1 Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte, e, como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos; 2 e ele passou a ensiná-los… 28Quando Jesus acabou de proferir estas palavras, estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina; 29porque ele as ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas.
Mateus 5.1-2; Mateus 7.28-29
O Sermão do Monte é o mais belo dos sermões que o mundo já viu, justamente porque não foi pregado por um mero homem, mas por Jesus de Nazaré, o Deus encarnado. Em contrapartida, ele é, de todos os sermões, o mais confrontador. Em geral, quando o lemos, focamos apenas nos trechos famosos, como o das bem-aventuranças (Mt 5.3-12), o do sal da terra e a luz do mundo (5.13-16), o da exortação para não sermos ansiosos e buscarmos o Reino de Deus em primeiro lugar (6.25-34), o da correção de Jesus de algumas interpretações da Lei (5.17-48) e assim por diante. Lembramos de tudo, mas, por vezes, nos esquecemos do contexto que abre e fecha a narrativa desse sermão. É sobre os primeiros e últimos versículos que abrem e fecham essa passagem das Escrituras que meditaremos.
O lugar onde Jesus pregou esse sermão é chamado de “Monte das Bem-Aventuranças”. Trata-se de uma colina ao noroeste do Mar da Galileia com vista para Cafarnaum. Uma ravina modela a colina ao ponto de torná-la um anfiteatro natural. Ou seja, além da bela vista, o lugar é dotado de uma das características de que o pregador mais precisa para se fazer ouvir: acústica.
Círculos ao redor de Jesus
Hoje, esse mesmo lugar está repleto de jardins floridos. Mas o que esse lugar nos mostra além de sua beleza? Ele nos conta uma belíssima história. Conforme as palavras que introduzem o primeiro grande discurso de Jesus em Mateus, embora as multidões estejam presentes, o sermão não foi entregue a elas, mas sim àqueles que saíram das multidões e se aproximaram de Jesus para ouvi-lo, isto é, os seus discípulos. Por si só, esse gesto já nos ensina algo precioso: as multidões só têm a oportunidade de ouvir os ensinos de Cristo quando Cristo se dirige aos seus discípulos para ensiná-los. Portanto, o Sermão do Monte não foi entregue às multidões, mas aos seus seguidores mais próximos. É verdade que as multidões seguem Jesus, mas não de maneira comprometida — por vezes, acompanham-no até mesmo por interesse (de pão, peixe, curas, para citar alguns exemplos).
De fato, as multidões perfazem um círculo de seguidores menos comprometidos, preferindo o anonimato e a ausência de prestação de contas. Trata-se de um círculo no qual a individualidade se perde na coletividade. Contudo, para além do grande círculo das multidões, existem mais outros dois círculos de seguidores de Jesus: o dos discípulos que realmente o seguem e o dos discípulos que o seguem de modo ainda mais próximo. Considero este último como o círculo dos Doze, dentro do qual há também um círculo povoado apenas pelos três discípulos mais próximos: Pedro, Tiago e João. Assim, das multidões até os discípulos mais próximos de Jesus, temos uma ideia de distanciamento e aproximação.
No círculo das multidões, não há o compromisso que há entre aqueles que estão próximos de Cristo. Em outras palavras, quanto mais perto você está de Jesus, mais perto você estará de ouvir o que ele tem a dizer. Isso equivale a dizer que, quanto mais próximo o discípulo está de Cristo, mais comprometido com o discurso de Cristo estará. Tal comprometimento é transformador, visto que, quanto mais perto estivermos de Jesus, mais parecidos com ele nos tornaremos. Saímos do esconderijo descompromissado das multidões sem rosto para termos cada vez mais o nosso rosto de Adão remodelado pelo rosto de Jesus.
O círculo mais amplo e menos comprometido
Contudo, mesmo distante de Jesus, a multidão ainda é beneficiada pelas palavras dele. Mateus narra a reação das multidões após o término do Sermão do Monte com as seguintes palavras (já citadas acima):
28Quando Jesus acabou de proferir estas palavras, estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina; 29porque ele as ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas. (Mt 7.28-29)
Jesus fala aos discípulos, mas é a multidão que fica maravilhada. Hoje, há muitas pessoas, até mesmo evangélicas, que ficam maravilhadas com os ensinamentos de Jesus, admiradas com o direcionamento para a vida que a Palavra de Deus oferece. No entanto, a admiração, por si só, não nos compromete e, portanto, não é o bastante. Encantar-se com a beleza e coesão da Palavra de Deus é natural para qualquer leitor sincero, mas isso não é suficiente, já que não envolve um engajamento pleno do coração. A multidão conseguia até mesmo distinguir Jesus dos demais mestres, reconhecendo que ele ensinava “como quem tem autoridade e não como os escribas”. Esse deslumbramento, no entanto, era meramente superficial, pois procedia de um coração que admirava a forma mais do que o conteúdo, a estética mais do que a ética. Pessoas nessa posição fazem parte de uma multidão tão numerosa quanto descomprometida. Os discípulos reais de Cristo, porém, não amam apenas a maneira como ele fala, mas também o conteúdo de sua fala, incluindo os seus discursos mais duros.
Dois tipos de casas, dois tipos de discípulos
O Sermão do Monte começa com a alegria das bem-aventuranças, mas termina com uma séria advertência:
²⁴Todo aquele, pois, que ouve estas minhas palavras e as pratica será comparado a um homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha; ²⁵e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, que não caiu, porque fora edificada sobre a rocha.²⁶E todo aquele que ouve estas minhas palavras e não as pratica será comparado a um homem insensato que edificou a sua casa sobre a areia; ²⁷e caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram com ímpeto contra aquela casa, e ela desabou, sendo grande a sua ruína. (Mt 7.24-27)
Jesus coloca uma espada entre as multidões e os discípulos, entre os tolos e os sábios, entre os que edificam suas casas na areia e aqueles que cons troem sobre a rocha. Ele começa o seu discurso chamando para perto aqueles que querem ouvir e obedecer às suas palavras. Ninguém obedecerá a Cristo se construir a casa sobre a areia, porque construir dessa forma é construir com o tijolo das aparências e com a argamassa das palavras bonitas, porém vazias. O problema é que a casa erguida sobre a areia só aguenta até a primeira tempestade. Ora, no Reino de Deus não é assim. Nele, as casas se constroem sobre um firme fundamento. É preciso cavar bem fundo para lançar o alicerce, mas, para tanto, teremos de cavar até desaparecermos. Se ficarmos preocupados em terminar a casa logo apenas para mostrá-la e nos exibir, construiremos sobre a areia.
Jesus encerra o seu discurso mostrando apenas estes dois caminhos: o do compromisso e o do descompromisso. No caminho do compromisso, não veremos a casa pronta — pelo menos, não agora. O que primeiro veremos é um buraco cavado no chão. Uma casa que resiste às tempestades começa assim, bem feia, como um canteiro de obras. Mas, ao final, depois de acabada, ficará bonita e resistente, como a obra que vai da rude cruz à gloriosa ressurreição. Por outro lado, no caminho do descompromisso, teremos, logo de início, uma casa bela. Todavia, sem a feiura da cruz, essa bela casa não resistirá às tempestades e ruirá.
Esse sermão de Jesus é tão poderoso porque coloca uma espada no nosso caminho, uma espada que nos impede de continuarmos em cima do muro. Ou permanecemos entre as multidões, ou nos tornamos discípulos. Não há uma terceira opção. Se permanecermos nas multidões, correremos o risco de engrossar o seu coro: “Crucifica-o, crucifica-o!”. No entanto, se nos tornarmos discípulos, correremos o risco de ouvir as multidões, completamente enfurecidas, pedindo que nos crucifiquem. Não tenha medo da cruz. Os discípulos de Jesus estão tão próximos dele que com ele já foram crucificados (Gl 2.20). E, porque estão tão perto dele, também com ele ressuscitarão.
O artigo acima é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Meditações na Terra Santa, de Franklin Ferreira e Jonas Madureira, em breve disponível pela Editora Fiel.
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