O trecho abaixo foi adaptado com permissão do Livro: À mesa com Jesus, de Sinclair Ferguson, Editora Fiel.
Jesus queria que os seus discípulos compreendessem o significado do que ele viera fazer por eles e que, portanto, estabelecessem conexões entre o que ele havia feito e o que eles deveriam fazer.
A compreensão, a chave para uma vida transformada em Cristo, reside aqui, e não primeiramente em nossas afeições, emoções, instintos ou até mesmo em nossa vontade. Cristo, de modo gradual, transformará todos esses aspectos. Ele, porém, faz essa obra por meio da nossa compreensão do Evangelho. À medida que sua verdade atua na forma como pensamos, surge uma mudança na maneira como sentimos, e isso, então, afeta o que queremos e a forma como nos comportamos. Logo, o Evangelho energiza a maneira como vivemos.
Esse é o princípio enunciado em Romanos 12.1-2. A transformação de nossa vida ocorre por intermédio da renovação de nossa mente, mas essa conhecida influência em nossa compreensão não foi uma invenção do apóstolo Paulo. O Senhor Jesus a enfatiza aqui também.
Assim, o que se espera que nós, seus discípulos, compreendamos? Isto: que, quando nosso Senhor se levantou da ceia, lavou os pés de seus discípulos orgulhosos e, então, retornou ao seu lugar, ele nos apresentou o modelo básico de uma vida cristã.
As pessoas geralmente comparam ser cristão com “viver sob o cumprimento de regras”. Jesus, de fato, ensina algo positivo: “Como quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles” (Lc 6.31). Com efeito, devemos amar nossos irmãos como a nós mesmos. Entenda, Jesus não está aqui dando uma palestra sobre ética, tampouco alguns conselhos morais que não estejam relacionados a ele. O foco aqui é Cristo, e a autoridade para ser seguida é encontrada somente nele.
No cenáculo, vemos uma conexão: porque os discípulos têm “parte” com o seu Salvador, ele se torna o “duplo remédio” para a “culpa e poder” do pecado (1). Como resultado, eles não apenas devem fazer aos outros somente o que gostariam que lhes fizessem nem o que esperam que se faça por eles. Eles devem fazer aos outros o que Jesus estava disposto a lhes fazer e, assim, tornar-se servos deles por amor a ele!
Portanto, a questão para mim como cristão não é: “Como eu gostaria que as pessoas me tratassem? Então, eu devo tentar fazer o mesmo por elas”. Ao contrário, a questão é: “Como Jesus me tratou? Então, esse é o modelo segundo o qual devo tratar os outros. Com a ajuda de Cristo, mostrarei a mesma graça que ele mostrou a mim!”. Esses momentos no cenáculo marcaram a vida de Simão Pedro. Ele teve, claro, um lugar na primeira fileira. Pode até mesmo ter sido o primeiro discípulo cujos pés Jesus lavou. Por certo, foi o primeiro (e talvez o único) a protestar. Contudo, ao escrever mais tarde para seus irmãos cristãos que se espalharam pelo Império Romano, ele lhes alertou: “No trato de uns com os outros, cingi-vos todos de humildade” (1Pe 5.5).
O verbo grego para “cingir” usado aqui (egkomboomai) reflete a imagem de um escravo amarrando uma toalha em sua cintura, assim como Jesus fez. Nosso chamado, compartilhado com todos os cristãos, é ver como, quando e a quem podemos servir.
Jesus estava dando aos apóstolos um “exemplo” (em grego, hupodeigma) para seguir (Jo 13.15). Pedro também afirma que Jesus nos deixou “um exemplo” (1Pe 2.21), embora use uma palavra diferente (o termo grego hupogrammos). É possível compreender a origem desse termo, uma vez que ele contém uma palavra que se refere a palavra (grammos, do qual palavras como “gramática” são derivadas). A imagem que a palavra hupogrammos representa é de uma criança aprendendo a escrever. A professora escreve uma palavra ou frase, e a criança, então, copia. É como se Pedro dissesse: “Jesus escreveu o manual de vida cristã; portanto, copie. Escreva sua história tendo em vista a maneira como ele escreveu a dele”. Isto é o que o Espírito Santo nos ajuda a fazer: torna-nos mais parecidos com Jesus, produzindo em nós a mesma disposição para servir.
Quando o exemplo de Jesus, assim como se deu com Pedro, estiver fixado em nossas mentes, conforme passarmos a compreender o significado do que ele fez, começaremos a instintivamente seguir o exemplo de Cristo e nos tornar “cópias” de sua vida. Isso é o que significa viver como cristão.
Compreendendo quem é Jesus Cristo
Há uma dimensão profunda para observarmos aqui: a importância de quem é Jesus. O valor do ato do lava-pés reside no fato de que isso foi feito pelo Senhor da glória, o Rei dos céus, o Filho do Deus vivo, o Verbo que estava face a face com Deus.
Quando entendemos quem se humilhou por nós, tudo muda. Caso você responda a ele com fé e amor, o fruto serão profundos instintos de humildade e graça. Se o Senhor da glória fez isso por mim, nada me impedirá de seguir o seu exemplo. Eu aprenderei com o Mestre. Quão orgulhoso eu fui! Se ele, o Rei da glória, lavou os pés sujos dos discípulos, então eu também estarei disposto e pronto a lavar os pés sujos de outros. É isso que um cristão deve fazer.
Um espaço vazio na galeria de arte
Se imaginarmos os eventos que aconteceram no cenáculo como uma série de retratos de Jesus, parece faltar uma pintura. Há um espaço vazio entre o par de retratos “Jesus, o Salvador” e “Jesus, o Exemplo”. Não há retrato algum intitulado “Jesus se ajoelha perante o seu traidor”. Talvez João não tenha suportado pintá-lo.
É possível adivinhar a cena que falta, embora João nada diga a respeito dela. Talvez ele tenha tido a impressão de que uma coisa era pintar o Senhor Jesus se ajoelhando perante Pedro, sabendo muito bem que este o negaria, mas outra muito diferente era retratar “Jesus lava os pés de Judas”. Como ele poderia fazer isso? Portanto, tudo que ele faz é descrever o ato do lava-pés de forma que ficasse claro que, antes de Judas sair para planejar sua traição, Jesus se ajoelhou perante ele e lhe lavou os pés.
Jesus tinha explicado aos seus discípulos a importância das palavras do Salmo 41.9: “[Aquele] que comia do meu pão, levantou contra mim o calcanhar”. Um deles o trairia. Contudo, saber que a traição contra o Mestre era o cumprimento de uma profecia certamente ajudaria a acalmá-los mais tarde (Jo 13.19). Os propósitos soberanos do Pai não estavam sendo impedidos por Satanás. No caso, Jesus sabia, havia muito tempo, que isso tudo era parte do plano celestial.
Porém, Jesus não apenas sabia que seria traído, como também conhecia a identidade de seu traidor — Judas Iscariotes. E foi com pleno conhecimento dessa situação que Jesus se ajoelhou e removeu a poeira de seus pés.
Essa imagem está faltando na galeria joanina de retratos em forma de palavras. Ela está implícita em João 13.30 (Judas deixou o cenáculo depois do lava-pés), mas não é descrita. Ainda assim, ela acentua as desafiadoras palavras de Jesus: “Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também” (Jo 13.15). Não há exceções para os pés que somos chamados a lavar. Todo instinto natural que clama: “Mas não os dele” ou “não os dela” é sufocado pelo amor de Cristo por nós e em nós, assim como por nosso desejo de imitá-lo. Isso fica implícito na missão em que Cristo envia os apóstolos. Além disso, conforme ele explica, se as pessoas, em nome dele, receberem os seus ministros, elas também o receberão (Jo 13.20).
Por mais desafiador que isso seja, não há nada complexo ou complicado aqui (nós é que somos os complexos e complicados!). O que Jesus fez é descrito em simples frases. Ele se levantou da ceia, retirou sua vestimenta superior, cingiu-se com uma toalha de servo, encheu uma bacia com água, ajoelhou-se, lavou os pés sujos dos discípulos, vestiu sua roupa novamente e retornou ao seu lugar à mesa. Imitá-lo não algo de outro mundo, mas uma simples questão de humildade e amor, bem como de seguir o seu exemplo.
E o que nos habilita a fazer isso? Primeiro, como Jesus nos alerta, precisamos compreender o significado de quem ele é e o que fez por nós. Nós também podemos tê-lo negado e, talvez, no passado, até mesmo o tenhamos traído. Se Jesus agiu como servo por nós, não deveríamos fazer o mesmo pelos outros?
Entretanto, há outra lição para nós aqui. Precisamos compreender quem Jesus é e o que ele fez por nós para compreendermos quem nós somos agora.
(1) Esse trecho faz alusão às seguintes palavras do hino Rock of Ages, Cleft for Me, escrito por A. M. Toplady (1740-1778): “Que a água e o sangue […] / Sejam do pecado a cura dupla, / Salvem-me de sua culpa e poder”.