Muitas vezes pensamos na idolatria em termos de colocar algo no lugar que deveria ser apropriadamente ocupado somente por Deus. Isso não está errado, mas precisamos dar um passo adiante. A idolatria é definida por seus sujeitos tanto quanto por seus objetos; somos idólatras constitucionalmente, e é por isso que transformamos as coisas em ídolos. Colocamos essas coisas no lugar que Deus deveria ocupar porque convém ao nosso egocentrismo fazê-lo, mesmo que as coisas que colocamos venham a nos escravizar e tiranizar. Colocamos ídolos físicos que representam deuses naquele lugar porque os vemos como coisas que podem ser controladas por nós: podemos apaziguá-los, satisfazê-los e manipulá-los por meio de nos- sos rituais, nossa adoração e nossas ofertas. Se lhes dermos as coisas certas, eles nos darão chuva ou sol ou o tipo certo de filhos. Yahweh não é assim, mas “os deuses” são. Quando nos aproximamos de Deus, o fazemos em seus termos; quando nos aproximamos de nossos ídolos, o fazemos em nossos termos, visto que eles são realmente as coisas que nós criamos para serem colocadas no lugar devido a Deus. Quando esses ídolos nos escravizam, é o nosso eu que nos mantém prisioneiros, porque no nosso eu é onde o pecado habita.
Quando colocamos outras coisas naquele lugar (sexo, dinheiro, sucesso, status, etc.), o mesmo problema está em jogo: o eu é idólatra porque é autocentrado e não centrado em Deus, e ter ídolos de todos os tipos é a maneira mais fácil de satisfazer os anseios do eu, até que os anseios piorem e os ídolos se tornem menos recompensadores. O caminho fácil para a gratificação nos leva a nos tornamos propriedade daquilo que pensávamos que serviria aos nossos desejos.
Paulo usa a mesma imagem para falar da escravidão ao pecado na idolatria – ser controlado pelos “princípios elementares” – e para falar sobre o legalismo. Pois, na verdade, o legalismo é uma espécie particular de idolatria que reflete essa mesma dinâmica de egocentrismo. O legalismo pega os bons dons de Deus das Escrituras e dos mandamentos e os transforma em fins do eu, usando-os como meio de ganhar capital simbólico, controlando a maneira como os outros pensam sobre nós e tentando controlar a maneira como Deus pensa sobre nós.
Precisamos desafiar as maneiras de pensar sobre o legalismo que o veem como um problema de outra pessoa. Temos a tendência de pensar no legalismo em termos de um compromisso de carteirinha com a salvação pelas obras, uma crença que atribuímos a outras religiões ou outras tradições cristãs, mas da qual nós mesmos fomos libertados. Além das questões que foram levantadas sobre se os judeus dos dias de Jesus alguma vez sustentaram tal crença, essa maneira de falar sobre o legalismo faz pouca justiça ao que parece ser um tema dominante em Gálatas: o legalismo envolve a busca de status aos olhos de outros crentes, seja conscientemente ou não, e não apenas a busca por ganhar crédito diante de Deus.
Alternativamente, às vezes pensamos no legalismo como se fosse idêntico à manutenção dos valores tradicionais, vendo-o como um problema que aflige os cristãos mais velhos que parecem ser mais moralmente restritivos do que nós. Acreditamos que não há graça suficiente em suas vidas, por isso eles se preocupam tanto em seguir certas práticas tradicionais. Novamente, além da possibilidade de estarmos julgando pessoas cujos compromissos aparentemente tradicionais são, na verdade, manifestações reais de decisões piedosas, existe o perigo de ignorarmos nossas próprias motivações morais, o impulso por trás de nossas próprias práticas de oração ou adoração. Vivendo nosso cristianismo “vibrante”, “moderno” e “radical”, estaríamos nós, na verdade, vivendo o velho problema da idolatria, pela qual até mesmo a bondade dos mandamentos de Deus se transforma em algo que o eu pecaminoso pode mercantilizar?
Aqui está o mais desconfortável dos pensamentos. A certa altura, Paulo considera o ensino ou as crenças de pessoas que parecem ter confiado em Cristo e recebido o Espírito como um “outro evangelho” (Gl 1.6). Paulo rotula algumas dessas pessoas de “falsos irmãos” (2.4), mas ele também fala de se opor a um companheiro apóstolo (Cefas, ou seja, Pedro, em 2.11) por aquiescer a tais crenças e, claro, ele escreve aos gálatas porque essa teologia agora prevalece entre eles. A própria Escritura, então, representa isso como uma corrupção que se manifesta dentro das igrejas que professaram fé em Cristo e experimentaram o Espírito. Não é um problema que possa- mos simplesmente projetar em outras tradições da igreja sem perguntar primeiro se ele vive entre nós.
A linguagem que Paulo usa para esse outro evangelho o representa como uma espécie de idolatria da qual os crentes supostamente foram libertados. Esse, acredito, é um exemplo particularmente claro de algo que funciona como um tema em todo o Novo Testamento: nossa pecaminosidade constitucional, nossa “carne”, continuará a se manifestar em idolatria sempre que não for vista pelo que é e tratada com seu único antídoto, a presença pessoal de Jesus Cristo agindo por meio de seu Espírito. Se começarmos a pensar ou falar sobre qualquer parte da vida e da ética cristã à parte de Cristo, nossa carne a transformará em idolatria. Até mesmo as melhores coisas, até mesmo os mandamentos de Deus, tomados de forma isolada de Jesus, se tornarão matéria de idolatria, como aconteceu com os gálatas, porque os mandamentos são mais fáceis de lidar do que o próprio Deus.
Se realmente levarmos o pecado a sério, reconheceremos isso; mas talvez nosso problema seja precisamente que não levamos o pecado a sério o suficiente. Apesar de toda a frequência com que falamos sobre o pecado, não reconhecemos o quão profundamente ele nos compromete e quão absolutamente necessitados de Jesus sempre seremos. Somos, por natureza, idólatras; a única coisa que pode superar essa realidade, sem- pre que ela vem à tona, é o evangelho de Jesus Cristo. Cada um de nós deve refletir sobre isso: será que o rótulo “evangelho”, em nosso evangelicalismo particular, na verdade designa aquele outro euangelion (evangelho) do qual Paulo fala? Não seria uma coisa horrível para qualquer um de nós admitir isso?
Artigo adaptado do livro Vivendo em união com Cristo, de Grant Macaskill, publicado pela Editora Fiel.