O texto abaixo foi extraído do livro Além das 95 Teses, de Stephen Nichols, futuro lançamento da Editora Fiel.
“Ainda não progredi além da instrução das crianças nos Dez Mandamentos, o Credo e a Oração do Senhor.
Ainda aprendo e oro todos os dias com meu Hans e minha pequena Lena.”
Martinho Lutero, 1531
Martinho Lutero era verdadeiramente um pastor muito ocupado. Executava múltiplas tarefas, incluindo escrever, pregar, ensinar e administrar. Toda semana, ele escrevia numerosas e longas cartas ou trabalhava em um de seus muitos tratados, pregava duas vezes aos domingos e, em geral, mais três vezes durante a semana, lecionava diariamente na universidade, orientava muitos estudantes e aconselhava um bom número de pastores, igrejas e até mesmo príncipes novatos. Além disso, Lutero cuidava de sua família sempre crescente. Também experimentou a pressão das diversas controvérsias resultantes de seu tempo e de seus esforços. No entanto, em meio a toda essa atividade frenética, ele dedicava algumas horas ao ensino, não só de seus próprios filhos, mas também das crianças de Wittenberg.
Lutero tinha um intelecto incrível. A tradução que fez do Novo Testamento grego para o alemão, em apenas três meses, permanece como um claro testemunho à sua genialidade. Envolveu-se em debates com as mais brilhantes mentes de seus dias. Muito antes de sua notoriedade ter-se espalhado com a postagem das 95 teses, ele já se havia estabelecido claramente como um dos acadêmicos mais promissores da Alemanha. Mas talvez a marca mais óbvia de seu prodígio intelectual tenha sido o fato de ele ensinar as verdades essenciais da fé cristã às crianças, de uma forma que elas conseguiam entender.
Essa ênfase no ensino das crianças, que facilmente poderia ter sido ofuscada por outras exigências, fazia todo o sentido para Martinho Lutero. Para a igreja nascente, que logo ganhou seu nome, e para todo o movimento protestante não apenas sobreviver, mas também florescer, o ensinamento das crianças se tornou prioridade absoluta e urgente. Lutero sabia disso, não somente por causa dos exemplos históricos, mas também porque observava a situação que se lhe apresentava.
Assim, durante todos os meses de outono e inverno de 1528 e 1529, ele viajou pelas novas congregações de toda a região. Ainda era um fora da lei, e essa turnê não estava isenta de riscos. No entanto, Lutero viajava para ver, por si mesmo, as condições em que as igrejas se encontravam. Os resultados dessa inspeção deixaram-no frustrado e decepcionado. Testemunhou condições “deploráveis” e “infelizes”, observando: “As pessoas comuns, especialmente aquelas que vivem no campo, não têm conhecimento dos ensinos cristãos e infelizmente, muitos pastores são incompetentes e se mostram inadequados ao ofício de ensinar”. “Eles passaram a dominar a fina arte”, entoava Lutero, “do abuso da liberdade”.
Toda essa situação perturbou profundamente Lutero. Ele, então, passou a direcionar seu foco e suas preocupações sobre dois grupos: o clero e as crianças. Ao retornar a Wittenberg, pediu imediatamente a Melâncton e a outros de seu círculo de amigos e colegas que produzissem material que lhe possibilitasse lidar com essas deficiências e treinar os infantes. Assim, eles produziram extenso material, mas apenas uma parte foi aprovada por Lutero. Alguns textos, ele considerava nada mais que moralismo – uma cura que, Lutero temia, seria pior que a doença. Mas percebeu que quase tudo estava aquém de fazer o que ele considerava essencial: a comunicação clara das verdades cruciais da Bíblia e da teologia ortodoxa de uma geração a outra. Em outras palavras, ele desejava imprimir uma tradição que perdurasse, no melhor sentido do termo.
A palavra inglesa para tradição tem origem no latim traditio, que significa transferir, passar adiante ou entregar. Para Lutero, Paulo foi quem melhor encerrou o sentido da palavra ao admoestar seu “filho na fé”, Timóteo, a transmitir “a homens fiéis e também idôneos para instruir outros” (2Tm 2.2). Lutero entendia que essa era a única forma de a igreja permanecer fiel ao evangelho e à teologia ortodoxa. Era preciso ensinar – explícita, proposital e programaticamente – o evangelho e a teologia ortodoxa, e fazer isso em relação aos mais jovens.
Depois de esperar em vão, por algum tempo, que alguém produzisse material com esse propósito, Lutero decidiu, ele mesmo, fazê-lo, em 1529. O resultado foi o livro Catecismo menor. Por seu próprio testemunho, conforme vimos, Lutero declarou que não se importava que toda a sua obra fosse queimada e esquecida, contanto que O cativeiro da vontade e Catecismo menor sobrevivessem. Felizmente, seu desejo se realizou sem essa condição. Sua obra sobreviveu, tem vicejado e ainda conta com vasto público até hoje, quase quinhentos anos depois de ter sido escrita.
No mesmo ano, Lutero também tratou os problemas do clero inculto com a publicação intitulada Catecismo alemão. Essa obra, que passou a ser chamada de Catecismo maior, segue a mesma estrutura de sua correspondente, só que é muito mais extensa.
Catecismo menor não foi a única contribuição de Lutero à literatura infantil. Conforme já mencionamos, ele também publicou uma tradução em alemão das Fábulas de Esopo. Além disso, foi autor de um alfabeto simples e de um livro voltado ao público infantil. Porém, Catecismo menor permanece como seu verdadeiro legado, valendo-lhe outra adição à já extensa lista de credenciais: a de educador infantil.
Uma obra-prima teológica: para crianças
Catecismo menor é uma obra-prima, por ser, ao mesmo tempo, abrangente e conciso. Atual em sua apresentação, estilo e conteúdo, essa obra figura entre os clássicos da literatura devocional e teológica. Consiste em uma breve exposição dos elementos essenciais para entender a Deus, sua Palavra e sua obra no mundo, contendo breves ensinamentos sobre os Dez Mandamentos, o Credo Apostólico, a Oração do Senhor e os sacramentos. Lutero expandiu o catecismo para edições posteriores, a fim de incluir instruções sobre a oração e aquilo que ele chama de “a mesa dos deveres”. Essas inserções bastante concisas apresentam diversos ensinamentos da Bíblia sobre pastores, autoridades seculares, maridos, esposas, pais, filhos, trabalhadores e servos, mestres e viúvas, e concluem com uma palavra a todos os cristãos em geral.
O catecismo de Lutero foi o primeiro dos muitos catecismos produzidos durante a Reforma, incluindo o Catecismo de Heidelberg, o Breve e o Completo catecismo de Westminster. A exemplo desses, o catecismo de Lutero segue um modelo de perguntas e respostas. A palavra catecismo quer dizer, literalmente, soar e diz respeito ao ensinamento pelo falar. O método de instrução da catequese enfatiza o envolvimento do mestre, do pai ou da mãe com a criança. Também encoraja a memorização, pois as perguntas e respostas são frequentemente repetidas. Essa repetição e essa memorização representam um meio voltado a um fim, pois as palavras do catecismo devem impactar tanto o pensamento como a vida daquele que conhece as palavras.