Ao longo da história da Igreja cristã, a questão do lugar de Israel nos propósitos redentivos de Deus tem sido de especial importância. Na história moderna, com a emergência do dispensacionalismo como uma perspectiva escatológica popular e o estabelecimento do estado de Israel em 1948, a questão teológica acerca da intenção de Deus para Israel se tornou ainda mais premente. Depois do holocausto, com o esforço nazista para exterminar os judeus por toda a Europa durante a Segunda Guerra Mundial, o problema da relação entre a e Israel foi novamente afetado pela triste realidade do antissemitismo, que muitos alegam pertencer a qualquer teologia cristã que insista em um único caminho de salvação pela fé em Jesus Cristo, seja para judeus ou gentios.
A fim de orientar a discussão dessa crucial controvérsia, precisamos começar com um entendimento claro das principais visões deste assunto que estão atualmente representadas na igreja. Essas visões ilustram não apenas a importância da questão, mas também a ampla diversidade de posições.
Dispensacionalismo pré-milenarista: o propósito especial de Deus para Israel
Embora o dispensacionalismo pré-milenarista seja uma perspectiva relativamente nova na história da teologia cristã, a sua posição acerca do propósito especial de Deus para Israel tem moldado, até mesmo dominado, os debates recentes entre os cristãos evangélicos acerca do relacionamento entre a Igreja e Israel.
No dispensacionalismo clássico, Deus tem dois povos distintos: um povo terreno, Israel, e um povo celestial, a Igreja. Segundo o dispensacionalismo, Deus administra o curso da história da redenção por meio de sete dispensações (ou economias da redenção) sucessivas. Durante cada dispensação, Deus prova os seres humanos por uma revelação distinta da sua vontade. Entre essas sete dispensações, as três mais importantes são a dispensação da lei, a dispensação do evangelho e a dispensação do reino. Embora não seja possível, num pequeno ensaio como este, descrever todas as diferenças dessas três dispensações, o que importa é a insistência do dispensacionalismo de que Deus tem um propósito separado e um modo distinto de lidar com o seu povo terreno, Israel. Durante a presente era, a dispensação da Igreja, Deus “suspendeu” seus propósitos especiais para Israel e voltou sua atenção, por assim dizer, para o ajuntamento dos povos gentios mediante a proclamação do evangelho de Jesus Cristo para todas as nações. Contudo, quando Cristo retornar a qualquer momento para “arrebatar” a Igreja antes de um período de sete anos de grande tribulação, ele retomará o programa especial de Deus para Israel. Esse período de tribulação será um prelúdio à inauguração da futura dispensação do reino de mil anos sobre a terra. Para o dispensacionalismo, o milênio marca o período durante o qual as promessas de Deus a Israel, seu povo terreno, terão um cumprimento distinto e literal. Apenas ao final da dispensação do reino milenar é que Cristo finalmente vencerá todos os seus inimigos e introduzirá o estado final.
Embora o dispensacionalismo reconheça que todos, judeus ou gentios, são salvos pela fé no único Mediador, Jesus Cristo, ele mantém uma clara e permanente distinção entre Israel e a Igreja nos propósitos de Deus. As promessas do Antigo Testamento não se cumprem mediante o ajuntamento da Igreja de Jesus Cristo de entre todos os povos da terra. Essas promessas são dadas a um povo terreno e etnicamente distinto, Israel, e serão cumpridas de modo literal apenas durante a dispensação do reino que segue a presente dispensação do evangelho.
A visão reformada tradicional: um único povo de Deus
Ao contrário da rígida distinção do dispensacionalismo entre os dois povos de Deus, Israel e a Igreja, a teologia reformada histórica insiste na unidade do programa redentivo de Deus ao longo da história. Quando Adão, o cabeça pactual e representante da raça humana, caiu no pecado, todos os seres humanos enquanto sua posteridade se sujeitaram à condenação e à morte (Romanos 5.12-21). Em virtude do pecado de Adão e de suas implicações para toda a raça humana, todos se sujeitaram à maldição da lei e se tornaram herdeiros de uma natureza pecaminosa e corrupta.
Segundo a interpretação reformada tradicional da Escritura, Deus introduziu o pacto da graça, após a queda, a fim de restaurar o seu povo eleito à comunhão e intimidade consigo mesmo. Embora o pacto da graça seja administrado de maneiras diversas ao longo da história da redenção, ela permanece uma em substância, desde o tempo de sua ratificação formal com Abraão até a vinda de Cristo na plenitude do tempo. Em todas as várias administrações do pacto da graça, Deus redime o seu povo mediante a fé em Jesus Cristo, o único Mediador do pacto da graça, por meio de quem os crentes recebem o dom da vida eterna e a comunhão restaurada com o Deus vivo [vide Louis Berkhof, Teologia sistemática (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2013].
No entendimento reformado da história da redenção, portanto, não há nenhuma separação radical entre Israel e a Igreja. A promessa que Deus fez a Abraão na ratificação formal do pacto da graça (Gênesis 12, 15, 17), a saber, que ele seria o pai de muitas nações e quem em seu “descendente” todas as famílias da terra seriam abençoadas, encontra seu cumprimento em Jesus Cristo. O descendente prometido a Abraão no pacto da graça é Jesus Cristo, o verdadeiro Israel, e todos aqueles que mediante a fé são unidos a ele e, assim, são feitos herdeiros das promessas do pacto (Gálatas 3.16, 29). Na visão reformada, o evangelho de Jesus Cristo cumpre diretamente as promessas do pacto da graça para todos os crentes, sejam judeus ou gentios. Israel e a Igreja não são dois povos distintos; em vez disso, a Igreja é o verdadeiro Israel de Deus, “raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (1 Pedro 2.9).
A teologia dos “dois pactos”
Na história recente da reflexão sobre Israel e a Igreja, surgiu uma posição nova e mais radical. Frequentemente ligada ao nome de Franz Rosenzweig, o autor judeu de uma obra escrita logo após a Primeira Guerra Mundial e intitulada The Star of Redemption,[1] a teologia dos dois pactos ensina que há dois pactos separados, um entre Deus e Israel e outro entre Deus e a Igreja de Jesus Cristo. Em vez de haver um único caminho de redenção mediante a fé em Jesus Cristo para crentes judeus e gentios indistintamente, o relacionamento pactual original de Deus com o seu povo ancestral, Israel, permanece separado do seu novo relacionamento pactual com as nações gentias por meio do Senhor Jesus Cristo.
No cenário do segundo pós-guerra, com sua preocupação quanto ao legado de antissemitismo na Igreja cristã, a posição da teologia dos dois pactos se tornou cada vez mais popular entre muitas importantes igrejas protestantes. Mesmo dentro da Igreja Católica Romana, alguns teólogos apelaram aos pronunciamentos do Concílio Vaticano II e à encíclica Redemptoris Missio do Papa João Paulo II (1991), os quais defendem o diálogo entre cristãos e judeus, a fim de se oporem aos contínuos esforços de evangelização dos judeus. Na perspectiva dos dois pactos, a confissão cristã acerca da pessoa e obra de Cristo como o único Mediador ou Redentor permanece verdadeira dentro da moldura do pacto de Deus com a Igreja. Contudo, uma vez que o pacto de Deus com Israel é um pacto separado, que não se cumpre na vinda de Jesus Cristo na plenitude do tempo, os cristãos não podem impor a Israel os termos do pacto de Deus com a Igreja.
Teologia da substituição radical
A última posição na controvérsia sobre Israel e a Igreja que precisa ser mencionada é a que podemos denominar “teologia da substituição radical”. Embora os dispensacionalistas frequentemente insistam que a afirmação reformada tradicional de um único povo de Deus, constituído de judeus e gentios que creem em Cristo, seja uma forma de “teologia da substituição”, a visão reformada não considera que o evangelho “substitui” a antiga economia pactual com Israel, antes, que a “cumpre”. A teologia da substituição radical é o ensino de que, porquanto muitos dos judeus não reconheceram Jesus Cristo como o Messias prometido, Deus substituiu Israel pela Igreja gentílica. O evangelho de Jesus Cristo chama todas as nações e povos à fé e ao arrependimento, mas não deixa nenhum espaço para qualquer ênfase particular sobre o propósito redentivo de Deus para o seu povo ancestral, Israel. Uma vez que a Igreja é o verdadeiro Israel, o espiritual, qualquer ênfase peculiar sobre a questão do intento salvador de Deus para Israel não é mais permitida.
A teologia da substituição radical representa no espectro o extremo oposto da posição dos dois pactos. Em vez de falar de um distinto relacionamento pactual entre Deus e Israel que continua mesmo depois da vinda de Cristo e da proclamação do evangelho às nações, a teologia da substituição sustenta que o programa e o interesse de Deus em Israel cessaram.
Conclusão
A diversidade entre essas várias posições na questão de Israel e da Igreja testifica a importância da controvérsia. Tem Deus um propósito e um programa redentivo separado para Israel e a Igreja? Ou será que o evangelho de Jesus Cristo cumpre o propósito de Deus de ajuntar um povo de toda tribo, língua e nação, judeus e gentios indistintamente, em uma única família universal? Quando o apóstolo Paulo declara em Romanos 1 que o evangelho é “o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego” (Romanos 1.16), ele declara que há um único caminho de salvação para todos os que creem em Jesus Cristo, Ainda assim, ele ao mesmo tempo afirma que essa salvação não remove nem suplanta o propósito redentivo de Deus para os judeus, mas, em vez disso, o cumpre. O contínuo debate acerca de Israel e da Igreja precisa manter o equilíbrio apostólico, não separando Israel da Igreja nem substituindo Israel pela Igreja.
Tradução: Vinícius Silva Pimentel
Revisão: Vinícius Musselman Pimentel