Inerrância não é um termo popular no contexto dos estudos bíblicos atuais. Para muitos, a inerrância é vista como uma invenção antiintelectual, motivada pelo receio dos fundamentalistas americanos dos séculos dezenove e vinte que estavam tentando proteger a autoridade da Bíblia da crescente onda do racionalismo iluminista. A.E. Harvey, em seu livro recente, Is Scripture Still Holy? [A Escritura Continua Sagrada?], capta muito bem o sentimento acadêmico moderno: “A inerrância… é tanto teológica quanto filosoficamente indefensável e justamente rejeitada pela voz majoritária de uma geração que, em relação a essa questão, realmente ‘amadureceu”.
Infelizmente, esses tipos de críticas são muito comuns. A inerrância é retratada como obsoleta, academicamente ingênua, intelectualmente desonesta, e (talvez de modo mais surpreendente) até mesmo não bíblica. Em meio a tal contexto, cada vez mais evangélicos estão se afastando da doutrina da inerrância, por medo de que sejam os receptores infelizes de tais rótulos.
Definição de inerrância
Então, o que é a inerrância, a qual provoca tais reações, mesmo de alguns que professam ser evangélicos? Alguém pode pensar que a inerrância deve ser uma das doutrinas mais absurdas já concebidas. Certamente deve ser equivalente à crença em um universo geocêntrico (na verdade, tais comparações foram feitas). Mas, de fato, a doutrina da inerrância é simples e, no âmbito da história da igreja, incontroversa.
De forma simples, a doutrina da inerrância é a crença de que a Bíblia é verdadeira.
Naturalmente, há muito mais do que isso a dizer sobre a definição de inerrância. Inúmeros livros foram escritos explicando, definindo e defendendo essa doutrina, sem mencionar as afirmações e negativas da Declaração de Chicago de 1978 sobre a inerrância bíblica. Mas a essência da inerrância é a crença de que a Bíblia é a Palavra de Deus e de que, quando Deus fala, Ele fala a verdade. Assim, a crença na inerrância é a convicção de que tudo o que a Bíblia afirma é exato, seguro e confiável.
A crença de que a Bíblia é verdadeira dificilmente é uma ideia escandalosa e sem precedentes. Na verdade, a crença na inerrância é bastante inofensiva quando comparada com outra linguagem que os cristãos têm usado com relação à Bíblia. Os cristãos historicamente alegaram que a Bíblia é infalível, uma afirmação ainda mais forte do que a inerrância. Enquanto a inerrância significa simplesmente que a Bíblia é livre do erro, a infalibilidade significa que a Bíblia é incapaz de errar, uma propriedade muito mais precisa. A inerrância não requer infalibilidade, mas a infalibilidade requer inerrância. Em outras palavras, a inerrância flui naturalmente de outras verdades cristãs que já cremos (e que foram cridas ao longo da história da igreja).
Objeções à inerrância
Diante dessas considerações, pode-se perguntar por que há tanto alvoroço a respeito da inerrância. Para responder a essa pergunta, examinemos algumas das principais acusações que têm sido feitas.
1. A inerrância é uma ideia nova (e americana) na história do Cristianismo. Alguns têm insistido que a inerrância é uma invenção do fundamentalismo americano e, portanto, é uma ideia sem precedentes na história do Cristianismo. Tal equívoco pode ser devido à semântica, pois alguns apoiam-se na história da palavra inerrância em si. Porém, o conceito de inerrância, a ideia de que a Bíblia é verdadeira em tudo o que afirma, não é de modo algum uma invenção americana. Essa tem sido a visão comum ao longo da história da igreja. No quinto século, Agostinho afirmou: “Aprendi a honrar somente aqueles livros chamados canônicos, de modo que creio muito firmemente que nenhum autor nesses livros cometeu erro algum ao escrever”.
É claro que os estudiosos são livres para sugerir que usemos uma palavra diferente de inerrância para comunicar essa verdade fundamental sobre a Bíblia (e alguns já o fizeram). Mas devemos lembrar que o termo inerrância não é designado para afirmar tudo sobre a Bíblia; pelo contrário, tem o propósito de comunicar um aspecto particular da autoridade da Bíblia, a saber, que ela não contém afirmações falsas. E, se esse é o propósito, então o termo inerrância parece capturar muito bem essa ideia.
2. A inerrância é muito literalista e carece de sofisticação. Devido às conexões percebidas entre a inerrância e o fundamentalismo, outros têm contestado a ideia com base no fato de que a inerrância carece de nuances e sofisticação. Argumenta-se que crer na inerrância é ignorar os diversos gêneros e modos de comunicação na Bíblia e exigir uma precisão irreal e científica do texto. Em outras palavras, a inerrância é racionalista, exigindo que a Bíblia fale de maneiras que um livro antigo simplesmente não falaria.
Agora, esteja certo de que esses tipos de preocupações são legítimos e, infelizmente, algumas interpretações da inerrância caem em tais erros. No entanto, essa objeção não deve ignorar o fato de que gerações de estudiosos (bem como a Declaração de Chicago) ofereceram nuances, qualificações e explicações significativas sobre exatamente o que constitui (e o que não constitui) um “erro” para documentos antigos. A inerrância, devidamente compreendida, considera questões como gênero, simbolismo, citações inexatas, falta de precisão, variações na ordem cronológica, linguagem observacional e muito mais. Essas considerações nos lembram que a inerrância pertence apenas às próprias alegações da Bíblia, e não às afirmações que poderíamos pensar (ou desejar) que ela está fazendo.
3. A inerrância não é ensinada pela própria Bíblia. Alguns têm sugerido que não existe um argumento exegético para a inerrância, mas apenas um argumento teológico baseado no fato de que Deus é um Deus de verdade e não pode mentir. Quem somos nós (assim diz o argumento) para determinar que tipo de livro Deus poderia ou não poderia inspirar? Mas, novamente, esse argumento prova ser um espantalho.
Em primeiro lugar, não há nada impróprio sobre argumentos teológicos; algumas doutrinas fluem naturalmente de outras doutrinas que já cremos. Por exemplo, muitas das nossas crenças sobre a Trindade não se baseiam em simples textos de prova, mas são reunidas a partir de uma variedade de considerações teológicas (por exemplo, Deus é um, mas Jesus é Deus). Se cremos que a Bíblia é a própria Palavra de Deus, ou seja, que quando a Escritura fala, Deus fala, então segue-se que o conteúdo da Bíblia é verdadeiro. Basta considerar a própria visão de Jesus sobre o Antigo Testamento. Frequentemente Jesus apela às passagens do Antigo Testamento e sempre as reconhece como verdadeiras, nunca as corrigindo, criticando ou apontando inconsistências. De fato, Jesus não apenas se absteve de corrigir as Escrituras, mas também afirmou que as Escrituras “não podem falhar” (João 10.35), e que “a Palavra de Deus é a verdade” (João 17.17). É impensável que Jesus alguma vez tivesse lido uma passagem do Antigo Testamento e declarado: “Bem, esta passagem está realmente errada”.
4. A inerrância é contrária ao fenômeno da Bíblia. É aqui que chegamos ao argumento mais comum (e mais relevante) contra a inerrância, a saber, que é contrário não tanto ao que a Bíblia diz, mas ao que a Bíblia faz. Dito de modo diferente, a maioria dos estudiosos rejeita a inerrância porque acreditam que porções da Bíblia estão simplesmente erradas. Tais alegados erros vêm em vários pacotes diferentes. Alguns erros são apenas a Bíblia discordando de si mesma (por exemplo, uma suposta contradição entre os evangelhos); outros erros envolvem o desacordo da Bíblia com algum outro fato supostamente “bem estabelecido” (por exemplo, alguns estudiosos afirmam que Moisés não é o autor do Pentateuco); ou os autores bíblicos apenas poderiam ter afirmado um detalhe histórico errado (por exemplo, a data do censo de Quirino em Lucas 2.2). Ironicamente, no entanto, tais argumentos contra a inerrância são frequentemente apresentados como argumentos bíblicos; ou seja, são supostamente derivados de como a Bíblia apresenta a si mesma.
Não é necessário dizer que este não é o lugar para resolver todas essas dificuldades da Bíblia. Porém, é importante reconhecer que essas são questões sérias e complexas que não devem ser desprezadas de modo leviano. Por essa razão, os estudiosos evangélicos têm se esforçado diligentemente para demonstrar que existem soluções razoáveis ??e plausíveis para esses problemas. É claro que tais soluções não serão convincentes para todos. Inevitavelmente, os evangélicos são (e serão) acusados ??de ignorar a evidência “clara” em favor de compromissos teológicos a priori. Mas tais acusações erram o alvo. Não há nada impróprio em analisar passagens problemáticas à luz da crença na verdade da Escritura; de fato, é assim que Deus deseja que nos aproximemos de todos os problemas da vida.
Importância da inerrância
Quando se trata da importância da crença na veracidade da Bíblia, é difícil superestimar a questão. Se a Bíblia realmente faz afirmações falsas, no mínimo as suas porções equivocadas não podem ser a voz de nosso Senhor. E se a Bíblia é uma mistura de verdade e erro, como identificamos um e outro? Nosso único recurso é confiar em nossa própria opinião sobre tais assuntos, permitindo-nos editar a Bíblia de acordo com algum outro padrão (seja lá qual for). Por fim, somos deixados não com a Palavra de Deus, mas com a nossa palavra: uma Bíblia da nossa própria criação. Se quisermos proclamar com confiança a mensagem da Bíblia a um mundo necessitado — uma mensagem que muitas vezes é recebida com desprezo e ridículo — só podemos fazê-lo se estivermos convencidos de que essa mensagem é, de fato, verdadeira. Portanto, no final, a inerrância prova ser uma questão prática para cada crente. Todas as complexidades e debates à parte, a inerrância oferece o fundamento do porquê podemos confiar e obedecer a Palavra de Deus: ela é uma rocha segura em que os cristãos podem construir suas casas em meio a um mundo hostil (Mateus 7.25).
Tradução: Camila Rebeca Teixeira
Revisão: André Aloísio Oliveira da Silva
Original: Why It’s Essential