O trecho abaixo foi adaptado com permissão da Bíblia de Estudo da Fé Reformada com Concordância, Editora Fiel.
Nos primeiros séculos de vida da igreja, livros eram como diamantes: joias raras e caras. Todas as coisas relacionadas ao processo de escrita, desde a produção do papel, a fabricação da tinta até à escrita, envolviam grande habilidade e uma enorme quantidade de tempo; e cada passo era completado à mão. O zelo da igreja para copiar e ler a Palavra de Deus levou realmente à popularização de um novo avanço tecnológico: o livro. De fato, a palavra grega que significa livro é biblion, da qual obtemos a nossa palavra Bíblia. Antes dos livros modernos, havia os rolos, que eram enormes, e depois o papiro, que, embora fosse o material padrão para escrever cartas, também se comprovou trabalhoso, porque era difícil manusear as muitas folhas soltas exigidas para formar livros inteiros do Novo Testamento. Por volta do século II A.D., surgiu o códice — o livro — que prendia, em um lado, folhas ou páginas separadas.
Perto do final dos anos 300, o grego, o idioma do Novo Testamento, havia dado lugar ao latim como a língua comum no Ocidente. E, ainda que já existissem algumas traduções parciais em latim, foi somente em 384 que Jerônimo completou a primeira tradução de toda a Bíblia para o latim. Sua primeira edição oferecia uma tradução da versão grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, e do grego do Novo Testamento para o latim. Em 405, Jerônimo produziu outra edição, oferecendo, desta vez, uma tradução do próprio Antigo Testamento hebraico para o latim. A versão de Jerônimo chamava-se Vulgata, significando que era uma versão na linguagem comum ou vulgar do povo. Embora a versão latina de Jerônimo tenha sido precedida por traduções para outros idiomas, o predomínio do latim tornou o texto de Jerônimo a versão da Bíblia usada mais amplamente até ao tempo da Reforma. Entretanto, à medida que os séculos passavam, um número cada vez menor de pessoas conseguia ler ou falar em latim. O latim tornou-se, por fim, o idioma de eruditos e de oficiais da igreja, uma minoria consideravelmente exígua durante a Idade Média. Esta barreira de idioma, associada ao custo total e à dificuldade de produção de livros, resultou no fato trágico de que poucas pessoas tinham acesso à Palavra de Deus.
Somente um pequeno número de pessoas tentou nadar contra esta correnteza no início da história dos anglo-saxões. O primeiro exemplo é do poeta-músico Caedmon, que morreu por volta de 680. Ele versificou em inglês antigo algumas partes das Escrituras, incluindo os Salmos. Outra tentativa veio da parte de Beda. Além de escrever uma história da igreja na Inglaterra, ele também traduziu o livro de João para o inglês antigo por volta de 730. Nos anos 900, acredita-se que o rei Alfred foi o tradutor de uma versão dos primeiros cinquenta salmos. Também nos anos 900, um glossário interlinear do inglês antigo foi acrescentado aos evangelhos de Lindisfarne por um sacerdote chamado Aldred. Finalmente, os evangelhos de Wessex, terminados por volta de 990, ofereciam uma tradução completa dos quatro evangelhos em inglês antigo.
No entanto, estes esforços foram realizações isoladas. Por causa do analfabetismo e da barreira do idioma latino, a grande maioria do povo de Deus continuava sem acesso direto à Palavra de Deus. Ao mesmo tempo, a própria igreja se afastava do porto seguro da Escritura.
Em 1229, no Concílio de Toulouse, a Igreja Católica Romana proibiu as Bíblias, em parte ou no todo, nas línguas vernáculas. Embora seu alvo fosse primariamente os albigenses, um grupo herege da França que promovia essencialmente o gnosticismo, esta proibição revelou o desejo da hierarquia da igreja de impedir que os leigos tivessem acesso direto às Escrituras. A proibição teve efeitos de alcance amplo. Na geração anterior, Pedro Waldo, de Lyon, na França, ou comissionou uma tradução ou traduziu ele mesmo o Novo Testamento do latim para o francês (c. 1180). O Concílio de Toulouse tornou essa tradução ilegal, e possuir uma cópia dessa tradução ou distribuí-la se tornou uma ofensa capital.
O decreto de 1229 afetaria especialmente os labores de John Wycliffe, que é conhecido na história da igreja pela Bíblia que leva o seu nome. A Bíblia de Wycliffe era uma tradução completa da Vulgata Latina para o inglês (1382-95), copiada e produzida totalmente à mão. Esta Bíblia, que pode ter sido, na maior parte, o trabalho de colegas e alunos de Wycliffe, surgiu como um resultado direto do livro The Truth of Holy Scripture (1378), de Wycliffe. Neste livro, ele argumenta que somente a Bíblia é a autoridade suprema na igreja, acima e contra os concílios e o papa. Wycliffe enfatizava que todos os cristãos, não somente sacerdotes e eruditos, devem ler a Bíblia sozinhos.
O prólogo da Bíblia de Wycliffe oferece a filosofia de tradução que estava por trás desta obra monumental:
Deve-se saber que a melhor maneira de traduzir do latim para o inglês é traduzir de acordo com o significado e não meramente de acordo com as palavras, para que o significado seja tão claro — ou até mais claro — em inglês quanto em latim, embora não se afastando da tradução literal mais do que é necessário. As palavras não precisam ser seguidas rigorosamente na tradução, mas, por todos os meios, devemos deixar o significado totalmente claro, porque as palavras de uma tradução devem servir para comunicar o significado tencionado, pois, do contrário, as palavras são inúteis ou falsas.
Por sua teologia e suas publicações, Wycllife foi excluído de seu cargo na Universidade de Oxford e morreu de causas naturais em 1384. Mas a Igreja Católica Romana se sentiu compelida a dar-lhe um tratamento de “herege”; e em 1428 os ossos de Wycllife foram desenterrados e totalmente queimados. William Wordsworth expressou poeticamente o que aconteceu com as cinzas de Wycliffe:
Ribeirinho, quando tu estas cinzas levares
Para o Avon, e o Avon, para a correnteza
Do Severn, e o Severn, aos estreitos mares,
E chegarem ao grande oceano, ato de crueza,
Produzam um símbolo para amigos e inimigos
De como o ensino do intrépido professor, santificado
Pela verdade, se propagará, disperso no mundo todo.
A verdade se propagou realmente. No século seguinte, três desenvolvimentos subsequentes mudariam para sempre a história da Bíblia na história da igreja, especialmente a história de Bíblia em inglês: a prensa móvel, a publicação do Novo Testamento Grego e Martinho Lutero e a Reforma protestante. A prensa móvel resultou numa explosão de livros. Esta nova tecnologia facilitou a disseminação das ideias dos reformadores e, tão crucial à Reforma, a propagação da Palavra de Deus. As estimativas variam, porém havia mais de mil prensas móveis na Europa e na Inglaterra, prontas para publicar os escritos dos reformadores e a Bíblia. A crescente disponibilidade do texto grego capacitou eruditos a trabalharem com o texto original e não com uma tradução em latim. Este desenvolvimento foi crucial para a erudição bíblica, mas também para a obra de traduções confiáveis. Por fim, Lutero e a Reforma fizeram a atenção da igreja retornar àquilo ao que lhe era próprio: a Palavra de Deus. A doutrina reformada de Sola Scriptura trouxe a Bíblia de volta ao centro da vida da igreja. Isso implicou necessariamente uma demanda por Bíblias, especialmente Bíblias nas línguas vernáculas.
Por: Stephen J. Nichols e Tiago J. Santos