O texto abaixo foi extraído do livro Antes de Partir, de Nancy Guthrie, da Editora Fiel
Será que nos atreveríamos a pensar na morte como uma vocação? O autor de Eclesiastes fez esta declaração:
Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer. (Ec. 3: 1-2a)
Da mesma forma, o escritor de Hebreus diz:
E, assim como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo, depois disto, o juízo. (Hb. 9:27)
A Escritura fala da morte em termos de um “propósito debaixo do céu” e de “ordenamento”. A morte é um ordenamento divino. É parte do propósito de Deus em nossas vidas. Deus chama cada pessoa para morrer. Ele é soberano sobre tudo da vida, incluindo a experiência final da vida.
Estou ciente de que há professores nos dizendo que Deus não tem nada a ver com a morte. A morte é vista estritamente como um dispositivo demoníaco do Diabo. Toda dor, doença, sofrimento e tragédia são atribuídos ao Maligno. Deus é absolvido de qualquer responsabilidade. Essa visão é formulada para se certificar de que Deus seja absolvido da culpa por qualquer coisa que dê errado nesse mundo. “Deus sempre deseja curar”, nos é dito. Se essa cura não acontece, então a culpa recai sobre Satanás – ou nós mesmos. A morte, eles dizem, não é o plano de Deus. Ela representa a vitória de Satanás sobre o reino de Deus. Tais visões podem trazer alívio temporário para o aflito. Mas elas não são verdadeiras. Elas não têm nada a ver com o cristianismo bíblico. Em um esforço para absolver Deus de qualquer culpa, eles fazem isso à custa da soberania de Deus.
Sim, existe um Diabo. Ele é o nosso arqui-inimigo. Ele fará qualquer coisa ao seu alcance para trazer miséria para as nossas vidas. Mas Satanás não é soberano. Satanás não guarda as chaves da morte.
Quando Jesus apareceu em uma visão a João na Ilha de Patmos, ele se identificou com estas palavras:
Não temas; eu sou o primeiro e o último e aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da morte e do inferno. (Ap. 1:17-18)
Jesus segura as chaves da morte. Satanás não pode apanhar essas chaves de suas mãos. O pulso de Cristo é firme. Ele segura as chaves, porque são propriedade dele. Toda a autoridade no céu e na terra foi dada a ele. Essa autoridade inclui toda a autoridade sobre a vida e toda a autoridade sobre a morte. O anjo da morte está à disposição e chamado dele.
Acima de todo sofrimento e da morte está o Senhor crucificado e ressurreto. Ele derrotou o último inimigo da vida. Ele venceu o poder da morte. Ele nos chama para morrer, mas esse chamado é um chamado à obediência para a transição final da vida. Por causa de Cristo, a morte não é o final. É uma passagem de um mundo para o outro.
Eu nunca esquecerei as últimas palavras que o meu pai disse para mim. Estávamos sentados juntos no sofá da sala. O seu corpo havia sido arruinado por três derrames. Um lado do seu rosto estava distorcido pela paralisia. Seu olho e lábio do lado esquerdo pendiam de maneira incontrolável. Ele falou comigo com uma pronúncia pesada. Suas palavras eram difíceis de entender, mas o seu significado estava muito claro. Ele proferiu estas palavras: “Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé”.
Essas foram as últimas palavras que ele me falou. Horas mais tarde, ele sofreu a sua quarta e última hemorragia cerebral. Encontrei-o caído no chão, um fio de sangue escorrendo do canto da sua boca. Ele estava em coma. Misericordiosamente, ele morreu um dia e meio depois, sem recuperar a consciência.
Enquanto as suas últimas palavras para mim foram heroicas, minhas últimas palavras para ele foram covardes. Eu protestei suas palavras premonitórias. Eu disse de forma rude, “Não diga isso, Pai”.
Há várias coisas que eu disse em minha vida que desejo desesperadamente que não tivesse dito. Nenhuma das minhas palavras é mais vergonhosa para mim do que essas. Mas as palavras não podem mais ser trazidas de volta, assim como uma flecha acelerando após a corda do arco ter vibrado em lançamento pleno.
Minhas palavras foram uma repreensão a ele. Eu me recusei a lhe permitir a dignidade de um último testemunho para mim. Ele sabia que estava morrendo. Eu me recusei a aceitar o que ele já havia aceitado graciosamente.
Eu tinha 17 anos. Não sabia nada sobre a morte. Não foi um ano muito bom. Eu vi meu pai morrer um pouco de cada vez durante um período de três anos. Eu nunca o ouvi reclamar. Nunca o ouvi protestar. Ele sentava na mesma cadeira dia após dia, semana após semana, ano após ano. Ele lia a bíblia com uma lupa enorme. Eu estava cego para as ansiedades que devem tê-lo atormentado. Ele não podia trabalhar. Não havia renda nenhuma. Nenhum seguro por invalidez. Ele sentava lá, esperando morrer, observando as suas economias da vida esvaírem-se juntamente com a sua própria vida.
Eu estava zangado com Deus. Meu pai não estava zangado com ninguém. Ele viveu os seus últimos dias fiel à sua vocação. Ele combateu o bom combate. Um bom combate é um combate travado sem hostilidade, sem amargura, sem autopiedade. Eu nunca havia estado em um combate assim.
Quando meu pai morreu, eu não era um cristão. A fé era algo além da minha experiência e além da minha compreensão. Quando ele disse, “Guardei a fé”, não me dei conta do peso de suas palavras. Eu me fechei para elas. Eu não tinha ideia de que ele estava citando a última mensagem do apóstolo Paulo para o seu discípulo amado, Timóteo. O seu testemunho eloquente foi desperdiçado comigo naquele momento. Mas não agora. Agora eu compreendo. Agora eu quero perseverar como ele perseverou. Quero completar a carreira e terminar o percurso como ele fez antes de mim. Não tenho nenhum desejo de sofrer como ele sofreu. Mas quero guardar a fé como ele guardou.
Se meu pai me ensinou alguma coisa, foi a como morrer. Meu pai completou a carreira porque Deus o chamou a completá-la. Ele terminou o percurso porque Deus estava com ele ao passar por cada obstáculo. Ele guardou a fé porque a fé o guardou.
Adaptado de Surpreendido pelo Sofrimento, por R. C. Sproul, ©1998, editora Cultura Cristã. Usado do original em inglês com permissão da Reformation Trust.