quarta-feira, 22 de outubro
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Autoridade é o reflexo do governo de Deus

Definindo autoridade. O que, exatamente, ela é?

Distinguir autoridade de poder ajuda a responder a essa pergunta. Poder é a habilidade ou capacidade de fazer algo — a habilidade, digamos, que alguém tem de carregar uma pedra, resolver um problema de matemática ou consertar uma torneira com vazamento. Autoridade, por sua vez, diz respeito ao direito ou à legitimidade moral para tomar decisões com base nesse poder. Trata-se de uma autorização para agir. Além disso, para que alguém tenha autoridade, é necessário que alguém o autorize a fazer seja lá o que ela quer que você faça. Deve haver um agente concessor da autoridade.

Aos 15 anos, minha filha tinha o poder de dirigir um carro; ela tinha a capacidade física de fazê-lo. Contudo, minha filha não podia fazê-lo legalmente, pois não havia sido autorizada. Aos 16 anos, ela passou em um teste de direção e o departamento de trânsito de Maryland lhe deu uma carteira de habilitação. Esse documento simboliza sua autoridade para conduzir um veículo em vias públicas.

Além disso, toda autoridade ou autorização tem limites ou fronteiras. Esses limites estão vinculados à finalidade para a qual a autorização é dada. Minha filha, por exemplo, recebeu autoridade para dirigir um carro, não uma motocicleta ou um caminhão semirreboque de dezoito rodas. Ambos exigiriam uma licença ou autorização adicional.

Em outras palavras, ao receber autoridade sobre algo, essa autoridade se restringe a um certo âmbito, não a toda e qualquer área que você desejar. Seu direito moral de tomar decisões ou dar ordens está dentro de certos limites, ou o que poderíamos chamar de uma jurisdição. Pense na referência de Jesus a “um homem que sai de viagem. Ele deixa sua casa, encarrega de tarefas cada um dos seus servos e ordena ao porteiro que vigie” (Mc 13.34, NVI). Deus não colocou ninguém no comando de tudo, mas apenas de algo — cada um é encarregado de “tarefas” específicas.

Portanto, quando chegarmos aos capítulos posteriores sobre a autoridade do marido, do pai, do presbítero e assim por diante, precisaremos perguntar sobre cada uma delas: “Qual é o propósito desta autorização? Qual é a tarefa encarregada?” Responder a essas perguntas nos ajudará a determinar cada jurisdição, bem como o que constitui — e o que não constitui — uma afirmação legítima de autoridade em cada caso.

Por exemplo: a polícia foi autorizada a impor limites de velocidade. Policiais podem parar minha filha se ela estiver em alta velocidade, e ela está moral e legalmente obrigada a parar se vir aquelas luzes piscando em seu espelho retrovisor. Está dentro da jurisdição do policial. No entanto, suponhamos que, ao se aproximar da janela do carro, o policial lhe dissesse que ela deve se casar com seu filho, que estuda na mesma escola e tem uma queda por ela. Isso claramente ultrapassaria sua jurisdição. Minha reação seria: “Como é que é?!”

Como eu disse na introdução, somente o Criador tem autoridade absoluta e universal. Sua autoridade é. Ele pode nos dizer o que comer, o que vestir, com quem podemos ou não dormir e como adorar. Sua autoridade não está sujeita a recurso a um tribunal superior nem pode ser extinta por algum tipo de demissão, visto que não fomos nós quem o colocamos no cargo. Podemos ignorá-lo por um tempo, mas não podemos votar para tirá-lo de lá. Ele possui um direito moral inerente de governar, fazer julgamentos e exercer poder. Como um autor que escreve o que lhe agrada, o autor de toda a criação tem toda a autoridade sobre aquilo que ele fez.

A autoridade humana, em contrapartida, é sempre relativa. Não é algo que nós somos, e sim algo que deve nos ser dado.[i] É um ofício que devemos assumir — seja o ofício de pai, marido, cidadão, membro de igreja, pastor/presbítero, policial, congressista, juiz, professor, piloto de avião, operador de pedágio e assim por diante.

Autoridade enquanto ofício

Gosto da palavra “ofício” para falar sobre autoridade. Ela funciona como uma máquina de raio-X que nos ajuda a ver o esqueleto ou as estruturas institucionais que definem vários tipos de relacionamentos. Dizer: “Michel é pai de Cecília” é definir o relacionamento entre Michel e Cecília. Isso molda a identidade de cada um e atribui um conjunto de obrigações, responsabilidades e poderes a cada um. Para falar de forma um pouco mais técnica apenas por um segundo, a ideia de um ofício comunica o fato de que:

• Nenhuma autoridade é intrínseca a uma pessoa, mas vem de um agente que a concede.

• A autoridade de alguém serve a um propósito ou escopo específico.

• Ela traz consigo certas responsabilidades e um código de ética.

• É um exercício de mordomia que possui jurisdição e duração limitadas.

• É dada a indivíduos específicos, e não a todos.

Na medida em que a autoridade existe enquanto ofício, podemos discernir a diferença sutil entre as ideias de autoridade e liderança. Quando falamos sobre liderança, geralmente nos concentramos em um agente, não em um ofício. Nesse sentido, recentemente ouvi minha esposa, que é uma professora dos anos iniciais do ensino fundamental, dizer aos pais de um de seus alunos: “Ele é um líder nato.” O que ela quis dizer foi que o garoto em questão possui a inteligência social e os dons de carisma que fazem com que outros alunos o sigam, seja em um projeto de sala de aula ou em uma brincadeira no parquinho. Isso não significa que o aluno possui autoridade formal. Ele possuiria autoridade somente se minha esposa lhe concedesse, digamos, ao torná-lo um representante de sala.

Quando um líder nato lidera, pode haver consequências naturais em alguém não segui-lo, mas não há uma obrigação moral de seguir. Quando uma pessoa ocupa uma posição formal de autoridade, contudo, há obrigações morais de se submeter ou seguir. É errado não a seguir. É por isso que defini autoridade como a legitimidade ou licença moral para tomar decisões ou dar ordens.

A mesma diferença existe entre as ideias de autoridade e influência. Influência é um tipo de poder, o que significa que uma pessoa pode tê-lo, quer possua ou não o direito moral a essa influência.

Dito isso, usarei as ideias de liderança e autoridade como sinônimos no restante deste livro. É mais fácil dizer “líder” do que se referir constantemente à “pessoa em posição de autoridade”.

Autoridade nos ensina sobre a bondade e sobre Deus

Há um último propósito para a autoridade, já mencionado implicitamente, mas que vale a pena explicitar: exercer autoridade ensina às pessoas como Deus é. Posso explicar essa declaração de duas maneiras. Posso falar como um filósofo e dizer que a autoridade nos ensina a diferença entre certo e errado, bem e mal, digno e indigno, verdadeiro e falso, sagrado e profano. Ou posso falar como um teólogo e dizer que a autoridade nos ensina sobre Deus, já que Deus é a fonte de tudo o que é certo, bom, digno, verdadeiro e sagrado.

Deixe-me começar como um filósofo. A autoridade existe porque a moralidade e a verdade existem e porque o significado, o valor, a intencionalidade, a glória e a beleza existem. Autoridade é o requisito moral que acompanha a existência de todas essas coisas. Em um universo sem valores, significados, verdades e bondades universais ou compartilhados, poderíamos suprimir a autoridade. Mas se há valores, verdades e significados que desejamos proteger e defender, então a autoridade deve existir. Temos regras sobre roubo porque a propriedade é valiosa. Proibimos o assassinato porque a vida humana é preciosa. Restringimos a intimidade física ao casamento porque a união de um homem e uma mulher é preciosa. Desse modo, condenar todas as expressões de autoridade e as regras que elas impõem é condenar todo significado, valor, verdade, beleza e bondade. Tal rejeição deixa a vida completamente entregue aos caprichos de cada fantasia passageira que corações rebeldes possam conceber de forma espontânea. Diferentemente, reservar um lugar para a autoridade, mesmo em meio a seus perigos, é dar um passo de fé e insistir que este universo certamente tem significado e valor, glória e beleza, os quais aguardam sua plena revelação.

Agora, deixe-me falar como um teólogo. Ao contrário do que fez com os animais, Deus criou o ser humano à sua semelhança (substantivo) para que possamos nos assemelhar a ele (verbo) ao governarmos a criação. O Senhor nos fez representantes (substantivo) para que possamos representar (verbo). Como eu disse há pouco, ele não nos faz apenas reis, mas reis-sacerdotes, visto que os sacerdotes mediam. Nosso governo deve mediar ou representar o governo dele. Quando governamos como Deus governa, mostramos ao cosmo como ele é. Em certo sentido, a autoridade humana nada mais é do que a escolha ou agência humana. Deus nos deu uma licença para fazermos escolhas, mas para escolhermos de acordo com os princípios de sua justiça ou lei. Dessa forma, ao exercermos domínio sobre a terra, parecemo-nos com ele.

Deus nos diz: “Observe como falo — com sinceridade e amor. Agora faça o mesmo.” Em seguida, abrimos nossa boca para falar, e o que sai? Verdade e amor? Se sim, nós o representamos corretamente, declarando ao mundo em redor que Deus é um Deus de verdade e amor. Se, em vez disso, mentimos com nossas palavras, ensinamos ao mundo em redor que Deus mente.

O Senhor nos diz: “Observe como ajo — com retidão e para o bem dos outros.” Então, nosso agir também deve ser justo e voltado para o benefício dos outros. Se somos egoístas, ensinamos às pessoas que Deus é egoísta.

Em suma, embora as pessoas às vezes se perguntem se as hierarquias humanas resultam da Queda, na verdade, a questão da autoridade vai ao cerne da existência humana. Você e eu fomos criados para governar, e parte desse governo envolve moldar e treinar outros para que eles, no devido tempo, possam governar também. Uma boa autoridade faz crescer os que estão debaixo dela, assim como faz a pessoa em autoridade crescer para se tornar mais parecida com Deus. A boa autoridade cria grupos de pessoas. Não apenas isso, mas toda vez que usamos nossa autoridade corretamente, ensinamos teologia e afirmamos que coisas boas e verdadeiras existem neste universo. Dizemos ao mundo como Deus é e como ele criou um mundo bom, ainda que exista rebelião. Quando governamos como ele governa, ensinamos; quando pervertemos seu governo, também ensinamos. Tanto em um caso quanto no outro, estamos sempre ensinando, pois é isso que significa ser feito à imagem de Deus. A própria estrutura da existência humana serve a esse propósito de ensino teológico.

Tabela 1.1: Quatro propósitos da autoridade

1. Fazer crescer os que estão debaixo dela

2. Fazer crescer os que a exercem

3. Criar grupos

4. Ensinar como Deus é

Conclusão

Espero que todas essas definições e explicações tenham ajudado a elucidar por que a experiência de Ângela de estar sob a autoridade de um pai piedoso, sábio e amoroso provocou nela o desejo de conhecer seu Pai celestial. De modo maravilhoso, seu pai refletia ou representava o próprio amor e governo de Deus na vida de Ângela. Ele serviu como um sinalizador para o Todo-Poderoso.

Não é de surpreender que o pai de Ângela seja alguém devoto à Palavra de Deus. Ângela comentou: “Meu pai é um homem sábio. Ele estuda as Escrituras, e sua boca fala do que transborda de seu coração. Sua sabedoria vem de Deus e da Palavra de Deus.” Nesse sentido, ele é como o rei israelita que consideramos na introdução, a quem Deus ordenou “escrever num livro uma cópia desta lei” e o ler “todos os dias da sua vida” (Dt 17.18-19).

Em geral, a boa autoridade conduz as pessoas a Deus, enquanto a má autoridade pode levá-las a duvidar do Senhor ou até mesmo a desprezá-lo. A boa autoridade gera vida e mais autoridade, enquanto a má autoridade destrói tanto a vida quanto a própria autoridade. Imagino que a maioria das pessoas não tenha um pai tão exemplar quanto o de Ângela. Entretanto, Deus nos deixou, em sua Palavra, imagens de boas autoridades com as quais todos podemos aprender. Antes de abordarmos a má autoridade no próximo capítulo, dedique um último momento para refletir sobre a boa. Como você vê Deus exercendo sua autoridade em Gênesis 1 e 2? Talvez, antes de qualquer outra coisa, seja apropriado parar por um instante e sussurrar uma palavra de louvor. Ele não é maravilhoso?

Este artigo é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Autoridade redimida, de Jonathan Leeman, Editora Fiel (em breve).


[i] Nicholas Wolterstorff, The Mighty and the Almighty: An Essay in Political Theology (Nova York: Cambridge University Press, 2012), p. 48.


Autor: Jonathan Leeman

Jonathan Leeman (PhD, University of Wales) é presidente do 9Marks, um dos pastores na Cheverly Baptist Church, professor em seminários e autor de livros de eclesiologia, entre eles Autoridade (Editora Fiel).

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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