No prefácio de Canções Divinas Cantadas na Linguagem Simples Para o Uso de Crianças, Isaac Watts afirmou estar diminuindo seu trabalho com poemas infantis a fim de voltar a trabalhar em sua interpretação poética dos Salmos. Ele havia sido encorajado a parafrasear os Salmos por colegas quando ainda adolescente na Academia Newington, e seu irmão Enoch havia muitas vezes encorajado Watts a realizar o projeto. “Há uma grande necessidade de uma pena”, escreveu Enoch, “tão vigorosa e viva quanto a sua, para despertar e reviver a devoção moribunda da época, a qual nada mais pode dar tal assistência quanto a poesia forjada com o propósito de elevar-nos até mesmo acima nós mesmos”.1 Outra carta, esta proveniente de seu amigo de longa data John Hughes, escrita em 6 de novembro de 1697, revela que Watts começou o seu trabalho sobre os Salmos mais de duas décadas antes de publicar Os Salmos de Davi Seguindo a Linguagem do Novo Testamento e Aplicados à Condição e Adoração Cristã (1719). Hughes escreveu: “Dou-lhe o meu agradecimento cordial por sua paráfrase engenhosa, pela qual você tão generosamente resgatou o nobre salmista das mãos destruidoras de Sternhold e Hopkins”.2
É importante notar que o amigo de Watts não denegriu os salmos inspirados em si. Foi a “carnificina” dos versificadores bem intencionados, Thomas Sternhold e John Hopkins, os quais tinham por costume realizar uma metrificação frase por frase dos Salmos ingleses. Como Hughes, Watts também “protestou contra a apatia e crueza de expressão, e a total ausência do Evangelho do Novo Testamento no conteúdo dos Salmos”, escreve Erik Routley, novamente falando não dos Salmos em si, mas de sua manipulação desajeitada em verso inglês. Como poeta, Watts foi particularmente “ofendido pela deselegância dos Salmos de Barton”, mais uma versão inadequada usada em seus primeiros anos. Em meio a tudo isso, Watts começou a perguntar a si mesmo: “Por que não podemos mais cantar de Cristo como Deus? Se Cristo renova todas as coisas, por que nossos louvores permanecem na Antiga Aliança?”3 A partir dessas reflexões, a ideia de um método totalmente novo de interpretar e parafrasear os Salmos em versos começou a se formar na imaginação de Watts.
O princípio regulador
O princípio regulador do culto afirma que nada que não esteja especificamente previsto na Sagrada Escritura deve ser feito no culto. No entanto, muitos na tradição da Reforma estavam divididos quanto a se este princípio proibia o canto de hinos não-inspirados. Desde a Reforma, luteranos haviam cantado hinos de composição humana, juntamente com Salmos no adoração. Embora João Calvino tenha recomendado o cântico dos Salmos em francês, ele nunca proibiu hinos especificamente, e ele mesmo pode ter escrito o hino semelhante a salmo “I Greet Thee, Who My Sure Redeemer Art” [Eu Saúdo a Ti, Meu Verdadeiro Redentor]. De qualquer maneira, ele o incluiu no Saltério de Genebra de 1551, uma forte indicação de que não defendia a salmodia exclusiva.
Calvinistas posteriores, no entanto, torciam o princípio regulador em prol da exclusão de qualquer poesia humana composta para o canto em cultos divinos. Na Grã-Bretanha, a salmodia exclusiva reinou. Infelizmente, porém, muitos dos esforços bem-intencionados de versificar os textos dos Salmos em rima e métrica inglesa passaram longe dos esplendores da poesia original em hebraico.
Davi, o cristão
Watts não pediu desculpas por seu ataque frontal às prevalecentes versificações dos Salmos de Sternhold e Hopkins, bem como a de Nahum Tate e Nicholas Brady, os quais produziram uma coleção de versificações de Salmos em 1696. Não há dúvida de que estas eram muitas vezes difíceis, e muitos delas eram praticamente impossíveis de serem cantadas. Então, Watts tomou emprestada a hermenêutica histórico-redentiva empregada pelos melhores pregadores e desenvolveu a partir dela um método de interpretar e aplicar poeticamente os Salmos para o canto no culto. Sua defesa do método indica que Watts queria que o Antigo Testamento fosse entendido à luz de seu cumprimento em Cristo:
Quando o salmista… fala do perdão do pecado através das misericórdias de Deus, eu adicionei os méritos de um Salvador. Onde ele fala de sacrificar cabras ou bezerros, eu prefiro optar por mencionar o sacrifício de Cristo, o Cordeiro de Deus. Onde ele promete abundância de riqueza, honra e vida longa, eu substituí algumas dessas bênçãos típicas por graça, glória e vida eterna, as quais são trazidas à luz pelo Evangelho, e prometidas no Novo Testamento. E estou plenamente satisfeito, que mais honra seja dada ao nosso bendito Salvador por mencionar o seu nome, a sua graça, suas ações, em sua própria linguagem, de acordo com as revelações que ele agora tornou mais brilhantes, do que voltando às formas judaicas de adoração e à linguagem de tipos e figuras.4
Não fazia sentido para Watts que os novos santos do pacto devessem abster-se de tomar o nome de Jesus, “nosso bendito Salvador”, em seu canto. Ele entendeu que as formas de adoração judaica, os tipos e as sombras do evangelho na antiga aliança, estavam, como Paulo disse, “sendo levado[s] a um fim” (2 Cor. 3:7), que “o que, outrora, foi glorificado, neste respeito, já não resplandece, diante da atual sobre-excelente glória” (v. 10). Watts acreditava que ao cantar apenas as cruas versificações inglesas dos Salmos, um véu permanecia sobre os corações dos adoradores da nova aliança, “que, em Cristo, é removido” (v. 14) .
É importante lembrar que Watts escreveu seus hinos e interpretou os Salmos em poesia ao lado de seus deveres como um pregador do evangelho. Ele sabia que era inconcebível para ele, enquanto pregador, negligenciar apresentar Cristo ao seu rebanho, que aparece como o cumprimento da lei em todas as Escrituras e, portanto, nos Salmos. Para Watts, a interpretação poética histórico-redentiva dos Salmos era a única hermenêutica possível, exatamente como era quando ele estava pregando.
Watts não estava realmente sendo hermeneuticamente inovador aqui, como alguns sugerem. Toda a sua aprendizagem provinha da tradição Calvinista e Reformada, então ele estava apenas tentando incitar uma continuidade entre a pregação Reformada centrada em Cristo e o canto Reformado no culto. O próprio Calvino havia escrito: “Devemos ler as Escrituras com o objetivo expresso de encontrar Cristo nelas. Quem quer que se desvie desse objeto, mesmo que esgote-se ao longo de toda a sua vida na aprendizagem, nunca alcançará o conhecimento da verdade”.5 Quando foi chamado para ser pregador em Londres no púlpito de John Owen, Watts declarou à congregação ter “a mesma forma de pensar que o seu reverendo pastor anterior, Dr. John Owen”,6 que havia escrito sobre a pregação historico-redentiva décadas antes dos Salmos de Watts serem publicados, dizendo: “Mantenha a Jesus Cristo fixo em seus olhos enquanto procede com a leitura cuidadosa das Escrituras, como o seu fim, escopo e substância; tenha a Cristo como a própria substância, medula, alma e escopo de toda a Escritura”.7 Mais tarde, C. H. Spurgeon, que foi subornado quando menino a memorizar muitos dos hinos de Watts, escreveu sobre como ele interpretava as Escrituras: “Eu tomo qualquer que seja o texto em que eu esteja e faço um conexão com a Cruz”.8
Os melhores expositores entendem que a interpretação centrada em Cristo não é uma questão de gosto metodológico que funciona para alguns e não para outros. J. I. Packer escreve: “Cristo é o tema verdadeiro da Escritura: tudo foi escrito para dar testemunho dele. Ele é a totalidade de toda a Bíblia, profetizado, tipificado, prefigurado, exibido, demonstrado, podendo ser encontrado em cada página, em quase todas as linhas, como se as Escrituras fossem os próprios cueiros do menino Jesus”.9 Em seu livro Christ-Centered Preaching [Pregação Cristocêntrica], Bryan Chapell escreve: “O método histórico-redentivo… é uma ferramenta vital e fundamental que os expositores precisam para interpretar com precisão e graça textos em seu contexto completo”.10 Para Watts, nenhum outro método tem a carga do texto do salmo antes dele – Jesus.
Alguns acusam Watts de adulteração da inspiração divina por sua manipulação dos Salmos. No entanto, poucos tinham uma visão tão elevada dos Salmos como Watts, e sem dúvida, se ele tivesse crescido no mundo antigo de fala hebraica, onde a poesia e conteúdo inspirados permaneceram intocados, não diminuídos pela tradução, Watts poderia ter surgido com outro método. Erik Routley comentou sobre o que Watts estava fazendo: Deixe um homem deslumbrar-se e compartilhar o seu deslumbramento com seus companheiros na igreja – assim disse Watts, e de onde ele tirou isso, senão dos próprios Salmos? Onde existe tal visão cósmica, tal deslumbramento tão puro e abnegado como lá? Watts protestou contra a falta de Evangelho cristão nos Salmos, mas ele tomou deles essa qualidade de deslumbrar-se, que fez dele, mesmo em seus momentos menos inspirados, um homem com o toque do poeta.11
Observe como, na paráfrase de Watts do Salmo 136, como um bom expositor em um sermão, ele vira o rosto de seu ouvinte em direção a Cristo:
He sent his Son with pow’r to save
From guilt and darkness and the grave
Wonders of grace to God belong;
Repeat his mercies in your song.12
[Ele enviou seu Filho com poder p’ra salvar
Da culpa e trevas e do sepulcro livrar:
Maravilhas da graça de Deus todas são;
Entoem suas misericórdias numa canção.]
Neste método de interpretar os Salmos poética e teologicamente, Watts pode ter sido ainda suportado por Paulo, que escreveu que devemos fazer tudo, “seja em palavra, seja em ação”, no nome do Senhor Jesus, e ele escreveu isso no contexto imediato de cantar “salmos, e hinos, e cânticos espirituais” (Cl. 3.16-17). Para Watts, o que era verdade para ser pregado no culto da nova aliança era igualmente verdadeiro para cantar. Seu quase contemporâneo, Blaise Pascal, articulou a hermenêutica histórico-redentiva dos reformadores e seus descendentes: “Sem a Escritura, que possui Jesus Cristo somente como seu objeto, não podemos saber nada”.13
Fonte: Trecho do Livro O Encanto Poético de Isaac Watts, futuro lançamento da Editora Fiel
Referências
1. Watts, The Poetic Interpretation of the Psalms, 262.
2. Fountain, Isaac Watts Remembered, 37–38. Thomas Sternhold (1500–1549) foi o principal autor da primeira versão métrificada dos Salmos. John Hopkins publicou Sternhold’s Psalms e mais tarde adicionou alguns de seus próprios.
3. Routley, Hymns and Human Life, 63.
4. Bailey, The Gospel in Hymns’, 52.
5. João Calvino, Commentary on the Gospel According to John (Grand Rapids: Baker, 1999), 218.
6. Watts, The Poetic Interpretation of the Psalms, 243.
7. Citado em J. I. Packer, A Quest for Godliness (Wheaton, Ill.: Crossway, 1990), 103.
8. Citado em Lewis A. Drummond, Spurgeon: Prince of Preachers (Grand Rapids: Kregel, 1992), 277.
9. Ibid.
10. Bryan Chapell, Christ-Centered Preaching (Grand Rapids: Baker Academic, 2008), 305.
11. Routley, Hymns and Human Life, 64–65.
12. Do hino “Give to Our God Immortal Praise” de Isaac Watts, 1719.
13. Blaise Pascal, Pensees (Londres: J. M. Dent & Sons, 1954), 147