sábado, 27 de abril

Ajudando as vítimas de opressão

Esposas oprimidas muitas vezes não veem o que está acontecendo

Como a andorinha ou o grou, assim eu chilreava e gemia como a pomba; os meus olhos se cansavam de olhar para cima. Ó Senhor, ando oprimido, responde tu por mim. (Is 38.14)

Reconstituir as histórias das pessoas oprimidas traz consigo o mesmo sentimento esmagador de tentar montar um quebra-cabeça sem um plano estabelecido. Muitas vezes, o que temos são fragmentos de histórias e pedaços de informação. Estamos tentando entender a imagem como um todo — compreender algo de que em geral não somos testemunhas. Temos apenas uma fração de uma história maior. E, às vezes, quando estamos ouvindo histórias de opressão pela primeira vez, os detalhes que as vítimas compartilham conosco estão desorganizados ou podem parecer insignificantes, porque estão fora do contexto completo dos eventos que originalmente os envolviam. Isso pode aumentar a nossa confusão. Para tornar tudo ainda mais difícil, as esposas oprimidas muitas vezes não veem o que está acontecendo e não conseguem nos fornecer uma imagem completa. Elas nos oferecem apenas um vislumbre através de uma lente distorcida. Assim, montar o retrato do sofrimento de uma vítima requer tempo e sabedoria.

As vítimas não podem dar-se ao luxo de perdermos alguma parte crucial das suas histórias ou de as culparmos por algo que não é culpa delas. Assim como em um quebra-cabeça, se desacelerarmos e pensarmos no processo de montar suas histórias, será mais fácil para nós entendermos as peças de informação que estamos coletando. É muito melhor nos movermos lentamente e priorizarmos a segurança quando suspeitamos de abuso. Os riscos são altos, e quaisquer erros que cometamos não se corrigirão por si sós.

É fácil ficarmos desorientados enquanto as esposas oprimidas contam suas histórias. Ao fazerem-no, essas mulheres são repetitivas, atormentadas, cheias de culpa, confusas e até iradas, e duvidam de sua própria percepção dos eventos. As histórias delas podem ser difíceis de acompanhar. Não descarte o que você não entende. Continue fazendo perguntas, gentilmente, até obter clareza.

Às vezes, recebemos um pedaço de uma história, apenas um pequeno detalhe. Talvez você ouça de uma briga dentro do carro, durante a qual o marido vociferava palavrões, e seja tentado a menosprezar o relato. Todo mundo se destempera às vezes. Ao ouvir coisas assim, sempre se pergunte: “Isso já aconteceu antes?”. Às vezes, um pedaço de uma história pode até nos parecer de pouca importância. Como vimos no capítulo 1, talvez uma vítima com- partilhe uma ocasião em que seu marido a ignorou. Isso pode lhe parecer um detalhe irrelevante. No entanto, ao se lembrar de que está procurando um padrão de controle coercitivo, você perceberá que todo episódio de coerção é significativo. Procure um padrão e observe as maneiras como um opressor estabelece a dominação ao longo do tempo. Mais uma vez, estou apelando a que você procure diligentemente entender o quadro geral — não apenas julgar cada peça individualmente, desprovida de seu contexto.

Os capítulos da parte 2 deste livro pintarão um quadro detalhado das várias formas de abuso. Eles fornecerão perguntas diagnósticas e outras formas de avaliar a presença e a gravidade do abuso. Não importa sua função — conselheiro, pastor ou amigo —, elas o ajudarão a fomentar conversas com as vítimas. Estes capítulos também almejam fornecer-lhe uma abordagem sistemática para organizar e categorizar as informações que você está coletando. Isso é importante não só para ajudar a vítima a obter percepção, mas também para ajudar uma igreja que porventura esteja envolvida na situação a considerar como ela pode administrar correção e disciplina ao seu opressor.

Uma maneira simples de começar

Muitas vítimas procuram aconselhamento repetidamente, leem todos os livros sobre casamento, oram intensamente por mudanças e alívio, e tentam promover mudanças significativas; e, ainda assim, seu abuso continua. Perguntar a uma vítima sobre os esforços que ela já fez é muito importante, mas tenha cuidado para não aumentar o fardo dela, fazendo-a pensar que ela é responsável por resolver a opressão ou que não tem se esforçado o suficiente. Você deve buscar fazer perguntas como as seguintes de uma forma que torne mais fácil ela se abrir com você e, ao mesmo tempo, mostre que você a apoia. Ao agir desse modo, você fará algumas conquistas. Primeiro, isso a honrará como pessoa, ao demonstrar que você acredita que ela já tem tentado reagir de maneiras boas e piedosas. Segundo, isso permitirá que ela reflita sobre o quanto já tem se esforçado por seu casamento. Terceiro, as respostas dela o lembrarão de que não há soluções simples, o que afastará você da tentação de oferecer conselhos banais para um problema sistêmico.

  • Que livros você já leu? Algum deles ajudou ou machucou você?
  • Você já procurou aconselhamento? Foi útil?
  • Compartilhe comigo algumas coisas que você já tentou fazer ou mudar.
  • Você compartilhou o que está acontecendo com mais alguém?
  • Como essas pessoas responderam?
  • Você tem conseguido orar sobre isso?[i]

Quando a pessoa oprimida compartilhar com você o que ela já tentou, reconheça seus esforços anteriores. Em seguida, pergunte a ela:

  • O que você acha que pode ajudar?
  • Que coisas fazem você se sentir presa ou insegura?
  • O que você tem medo de que aconteça?
  • Como você está?
  • Como posso ajudar?

Falar é redentor

A parte 2 deste livro inclui perguntas que você pode fazer às vítimas; e, sim, elas foram pensadas para ajudá-lo a desmascarar a opressão. Mas elas também servem a outro propósito. É crucial que uma pessoa oprimida conte sua própria história. Não basta nós enxergarmos o quadro de sua história; ela também precisa enxergá-lo. Falar é crucial para encontrar redenção. As vítimas precisam encontrar palavras para expressar suas histórias para que possam localizar lugares nas Escrituras que abordem essas histórias. Elas também precisam de palavras para poderem falar com o Senhor.

A opressão é muitas vezes indescritível, confusa e vergonhosa. É difícil para as vítimas capturarem o que estão experimentando; as palavras tendem a fugir delas. Porém, uma vez que elas tenham palavras que se encaixem à sua experiência, palavras que capturem as maneiras como elas foram vítimas de pecado e estão sofrendo, elas conseguem acessar uma abundância de ricos ensinamentos na Escritura — ensinos que Deus falou para conosco e que as guiarão e consolarão. Consideraremos as muitas maneiras como falar ajuda uma esposa oprimida a crescer em sua compreensão do abuso, a responder a ele e a promover seu relacionamento com Deus enquanto está sofrendo.

Falar traz o abuso à luz

O abuso precisa do silêncio para crescer e prosperar. Como disse Elie Wiesel, sobrevivente do Holocausto e ganhador do Prêmio Nobel: “Eu jurei nunca ficar em silêncio sempre e onde quer que seres humanos estiverem passando por sofrimento e humilhação. Temos de tomar partido. A neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o atormentador, nunca o atormentado”.[ii] Falar é o primeiro ato que uma vítima pode adotar para trazer o pecado à luz, onde se pode fazer algo a seu respeito. Falar torna possível seu primeiro passo de declarar que a opressão a qual ela está sofrendo é errada. Suas palavras nos permitem entrar em sua história à medida que ela a compartilha conosco, nomeando o mal e resistindo-lhe. E tais palavras devem fazer com que nós mesmos nos manifestemos contra os pecados que ela está suportando.

Falar orienta os desorientados

A opressão distorce a verdade. Em um casamento abusivo, o que é ruim é chamado de bom, mentiras são ditas como se fossem verdades, mágoa e dor são confundidas com amor, ser subjugada é confundido com submissão voluntária, e a vítima é tratada como inimiga. Tudo está de cabeça para baixo. Ajudar as mulheres desorientadas a falar sobre os abusos e seus efeitos nos permite reorientá-las. Isaías 5.20 coloca desta forma: “Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem, mal; que fazem da escuridade luz e da luz, escuridade; põem o amargo por doce e o doce, por amargo!”

Precisamos ajudar a vítima a identificar o que é verdadeiramente bom e verdadeiramente mau. Se ela não conseguir identificar esses conceitos básicos, é provável que a maneira como ela entende Deus e as Escrituras também seja invertida. Por exemplo, se ela for instruída a se submeter ao marido e experimentar a submissão como algo que seu marido extrai dela coercitivamente, subjugando-a, isso pode levá-la a questionar Deus e sua Palavra. Tais distorções também podem levá-la a duvidar de si mesma. Por exemplo, se disserem que ela está mentindo quando está falando a verdade, ela pode começar a duvidar de sua própria memória. As distorções causam danos consideráveis e, quando a vítima fala a respeito delas, isso nos permite ajudá-la a saber o que é certo e verdadeiro.

Falar incentiva a conexão com o Senhor

É muito difícil orar por algo se você não consegue encontrar palavras que expressem sua experiência. É difícil encontrar textos bíblicos que se conectem à sua situação e ao seu coração se você é incapaz de identificar palavras que transmitam o que você está enfrentando. Quando uma vítima nos conta sua história, ela está encontrando palavras; e quando respondemos dando-lhe uma moldura bíblica para seu sofrimento, estamos ajudando-a a se conectar com a Palavra de Deus e com o coração dele a seu favor.

Falar traz cura

Contar a história é uma parte essencial do processo de cura. Todos nós podemos nos identificar com isso em algum nível. Pense na última coisa que amedrontou você, uma perda que você enfrentou, ou uma dor que você sofreu. Em seguida, pense em como foi útil falar sobre isso e compartilhar com amigos o que aconteceu com você. Cada vez que você compartilhava a história e recebia uma resposta apropriada e terna, com simpatia e compreensão, você obtinha um entendimento mais firme do que havia acontecido e como aquilo lhe estava afetando. Falar com alguém ajuda a curar.

Histórias de violência doméstica não são fáceis de contar. A vergonha e o medo que as acompanham nos tentam a mantê-las es- condidas. Judith Herman nos dá um alerta essencial sobre histórias que são difíceis de contar:

A resposta habitual às atrocidades é bani-las da consciência. Certas violações do pacto social são terríveis demais para serem ditas em voz alta: esse é o significado da palavra indizível.

Atrocidades, no entanto, se recusam a ser enterradas […]

O conflito entre a vontade de negar eventos horríveis e a vontade de proclamá-los em voz alta é a dialética central do trauma psicológico. Pessoas que sobreviveram a atrocidades muitas vezes contam suas histórias de maneira altamente emocional, contraditória e fragmentada, o que prejudica sua credibilidade e, assim, serve ao duplo imperativo de contar a verdade e manter o sigilo. Quando a verdade é finalmente reconhecida, os sobreviventes podem começar a sua recuperação. Mas, muitas vezes, o sigilo prevalece, e a história do evento traumático ressurge não como uma narrativa verbal, mas como um sintoma.[iii]

Histórias não contadas e horrores reprimidos surgirão na forma de sintomas físicos e psicológicos, tais como enxaquecas, insônia, ansiedade ou incapacidade de concentração. Falar em comunidade sobre o nosso sofrimento é essencial, porque o nosso corpo expressará a dor sobre a qual não falamos.

Mais cedo ou mais tarde, desejaremos ajudar a pessoa oprimida, lenta e cuidadosamente, a inserir sua história no enredo mais amplo da redenção. Deus se lembra do mal e o chama pelo nome. Sua Palavra está cheia de detalhes brutais, palavras que expressam angústia e tensões não resolvidas. O sofrimento capturado nas Escrituras raramente é retratado como exigindo apenas cura rápida ou soluções fáceis. Ainda assim, o tema abrangente da Escritura descreve nosso resgate e redenção. Deus age em favor de seu povo. Ele não nos deixa; ele vem ao nosso encontro. Com o tempo, à medida que uma esposa oprimida contar sua história, ela se tornará uma história sobre o que Deus tem feito por ela.

 

[i]Uma advertência sobre esta pergunta: muitas esposas com quem falo sentem-se como se Deus estivesse longe delas. Elas clamaram ao Senhor e sentem que ele não as ajuda nem responde. Como resultado, elas podem ter parado de orar por seu casamento. Eu gosto de lembrá-las de que este é um dos maiores temores do salmista: que Deus tenha desviado seu rosto dele. Não é errado sentir-se assim; é bom expressar isso. Aqui está apenas um dos muitos exemplos desse sentimento expresso na Escritura: “Por que, SENHOR, te conservas longe? E te escondes nas horas de tribulação?” (Sl 10.1).

[ii]Elie Wiesel, discurso de agradecimento do Prêmio Nobel, Prefeitura de Oslo, Noruega, 10 dez. 1986. Disponível em: https://eliewieselfoundation.org/elie-wiesel/nobelprizespeech/. Acessado em: 13 mar. 2022.

[iii]Judith Herman, Trauma and Recovery: The Afermath of Violence — from Domestic Abuse to Political Terror (New York: BasicBooks, 1997), p. 1.

 

Por: Darby A. Strickland. ©️ Ministério Fiel. Website: ministeriofiel.com.br. Todos os direitos reservados. Editor e revisor: Renata Gandolfo.


Autor: Darby A. Strickland

Darby Strickland aconselha e ensina no CCEF. Ela é colaboradora de Becoming a Church That Cares Well for the Abused e autora de dois livretos, Domestic Abuse: Recognize, Respond, Rescue e Domestic Abuse: Help for the Sufferer.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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