos e de outras epístolas de Paulo e foi levado a perceber que qualquer tentativa de elevar “a liberdade de escolha da vontade humana” estava, com base num ponto de vista bíblico, fundamentalmente mal orientada. Enquanto estudava o corpus paulino, “a graça de Deus teve a supremacia”, como ele disse. Em específico, foi sua meditação sobre 1 Coríntios 4.7 (“E que tens tu que não tenhas recebido?) que o levou à compreensão de que a graça de Deus sozinha é totalmente capaz de mover os pecadores em direção a Cristo. Tudo que o crente tem, inclusive a própria fé, deve ser entendido como um puro dom.15 Esta revolução em seu pensamento produziu fruto em sua explicação clássica da soberania da graça de Deus em sua própria vida, as Confissões (escrita entre 397 e 401), e também o preparou espiritualmente para sua luta posterior com os erros teológicos do pelagianismo.

Esta submissão à Escritura aponta para outro elemento-chave da vida de Agostinho, ou seja, a sua vocação como pregador do evangelho. Inúmeros relatos da vida de Agostinho traçam a sua carreira em relação às controvérsias das quais ele participou. Mas há algo muito inadequado nesta abordagem. A tarefa primária de Agostinho, no decorrer das décadas de seu ministério, foi o cuidado das almas que lhe foram confiadas. E uma expressão central desse cuidado eram os sermões que ele pregava. Ele pregava nos sábados e nos domingos, bem como todos os dias durante a quaresma e na semana após a Páscoa. Notarii, os seja, taquígrafos, anotavam o sermão em taquigrafia e, depois, o transcreveriam em escrita cursiva. Dos estimados 8.000 sermões que Agostinho pregou, 559 ainda existem.16 Esta interação constante com as Escrituras alimentava seu pensamento como nenhuma outra mensagem podia fazê-lo.17 E, quando Agostinho morreu em Hipona, em 28 de agosto de 430, ele o fez lendo quatro dos salmos penitenciais de Davi, os quais ele havia copiado e colado nas paredes de seu quarto.

Notas:

1 – Ato I, Cena 2, linhas 135-137.
2 – Quanto a este impacto de Agostinho, ver a coleção de ensaios em Irene Backus, ed., The Reception of the Church Fathers in the West. From the Carolingians to the Maurists (Leiden: E. J. Brill, 1997), vol. 1.
3 – John E. Hare, “Augustine, Kant, end the Moral Gap”, em Gareth B. Matthews, ed., The Augustinian Tradition (Berkeley, California: University of California Press, 1999), 252.
4 – Benjamin Breckinridge Warfield, “Augustine”, em sua obra Calvin and Augustine, ed. Samuel G. Craig (Philadelphia, Pennsylvania: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1956), 323.
5 – “They Speak to Us across the Centuries: 7. Augustine”, The Expository Times, 109, No. 10 (July 1998), 293.
6 – A biografia padrão de Agostinho é aquela elaborada por Peter Brown – ver sua obra Augustine of Hippo: A Biography (rev. ed.; Berkeley: University of California Press, 2000). Dois outros estudos biográficos muito úteis são os de Henry Chadwick, Augustine: A Very Short Introduction (Oxford: Oxford University Press, 2001) e de Gary Wills, Saint Augustine (New York: Viking, 1999). Ver também o resumo de Robert A. Markus, “Life, Culture, and Controversies of Augustine”, em Allan D. Fitzgerald, ed., Augustine through the Ages. An Encyclopedia (Grand Rapids/Cambridge, UK: William B. Eerdmans Publ. Co., 1999), 498-504, bem como o breve e interessante estudo escrito por Karla Pollmann, St Augustine the Algerian (Göttingen: Duehrkohp & Radicke, 2003).
7 – Sobre os seus pais, ver Allan D. Fitzgerald, “Patricius”, e Angelo di Berardino, “Monnica”, em Fitzgerald, ed., Augustine through the Ages, 621 e 570-571, respectivamente.
8The Happy Life 6.
9 – “Writing as a Means of Grace”, em Jaroslav Pelikan et at., Spiritual Quests: the Art and Craft of Religious Writing (Boston: Houghton Miflin Co., 1988), 88.
10Confessions 8.12 (trans. R. S. Pine-Coffin, Saint Augustine: Confessions [Harmondsworth, Middlesex: Penguin, 1961], 178).
11Confessions 9.1 (trans. Pine-Coffin, Confessions, 181).
12Sermon 355.2 (citado em Brown, Augustine of Hippo, 131).
13 – Henry Chadwick, The Church in Ancient Society: From Galilee to Gregory the Great (Oxford/New York: Oxford University Press, 2001), 475.
14 – Quanto à interação de Agostinho com a epístola de Paulo aos Romanos, ver especialmente Pamela Bright, “Augustine”, em Jeffery P. Greenman e Timothy Larsen, eds., Reading Romans Through the Centuries: From the Early Church to Karl Barth (Grand Rapids: Brazos Press, 2005), 59-80). Ver também J. P. Burns, “The Interpretation of Romans in the Pelagian Controversy”, Augustinian Studies, 10 (1979), 43-54; W. S. Babcock, “Augustine’s Interpretation of Romans (AD 394-396)”, Augustinian Studies, 10 (1979), 55-74; C. P. Bammel, “Augustine, Origen and the Exegesis of St. Paul”, Augustinianum, 32 (1992), 341-367.
15 – Bright, “Augustine”, em Greenman e Larsen, eds., Reading Romans, 70-71.
16 – Stanley P. Rosemberg, “Interpreting Atonement in Augustine Preaching”, em Charles E. Hill e Frank A. James III, eds., The Glory of the Atonement: Biblical Historical & Practical Perspectives. Essays in Honor of Roger Nicole (Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press: 2004), 227: Hubertus R. Drobner, “Studying Augustine: An overview of recent research”, em Robert Dodaro e George Lawless, eds., Augustine and His Critics. Essays in Honor of Gerald Bonner (London/New York: Routledge, 2000), 22-23. Quanto a uma lista da maioria dos sermões existentes, ver Éric Rebillard, “Sermones”, em Fitzgerald, ed., Augustine through the Ages, 774-789.
17 – Bright, “Augustine”, em Greenman e Larsen, eds., Reading Romans, 80.

 

Fonte: Revista Fé Para Hoje N.40 (Artigo 4).


Autor: Michael Haykin

Michael Haykin é professor de história da igreja e espiritualidade bíblica no Southern Theological Baptist Seminary, em Louisville, Kentucky, onde também trabalha como diretor do Centro de Estudos Batistas Andrew Fuller. Haykin é autor de inúmeros livros.

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Ministério Fiel: Apoiando a Igreja de Deus.

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