sexta-feira, 29 de março

Caridade e seus frutos: apresentação de Jonas Madureira

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Apresentação à edição em português

Se você se denomina cristão, onde estão suas obras de amor? Você tem se esforçado em ser rico na prática delas? Se este divino e santo princípio está em você, e reina em você, ele não se manifestará em sua vida através das obras de amor? Pense bem: que obras de amor você tem praticado? Você ama a Deus? O que você tem feito por e para ele, para sua glória, para o avanço de seu reino no mundo? E quanto você tem se negado para a promoção dos interesses do Redentor entre os homens? De fato você ama seus semelhantes? O que você tem feito por eles? – Jonathan Edwards

No Brasil, Jonathan Edwards (1703-1758) é bastante conhecido pelo famoso sermão Pecadores nas mãos de um Deus irado, por alguns livros, como A vida de David Brainerd e A verdadeira obra do Espírito, e por um resumo elaborado por James Houston de seu impressionante tratado sobre as “afeições religiosas”, a saber, Uma fé mais forte que as emoções.1

Por mais que essas publicações sirvam como uma boa porta de entrada para a teologia de Edwards, elas não são as únicas nem as melhores. Existem outras possibilidades igualmente interessantes e, do ponto de vista estratégico, talvez até mais relevantes para acessar as ideias do “teólogo do coração”. Acredito que uma dessas portas é Caridade e seus frutos que, graças à Editora Fiel, agora se encontra disponível em português.2

Particularmente, penso que, levando em consideração o contexto e os temas teológicos mais efervescentes e envolventes na América Latina, Caridade e seus frutos não apenas é uma excelente porta de entrada para conhecer Edwards, como também é uma fonte bastante inspiradora para a reflexão sobre a missão e as obras do amor no contexto da igreja brasileira.

Caridade e seus frutos compreende dezesseis sermões de Edwards, proferidos em 1738, na congregação de Northampton. Apesar de esses sermões terem sido publicados postumamente, Kyle Strobel, especialista em Caridade e seus frutos, argumenta que há vários aspectos na redação dos sermões que indicam que o próprio Edwards os teria publicado em vida, se tivesse tido mais tempo.3 No entanto, apenas em 1852, quase cem anos depois da morte de Edwards, os sermões foram publicados pela primeira vez. A edição de 1852 foi estabelecida por Tyron Edwards, tataraneto de Edwards, e foi, até então, a versão standard usada em todas as outras edições de Caridade e seus frutos. Contudo, a edição mais recente encontra-se no volume oito de The work of Jonathan Edwards, edição de Yale (1989), que conta com a magistral introdução e edição de Paul Ramsey.

A finalidade desses sermões é definir “caridade” e aprofundar as implicações dessa definição com base em 1Coríntios 13. Logo no primeiro sermão, Edwards apresenta o que entende por “caridade”. Vejamos.

O que com frequência as pessoas têm em vista por caridade, em sua conversação cotidiana, é aquela disposição de esperar e pensar o máximo dos outros, e adquirir uma boa interpretação de suas palavras e comportamento; e algumas vezes a palavra é usada para uma disposição de se fazer doação aos pobres. Tais ideias, porém, não passam de ramos particulares, ou frutos daquela grande virtude da caridade que é tão enfatizada em todo o Novo Testamento. A palavra significa propriamente amor, ou aquela disposição ou afeição pela qual alguém é amado por outro; e o termo original, que aqui é traduzido por caridade, poderia ter sido traduzido bem melhor por amor, pois essa é nossa palavra para ele. De modo que, no Novo Testamento, por caridade está implícita a mesmíssima coisa que “amor cristão”.4

Como vimos, o primeiro e talvez mais importante movimento argumentativo de Edwards é definir “caridade”, uma atitude, diga-se de passagem, tipicamente filosófica. Como é de se esperar, antes de explicar algum conceito, o filósofo primeiro se preocupa em desfazer os equívocos que podem favorecer uma falsa compreensão. Como um exímio filósofo, Edwards procura, em primeiro lugar, desfazer os equívocos que podem conduzir alguém a entender a “caridade” como mero altruísmo ou como uma simples prática de contribuição aos pobres. Em ambos os equívocos, é apenas necessária uma louvável disposição que pode ser encontrada nas mais diversas pessoas, não importa se elas são ateístas, gnósticas, panteístas, ou seja lá o que forem. Por exemplo, um ateu pode doar todos os seus bens aos pobres, assim como um agnóstico pode ser demasiadamente altruísta com o seu semelhante. Seriam, portanto, esses atos dignos de serem qualificados como obras de “caridade”?

Edwards entende que existe uma louvável disposição da parte de não cristãos que pode ser vista no altruísmo e na compaixão pelos pobres. Todavia, ele faz questão de enfatizar que a disposição da caridade é totalmente outra. A caridade é uma virtude exclusivamente cristã. Trata-se do “amor cristão”. Em suas palavras, “O santo amor que há no coração do cristão não é o mesmo amor dos demais homens.” Enquanto o altruísmo e as doações aos pobres podem ser disposições visíveis e louváveis em qualquer pessoa, a caridade, por outro lado, só pode ser encontrada entre os cristãos genuínos. A regra de ouro é, portanto, a de “que toda virtude salvífica, e que distingue os cristãos genuínos dos demais, está sumariada no amor cristão”.

Seguindo pari passu 1Coríntios 13, Edwards explicita, ao longo dos sermões, o que o texto diz quando afirma que o fato de uma pessoa possuir o que bem quiser e fazer o bem que quiser, isso, sem a caridade, que é o “amor cristão”, nada significará. A implicação lógica do argumento é a de que a caridade é a conditio sine qua non para todas as coisas, i.e., a condição sem a qual tudo nada será se não for tocado pela caridade, seja explícita ou implicitamente. Em suas palavras, “A caridade é a vida e a alma de toda a religião, sem a qual todas as coisas que levam o título de virtudes são vazias e fúteis.” Assim, em vez de reduzirmos a caridade às obras do amor cristão, precisaríamos compreender que a caridade é, antes de tudo, uma “virtude salvífica”. Ou seja, o amor cristão – seja para com Deus, seja para com o homem – é operado no coração por obra do Espírito. Nas palavras de Edwards,

Não há duas obras do Espírito de Deus, uma a infundir um espírito de amor para com Deus, e a outra a infundir um espírito de amor para com os homens; mas, ao produzir uma, o Espírito produz também a outra. Na obra de conversão, o Espírito Santo renova o coração, dando-lhe uma disposição divina (Ef 4.23); assim, é uma e a mesma disposição divina que é operada no coração, a qual se manifesta em amor, seja para com Deus, seja para com o homem.5

Em nosso contexto brasileiro, há uma recorrente discussão, quase sempre calorosa, sobre a relação entre doutrina clássica da salvação e justiça social. Não são poucos aqueles que entendem que a ideia de fazer justiça social está intimamente associada à depreciação da doutrina clássica da salvação. Em parte, há razões sérias e patentes para essa associação, pois há, de fato, quem defenda, com unhas e dentes, que a salvação e a justiça social são a mesma coisa! Entretanto, essa contrapartida não é suficiente para desistirmos do compromisso que devemos manter com as obras do amor, simplesmente por causa do medo de depreciarmos a doutrina clássica da salvação. Edwards, por exemplo, jamais precisou depreciar a doutrina clássica da salvação para advertir seus ouvintes quanto à prática das obras do amor. Pelo contrário, a doutrina da salvação é, para ele, a base da “justiça social” genuinamente cristã. Por outro lado, Edwards tampouco precisou justapor a doutrina da salvação e a justiça social. Como argumenta Timothy Keller, em seu  livro Justiça generosa:

Edwards argumentou que para ministrar aos pobres não precisamos mudar a clássica doutrina bíblica da salvação. Ao contrário, tal ministério jorra diretamente do ensino evangélico histórico. Para Edwards, havia um entrelaçamento indissolúvel entre envolvimento com os pobres e doutrina bíblica clássica. Essa correlação é um tanto rara hoje em dia, mas não deveria ser. Escrevo este livro para as pessoas que ainda não enxergaram o que Edwards enxergou, ou seja, que, quando o Espírito nos capacita a entender o que Cristo fez por nós, o resultado é uma vida dedicada a obras de justiça e compaixão pelos pobres.6

Em outras palavras, não precisamos abandonar a doutrina clássica da salvação para despertarmos nossas igrejas para as obras do amor. Pelo contrário, como o próprio Edwards afirma,

O amor nos disporá a andarmos humildemente entre os homens; nos inclinará a nutrirmos pensamentos elevados acerca dos outros e a pensarmos que eles são melhores que nós. Ele disporá os homens a se honrarem reciprocamente, pois todos são naturalmente inclinados a pensar de modo sublime sobre aqueles a quem amam e a render-lhes honra; de modo que, pelo amor, se cumprem aqueles preceitos: “Tratai a todos com honra, amai aos irmãos” (1Pe 2.17); “Nada façais por partidarismo, ou vanglória, mas por humildade, considerando cada um os outros superiores a si mesmo” (Fp 2.3).7

O amor disporá os homens a todos os atos de misericórdia para com seus semelhantes, quando estiverem enfrentando alguma aflição ou calamidade, pois somos naturalmente dispostos à piedade para com os que amamos, quando são afligidos. Ele disporá os homens a fazer doação aos pobres, a carregar as cargas alheias e a chorar com os que choram, tanto quanto a alegrar-se com os que se alegram. Ele disporá os homens aos deveres que devem uns para com os outros em seus diversos lugares e relações. Ele disporá um povo a todos os deveres para com seus governantes e a dar-lhes toda aquela honra e submissão que são parte de seu dever para com eles. E disporá os governantes a liderar o povo sobre o qual são postos, com justiça, seriedade e fidelidade, buscando seu bem, e não por algum capricho pessoal. Ele disporá um povo a todo dever legítimo para com seus pastores, a atentar bem para seus conselhos e instruções, e a submeter-se a eles na casa de Deus, a sustentá-los com simpatia e a orar por eles, como aqueles por cujas almas eles velam; e disporá os ministros a buscarem fiel e incessante- mente o bem das almas de seu povo, a velar por eles como quem tem de prestar conta. O amor disporá ao bom relacionamento entre superiores e inferiores: disporá os filhos a honrarem seus pais, os empregados a serem obedientes a seus patrões, não por- que estejam olhando, mas com um coração singelo e sincero; e disporá os patrões ao exercício da brandura e bondade para com seus empregados.8

A caridade é, portanto, uma “virtude salvífica” que inevitavelmente gera uma disposição que, se bem desenvolvida no coração, sozinha será suficiente para produzir as obras do amor. Assim, toda a disposição correta para com Deus e para com o homem se acha, nas palavras de Edwards, “sumariada” na caridade e provém dela como o “fruto de uma árvore”. Daí o título Caridade e seus frutos para o agrupamento desses sermões, dedicados a demonstrar, a partir de 1Coríntios 13, que a caridade é o “amor cristão”, uma virtude salvífica, e que suas implicações ou frutos são as obras do amor.

Meu desejo é que estes sermões, entregues no século 18, possam tocar mais uma vez os corações do século 21. Que os ensinos de Edwards nos ajudem a sermos cristãos que, em todo o tempo, se mantêm vigilantes contra tudo o que tende a subverter, corromper e enfraquecer a caridade. Se, como diz Edwards, “a caridade é a suma do cristianismo”, então, tudo o que subverte a caridade deve ser combatido pelos cristãos, pois “um cristão invejoso, malicioso, frio e obstinado é o maior dos absurdos e é uma contradição. É como se alguém falasse de uma iluminação escura ou de uma verdade falsa!”.9

Aures caritas aperit!10

São Paulo, SP
05 de Maio de 2015

Notas:

1 – Jonathan Edwards, Pecadores nas mãos de um Deus irado, São Paulo: PES, 1993; A vida de David Brainerd, São José dos Campos: Editora Fiel, 2005; A verdadeira obra do Espírito, São Paulo: Vida Nova, 2010; Uma fé mais forte que as emoções, Brasília: Editora Palavra, 2008.

2 – Como bem observa Kyle Strobel, “Caridade e seus frutos é uma das melhores portas de entrada para a teologia de Edwards. Enquanto obras como Afeições religiosas e o temível sermão Pecadores nas mãos de um Deus irado têm definido Edwards, Caridade e seus frutos é uma verdadeira obra de tapeçaria tramada em torno das várias percepções espirituais, teológicas e exegéticas de Edwards, o que possibilita aos leitores um quadro muito mais vasto do seu pensamento.” Kyle Strobel (editor), “Introduction”, in: Jonathan Edwards, Charity and its fruits: living in the light of God’s love, Wheaton, Illinois: Crossway, 2012, p. 14.

3 – Kyle Strobel, “Introduction”, p. 15.

4 – p. 22.

5 – P. 26.

6 – Timothy Keller, Justiça generosa: a graça de Deus e a justiça social (Edições Vida Nova, São Paulo, SP: 2013) p. 14.

7 – P. 29.

8 – P. 29-30.

9 – P. 45.

10 – “A caridade abre os ouvidos.” Agostinho de Hipona, Confissões, X.3.3.


Autor: Jonas Madureira

Jonas Madureira(PhD) é pastor da Igreja Batista da Palavra em São Paulo e Editor Chefe da Edições Vida Nova. É bacharel em Teologia pelo Betel brasileiro e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; bacharel e mestre em Filosofia pela PUC-SP e doutor em Filosofia pela USP e pela Universidade de Colônia, na Alemanha. É professor de Teologia no Seminário Martin Bucer e de Filosofia na Universidade Mackenzie; é autor de Inteligência Humilhada, publicado por Edições Vida Nova, e de O Custo do Discipulado, publicado pela Editora Fiel.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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