No que diz respeito à combinação de doutrina e piedade, Agostinho teve poucos que se lhe igualaram na história do cristianismo. Seus escritos proveem informação sobre cada área de discussão na filosofia cristã, teologia sistemática, filosofia da história, polêmica, retórica e devoção. Embora algumas opiniões apoiem as doutrinas de oração intercessora e sacrifícios em favor dos mortos, o purgatório e a justificação transformacional, as suas poderosas doutrinas da graça, bem como da encarnação e do sacrifício de Cristo recebem desenvolvimento substancial e acurado nas confissões do cristianismo reformado. Depois da queda de Roma, o projeto milenar de reconstrução da civilização ocidental, no pensamento cristão e não no pensamento pagão, prosseguiu com base em conceitos agostinianos. A Reforma, no século XVI, redescobriu e edificou sobre elementos negligenciados do ensino de Agostinho sobre as doutrina do pecado e da salvação.
Agostinho nasceu em 354, em Tagaste, na província romana da Numídia, no Norte da África. Observações posteriores sobre a infância e a queda levaram Agostinho a comentar: “A inocência das crianças está na debilidade de seu corpo e não em qualquer qualidade em sua mente” (Confissões 1.vii – as referências subsequentes das Confissões serão identificadas apenas pelos números do livro e do capítulo).
Seu pai, Patrício, era um pagão. Agostinho o lembrava como um homem rude, forte, irascível e infiel ao seu leito conjugal. Ele trabalhava muito, mas achava difícil subir como um africano no sistema romano de economia e política. Parece que Agostinho sentia pouca afeição por seu pai, embora este tenha se sacrificado para lhe dar educação. Patrício morreu antes de Agostinho completar 17 anos.
Sua mãe, Mônica, era uma cristã zelosa. Extraordinariamente apegada a Agostinho e ao seu bem-estar, Mônica procurou a salvação de seu filho com energia incansável e oração constante. Ela pulou, literalmente, de alegria quando ouviu sobre a conversão de Agostinho e sua sujeição ao cristianismo ortodoxo. Logo depois, segura de que os dons e a devoção de Agostinho ardiam para a glória de Deus, Mônica soube que não viveria muito tempo. Ela morreu aos 56 anos de idade, quando Agostinho tinha 33 anos.
Na opinião de Agostinho, ambos os pais deram ênfase indevida ao sucesso de seus estudos. Seu pai não tinha nenhuma motivação espiritual, apenas ambição vã pelo prosperidade do filho. Sua mãe acreditava que seus estudos não impediriam a sua conversão, mas que, de fato, a favoreceria. Ela estava certa.
Depois da educação fundamental em Tagaste, Agostinho estudou, de 365 a 369, literatura clássica em Madaura. Ele começou um amor vitalício pela linguagem que procurava a expressão apropriada da verdade. Seus primeiros estudos mostraram quão perversamente os homens podem usar algo tão maravilhoso e intrinsecamente bom como a linguagem. Palavras e eloquência tão necessárias à persuasão e à exposição sofreram o abuso de definir e inculcar o erro e a vileza. Posteriormente, em suas Confissões, Agostinho observaria com que cuidado ávido os homens seguem as regras de letras e sílabas, enquanto negligenciam as regras permanentes da salvação eterna.
Com a ajuda de um benfeitor rico chamado Romanianus, Agostinho foi para Cartago em 370, para ter estudos avançados em retórica. Ali, ele começou uma concubinagem com uma mulher, e isso durou por 13 anos. Um filho, Adeodato (“dado por Deus”), resultou da união deles. Ao pensar no desejo que o impeliu a essa união, Agostinho lembrou: “Da impura concupiscência da carne e da poderosa imaginação da puberdade, se elevaram névoas que encobriram e entenebreceram meu coração, para que eu não pudesse fazer distinção entre a luz clara do amor e o nevoeiro da lascívia” (2.ii).
Em Cartago, ele conheceu a obra Hortensius, de Cícero. Isto transformou sua experiência anterior com a retórica em um uso inteligente da linguagem na busca da verdade. “A coisa que me deleitou na exortação de Cícero foi que eu deveria amar, buscar, ganhar, possuir e abraçar não esta ou aquela escola de filosofia, mas a própria sabedoria, o que quer que ela fosse” (3.iv). Esta nova resolução pela verdadeira sabedoria pôde produzir somente um desejo protelado por pureza, como Agostinho orou: “Dá-me castidade e continência, mas não ainda” (8.vii).
Por nove anos, ele procurou a verdade dentro da seita do maniqueísmo, fascinado pelo materialismo e pelo dualismo deles. Os maniqueístas lidavam com o problema do mal por combinarem pensamentos de Cristo, Buda e Zoroastro. Agostinho aceitou o que parecia ser uma abordagem sofisticada e científica do mal, ao mesmo tempo que endossava ostensivamente o treinamento que recebera na infância concernente ao ensino do reino de Cristo. Por fim, ele descobriu que esse sincretismo fascinante não tinha nada em comum com sua busca pessoal pela unidade entre palavra e substância. Em vez disso, o maniqueísmo era “uma seita de homens que falavam absurdos pretenciosos, homens carnais e mundanos”. A conversa deles enredavam as almas “com um arranjo das sílabas dos nomes de Deus, o Pai, do Senhor Jesus Cristo e do Paracleto, o Espírito Santo, nosso Consolador. Estes nomes estavam sempre nos lábios deles, mas somente como sons e barulhos da língua” (3.vi).
Suas reflexões sobre o dualismo maniqueísta resultou num dos seus mais profundos pontos teológicos a respeito do mal. Em sua obra Solilóquios, escrita logo depois de sua conversão, ele se referiu a Deus como aquele “que mostra, para os que nele buscam o refúgio daquilo que é realmente verdadeiro, que o mal é nada”. Visto que Deus criou todas as coisas, o mal não tem existência independente das coisas boas. O mal é a privação do bem. Quando todo o bem desaparece, nada existe. O mal é apenas ausência ou configuração errônea do bem. Não é uma substância independente que invade e contamina, mas tem de plagiar o bem de Deus e diminuir a sua glória. O mal não é removido pela erradicação de uma natureza contrária, como os maniqueístas pensavam, e sim pela purificação da própria coisa que é depravada. A verdade e a mentira, de acordo com Agostinho, habitam na mesma tensão, pois nada é falso, exceto pela imitação do verdadeiro.
Depois de completar seus estudos, Agostinho ensinou retórica em Cartago. Ele achava a atmosfera pedagógica intolerável. Um grupo de alunos conhecidos como “transtornadores” perturbavam toda a ordem, agiam como homens loucos que praticavam atos estúpidos e ultrajantes. Se não fossem protegidos pela “tradição”, poderiam ter sido punidos pela lei.
A fim de escapar dessa atmosfera destrutiva, Agostinho foi para Roma em 383. Naquele ano, ele ouviu sobre um posto de ensino de retórica em Milão. Os termos eram atraentes; Agostinho solicitou esse posto e foi para lá em 384. Em Milão, ele conheceu Ambrósio, o grande pregador da igreja em Milão. Ele não achou a retórica de Ambrósio tão brilhante quanto a de Fausto, o mestre maniqueísta, mas logo aprendeu que o verdadeiro poder da pregação de Ambrósio estava na correspondência de sua linguagem com a realidade verdadeira e substancial. Agostinho ficou convencido de que o cristianismo era defensável contra os maniqueístas e se alistou novamente como um catecúmeno na igreja. Posteriormente, o neoplatonismo limpou a sua mente do dualismo dos maniqueístas, depois de um breve flerte com o ceticismo. Seu realinhamento com a Escritura começou a preencher os espaços vazios em seu desenvolvimento intelectual. As doutrinas cristãs da criação ex nihilo, da providência, da redenção realizada pelo Deus trino satisfizeram mais do que abundantemente os anseios tanto de seu coração quanto de sua mente.
Agora, ele sabia que o homem feito à imagem de Deus não poderia achar descanso para a alma sem o amor, o louvor e o conhecimento de Deus. Somente Deus é aquele que é “amado, intencionalmente ou não, por tudo que é capaz de amar”. Agostinho descobriu que Deus “nos move a deleitar-nos em louvar-Te; porque Tu nos formaste para Ti mesmo, e nossos corações não têm descanso enquanto não acham descanso em Ti” (1.1).
Aos 31 anos de idade, Agostinho foi convertido com a leitura de Romanos 13.13-14. Em um jardim, ele ouviu crianças cantarem: “Pega e lê”. Quando ele pegou uma Bíblia, seus olhos caíram nas palavras desta passagem e levaram ao fim de um ciclo de insatisfação, convicção e busca que o dominou por mais de 15 anos. Ele foi batizado por Ambrósio em 25 de abril de 387.
Agostinho desejava viver em reclusão, não possuindo nada, havendo abandonado sua busca anterior por prazer, beleza e honra, dando-se à contemplação de Deus por meio da Escritura. Ele evitou diligentemente estar numa posição em que alguma igreja que não tinha um bispo colocasse os olhos nele. Agostinho foi para Hipona em 391, com o propósito de estabelecer um monastério, porque a cidade tinha um bispo, Valério. No entanto, Valério dispôs as coisas de modo a ordenar Agostinho como sacerdote e, depois, como bispo, em 395.
Agostinho gastou o restou de sua vida servindo às pessoas de sua paróquia, como pastor e pregador, e a toda a igreja, como um guia profundo da verdade cristã e da adoração pura. Suas Confissões, uma autobiografia espiritual, estabeleceu a agenda teológica à qual ele dedicou suas grandes habilidades de reflexão filosófica e teológica. Seus pontos de vista sobre Cristo, a Trindade, o pecado humano, o caráter do mal, a livre agência apesar da depravação da vontade caída, o poder e a necessidade da graça divina, a natureza dos sacramentos e a direção da história humana sob a providência de Deus em um mundo caído – todos estes acharam um ponto de partida nas Confissões.
Sua afirmação “Dá o que ordenas e ordenas o que quiseres” (10.xxix) ofendeu Pelágio. A defesa resultante e permanente de Agostinho quanto à necessidade de graça levou a algumas das suas posições mais profundas e controversas. Este aspecto do pensamento de Agostinho inspirou o viver nobre e a teologia vigorosa em Anselmo, Tomás de Aquino, Lutero, Calvino, Jonathan Edwards e muitos outros. Ele articulou seus pontos de vista sobre a pessoa de Cristo tão clara e convincentemente, que antecipou a fórmula dos conceitos cristológicos e ortodoxos de Calcedônia. Sua admirável teodiceia mostrada em Cidade de Deus não somente revolucionou os pontos de vista ocidentais sobre a História, mas também criou uma dinâmica para a discursão das relações entre Estado e igreja que ainda produz frutos e desperta controvérsia. Embora sua defesa da perseguição dos donatistas tenha produzido muito fruto mau, suas opiniões poderosas sobre a unidade da igreja têm dado substância a muitos esforços evangélicos para a realização de vários tipos de unidade por meio de discursão e afirmação doutrinária.
O monge Gottschalk afirmou 1.200 anos atrás o que ainda é verdadeiro hoje: Agostinho é, depois dos apóstolos, o mestre de toda a igreja.
Fonte: Revista Fé Para Hoje N.40 (Artigo 2).