O texto abaixo foi extraído do livro Por que a Reforma ainda é importante?, de Michael Reeves e Tim Chester, lançamento da Editora Fiel.
Uns 120 anos depois da Reforma, cerca de 120 acadêmicos se reuniram em Westminster para redigir os documentos necessários para uma igreja reformada na Inglaterra. O resultado foi o Breve Catecismo de Westminster, uma lindíssima flor premiada do pensamento reformado:
Pergunta: Qual a finalidade principal do homem? Resposta: A finalidade principal do homem é glorificar a Deus, e gozá-lo para sempre.
A glória de Deus e o prazer nele: essas verdades gêmeas inseparáveis foram luzes que guiaram a Reforma. Os reformadores mantinham, por meio de todas as doutrinas pelas quais lutaram e que sustentaram, que Deus era glorificado e que as pessoas recebiam conforto e alegria.
Na justificação somente pela graça, somente pela fé em Cristo, Deus era glorificado como totalmente misericordioso e bom, supremamente santo e compassivo – e, portanto, as pessoas podiam encontrar nele seu conforto e deleite. Por meio da união em Cristo, os crentes podiam encontrar uma posição firme diante de Deus, com alegria indizível, conhecendo-o como seu “Aba”, confiantes em seu poder para salvar e guardar até o final. Sem uma hierarquia sacerdotal separada do mundo, os crentes podiam chamar uns aos outros de “irmãos” e “irmãs”, vivendo cada parcela da vida para o bondoso Pai, por quem foram conduzidos à sua alegria.
Neste livro, acreditamos que os reformadores estavam certos nisso e, portanto, que a Reforma ainda é importante, pois essas verdades ainda vivem sob a feliz luz da glória de Deus.
Temor e presunção
Uma boa prova disso pode ser vista na forma como as teologias católica romana e reformada diferem em relação à nossa segurança da salvação. O crente pode saber que está salvo?
Do lado da Reforma, o puritano Richard Sibbes defendeu essa segurança, pois, sem ela, simplesmente não podemos ter a vida cristã conforme Deus quer que a tenhamos. Deus, disse ele, deseja que sejamos gratos, alegres, regozijando-nos sempre, firmes na fé. Mas não teremos nenhuma dessas características se não estivermos certos de que Deus e Cristo são nossos para nosso bem.
Haverá muitos deveres e disposições que Deus requer, nas quais não poderemos estar sem a segurança da salvação em boas bases. O que é isso? Deus nos ordena dar graças em todas as coisas. Como posso saber isso a não ser que eu saiba que Deus é meu e que Cristo é meu? […]
Deus nos prescreve regozijarmo-nos. “Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo: alegrai-vos”, Filipenses 4.4. Como um homem pode alegrar-se por seu nome estar escrito no céu, e não saber que seu nome está ali escrito? […] Ai de mim! Como poderei prestar um culto alegre a Deus se duvido de que ele é meu Deus e Pai? […] Deus requer uma disposição de nossa parte, para que sejamos plenos de encorajamento e fortes no Senhor; que sejamos corajosos por sua causa ao suportar seus inimigos e os nossos. Como pode haver coragem para resistirmos às nossas corrupções e às tentações de Satanás? Como pode haver coragem no sofrimento, na perseguição e nas cruzes do mundo, se não houver algum interesse particular que tenhamos em Cristo e em Deus?
Contudo, a própria confiança sustentada por Sibbes como um privilégio cristão foi condenada pela teologia católica romana como pecado da presunção. Foi precisamente uma das acusações feitas contra Joana d’Arc em seu julgamento em 1431. Ali, os juízes proclamaram:
Esta mulher peca ao dizer que tem certeza de ser recebida no Paraíso como se já fosse participante da… glória, visto que nesta jornada terrena nenhum peregrino sabe se será digno da glória ou do castigo, o que somente o soberano juiz pode dizer.
Tal juízo fazia completo sentido dentro da lógica do sistema. Se somente entraremos no céu ao nos tornarmos (pela graça capacitadora de Deus) pessoalmente dignos disso, é claro que ninguém poderá ter certeza disso. Por essa linha de raciocínio, só posso ter tanta confiança no céu se tiver confiança de eu mesmo não haver pecado.
Assim, embora esse pensamento fizesse sentido no catolicismo romano, gerava medo, e não alegria. A necessidade de possuir méritos pessoais diante de Deus deixava as pessoas aterrorizadas diante da perspectiva do juízo. Você ainda consegue sentir isso quando vir um afresco medieval do Juízo Final. Consegue ouvi-lo nas palavras do Dies Irae que seriam entoadas em toda missa católica pelos mortos:
Dia de ira, dia que dissolverá o mundo em brasas de fogo […]. O que eu, miserável, poderei dizer? A que benfeitor poderei implorar? Quando nem os justos estão seguros! Rei de tremenda majestade […]. Não me percas naquele dia […] Minhas orações não são dignas, mas Tu, Bom (Deus), trata bondosamente para que eu não arda em fogo perene.
E era exatamente por isso que o jovem Lutero tremia de medo diante da ideia da morte, e porque dizia que odiava a Deus (em vez de se alegrar nele). Ele não conseguia ser grato, animado, alegre, forte na fé, pois só cria em Deus como juiz que estava contra ele. Era uma visão de Deus reforçada por uma escultura que passava toda vez que ele entrava na igreja da cidade em Wittenberg.
Em baixo-relevo de pedra, acima da entrada do cemitério que circulava a igreja, Lutero via, esculpido na mandorla (uma auréola em forma de amêndoa), Cristo assentado sobre o arco-íris como juiz do mundo, tão irado que as veias ressaltavam, ameaçadoras e inchadas, em sua testa.
Com a sua descoberta de que os pecadores são declarados livremente justos em Cristo, tudo isso mudou. Sua confiança para aquele dia não estava mais firmada sobre si mesmo: repousava em Cristo e em sua justiça suficiente. Assim, o horripilante dia de ira tornou-se, para ele, o que chamaria de “o mais feliz Último Dia”, dia de Jesus, seu amigo. A consolação que trouxe a todos que aderiram à teologia reformada foi encerrada de modo perfeito nas palavras surpreendentes do Catecismo de Heidelberg:
Pergunta: Qual é meu único consolo na vida e na morte? Resposta: Em toda tristeza e perseguição, ergo minha cabeça e aguardo como juiz do céu a mesma pessoa que antes se submeteu ao juízo de Deus por amor a mim, e retirou de mim toda a maldição.
Conforto em Cristo para o crente que luta: essa era a teologia da Reforma.