Navegar por um percurso entre a rocha Scylla do antinomianismo, de um lado, e o turbilhão Caríbdis do legalismo, do outro, é uma incessante responsabilidade da vida cristã. A dificuldade é agravada pelo fato de que a maioria de nós se vê atraída mais pelas rochas de um lado do que do outro. Talvez isso seja uma reação à nossa educação, ou à pregação desequilibrada que uma vez dominou nossas igrejas, ou ainda a uma fase anterior de nossa própria caminhada cristã, quando nos voltamos para a condescendência própria ou auto-justificação. E enquanto nunca devemos nos desvencilhar da luta para permanecer no curso e evitar os recifes perigosos que sempre se escondem logo abaixo da superfície, devemos lembrar que existem outras pessoas que estão fazendo a jornada também, e que nossas reações, à medida que as vemos traçar um curso inseguro, podem ser moldadas tanto por nossa própria história de nossos erros quanto por seus erros presentes.
Aqueles de nós, de origem fundamentalista, que vieram a conhecer a Cristo, podem encontrar-se no meio de uma reação ao legalismo. Exigências excessivamente restritivas acrescentaram cargas desnecessárias à luz e ao jugo suave de Cristo. Mas em algum momento, na bondosa providência de Deus, redescobrimos as riquezas da graça soberana. Entendemos que tendo sido justificados livremente, à parte de nossas obras, fomos revestidos da justiça de Cristo, total e imutávelmente perdoados, aceitos e amados. Chegamos a nos apegar com gratidão à maravilhosa verdade de nossa adoção. Em Cristo, nós que outrora éramos inimigos de Deus somos agora seus filhos, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo.
“O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados”. (Rm 8.16, 17).
A vergonha que uma vez sentimos, quando deixamos de cumprir as exigências legalistas colocadas sobre nós, se dissipou à medida que nos apropriamos de nossa liberdade como filhos do Rei. Sabemos agora que não precisamos tentar ganhar um lugar para nós mesmos na casa de Deus por nossos próprios esforços, uma vez que fomos adotados para sempre em sua família.
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Mas, tendo redescoberto as alegrias dessas preciosas verdades do evangelho, ainda assim estamos em perigo. Misericordiosamente, o primeiro perigo é bem conhecido e, embora seja pernicioso, a maioria de nós está em guarda contra ele. É o perigo da reação exagerada. Sabemos que não devemos ouvir, nas fortes garantias da rica graça de Deus, uma negação das exigências igualmente fortes da santa lei de Deus. Sabemos que pelas obras da lei ninguém será justificado (Gl 2.16), todavia, não estamos fora da lei de Deus, mas vivemos sob a lei de Cristo (1Co 9.21). A lei, despojada de seu poder de condenação, tornou-se nossa amiga. Para continuar a metáfora do mar, a lei se torna para um cristão como o piloto de um navio, conduzindo a embarcação por águas traiçoeiras e traçando um curso seguro.
O segundo perigo, no entanto, é facilmente esquecido. Traçar um curso seguro para nós mesmos é uma coisa, mas a paciência com os companheiros cristãos que podem estar desviando desse curso é bem outra. Como legalistas em recuperação, precisamos reconhecer a rapidez com que nossa paciência com os outros pode falhar quando eles ainda não conseguem ver as imensas rochas do legalismo, das quais sempre temos o cuidado de nos desviar. Nós nos perguntamos como eles podem ser tão cegos a ponto de se perderem completamente nas pedras afiadas da auto-justiça e nos recifes escondidos da vergonha. Como estamos felizes por não mais cometermos seus erros. Quão ingênuos são aqueles que não conseguem ver o caminho da verdadeira liberdade do evangelho.
Mas o legalismo assume uma variedade de formas, e uma de suas mais sutis é exposta em nossa ostentação de orgulho que, ao contrário de nossos pobres irmãos legalistas, sabemos melhor. E assim, enquanto nos congratulamos pela nossa sabedoria em navegar com segurança longe dos perigos da limitação excessiva e das restrições pesadas e construídas pelo homem, acabamos encalhados nas próprias rochas das quais pensávamos ter escapado. J. Gresham Machen, refletindo sobre a parábola do fariseu e do publicano em Lucas 18.11, certa vez apontou esse perigo em seu livro What Is Faith? (O que é fé?).
Sem dúvida, achamos que podemos evitar o erro do fariseu. Deus não era para ele, dizemos, porque ele estava desdenhoso em relação ao publicano; seremos ternos com o publicano, como Jesus nos ensinou a ser, e então Deus será por nós. É sem dúvida uma boa ideia; é bom que estejamos sensíveis ao publicano. Mas qual é a nossa atitude para com o fariseu? Infelizmente, nós o desprezamos de uma maneira verdadeiramente farisaica. Subimos ao templo para orar; nós nos levantamos e oramos assim para nós mesmos: “Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, orgulhoso de minha própria justiça e sem amor para com os publicanos, ou até mesmo como este — fariseu”.
Se esperamos salvar os outros das rochas, não o poderemos fazer se também nos encalharmos. A prática da paciência é a melhor defesa contra se tornar um legalista sobre o legalismo e farisaico em relação aos fariseus.
Tradução: Paulo Reiss Junior.
Revisão: Filipe Castelo Branco.
Fonte: Our Attitude toward the Pharisee.