quarta-feira, 3 de setembro
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O amor cristão é definido e encarnado em Cristo

O fruto do Espírito em ação

O amor é muito distorcido no imaginário atual. Isso se deve ao fato de que um suíço disse aos franceses que eles não sabiam fazer amor. O que é espantoso é que os franceses acreditaram nele e o adotaram como mestre na arte de amar. Depois, os alemães se tornaram aprendizes dos franceses e começaram a instruir os ingleses.  O suíço em questão é Jean-Jacques Rousseau (1712–1778), um dos arquitetos do pensamento moderno, culpado de psicologizar a essência humana. 

O discipulado pagão moderno segue uma mistura de Rousseau, Freud e Marx (e alguns outros, claro). Seguir Rousseau é tornar psicológica a identidade. Seguir Freud é tornar sexuais o psicológico e, portanto, a identidade. Misturar essa combinação com Marx é tornar políticos a identidade e, por consequência, o sexo. 

Assim, o amor é reduzido a meros afetos e relações sexuais, ou seja, não passa de um sentimento no cio. Contudo, não podemos impor os significados modernos aos textos bíblicos; antes, devemos ouvi-los dentro de seus próprios contextos. 

Contextos

O substantivo ágape não é encontrado no grego clássico, que usa três outras palavras para “amor”: philia, uma palavra geral; erōs, principalmente o amor sexual; e storgē, geralmente o amor entre os membros da família.

A palavra ágape ocorre cerca de 20 vezes na Septuaginta, embora sem um significado especial. O substantivo ganha destaque no NT, onde ocorre quase 120 vezes (75 delas em Paulo). Muitos têm especulado sobre o motivo por que esse substantivo ganhou tanta proeminência no NT, mas as razões não são claras.  Já o termo philia (uma palavra geral para o amor terno no grego secular) ocorre no NT cerca de 25 vezes com um significado semelhante a ágape, às vezes de forma intercambiável.

Uma seleção de definições de amor

Eu amo a Deus. Amo minha esposa e meus filhos. Amo a igreja da qual faço parte. Amo praticar alguns esportes. Amo ouvir música e ir ao cinema. Como definir o amor se podemos usar essa palavra para as coisas mais transcendentes e importantes, bem como para hobbies e coisas triviais? Eis algumas definições sugeridas por estudiosos:

1. “Muitos estudiosos do amor o definem como uma atitude — ou uma predisposição para pensar, sentir e se comportar de maneira positiva em relação a outra pessoa […] Em oposição a uma atitude, a maioria dos leigos e alguns estudiosos do amor preferem pensar no amor como uma emoção.” 

2. “O amor é aquele tipo de ação extrovertida e abnegada, não necessariamente emoção, que caracterizou o próprio Deus quando amou tanto o mundo que deu seu único Filho (Jo 3.16).” 

3. “Eu defino o amor assim: a vontade de expandir-se com o propósito de nutrir o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa.” 

4. “O amor, no sentido cristão, não significa uma emoção. É um estado não de sentimentos, mas de vontade.” 

5. “O amor é a atmosfera da vida cristã.” 

6. “A definição prática de amor compassivo inclui tanto as atitudes como as ações relacionadas com a doação de si para o bem do outro […]. Mas, no centro da construção, estão a motivação e o discernimento, facetas da livre escolha para se esforçar e dar.” 

Sem ancorar a definição em Cristo, as melhores tentativas de definição podem cair no subjetivismo e acabar não definindo coisa alguma (como vimos no caso da definição de virtude). Por exemplo, como conceituar uma atitude “positiva” em relação ao próximo (opção 1)? O que é e como nutrir um “crescimento espiritual” próprio ou alheio (opção 3)? O que seria um “estado de vontade” ou uma “atmosfera” cristã (opções 4 e 5)? A última definição, que, na minha opinião, é a mais completa, sofre do mesmo mal.

Para evitarmos essas imprecisões e nos apegarmos à Palavra de Deus, o bem buscado não deve ser abstrato, mas identificado com o próprio Cristo Jesus. Portanto, podemos definir o amor como as nossas ações intencionais e relacionadas com a doação de nós mesmos que visam à formação, aumento e glorificação de Cristo em nós e nas outras pessoas. Essa definição é teológica, uma vez que o próprio Deus amou dessa maneira. 

O amor de Deus 

Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor. Nisto se manifestou o amor de Deus em nós: em haver Deus enviado o seu Filho unigênito ao mundo, para vivermos por meio dele. Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados. Amados, se Deus de tal maneira nos amou, devemos nós também amar uns aos outros. Ninguém jamais viu a Deus; se amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu amor é, em nós, aperfeiçoado. Nisto conhecemos que permanecemos nele, e ele, em nós: em que nos deu do seu Espírito. E nós temos visto e testemunhamos que o Pai enviou o seu Filho como Salvador do mundo. Aquele que confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele, e ele, em Deus. E nós conhecemos e cremos no amor que Deus tem por nós. Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus, nele. (1Jo 4.8-16)

O amor é essencial a Deus. Tradicionalmente, é chamado de um de seus “atributos comunicáveis” ou “perfeições morais”. Não podemos reduzir Deus a um de seus atributos, nem mesmo ao amor, como fizeram alguns teólogos liberais, tais como Albrecht Benjamin Ritschl (1822–1889). Mesmo em teologias modernas, há uma tendência (especialmente no pensamento do “processo”) de inverter a equação “Deus é amor”, transformando-a em “o amor é Deus”. Essa, no enanto, não é uma ideia joanina (ou bíblica). Como João deixa absolutamente claro nessa passagem, o princípio controlador do universo não é uma qualidade abstrata de “amor”, mas um Deus soberano e vivo que é a fonte de todo o amor e que, como amor, ama a si mesmo.  Como afirmou Gary W. Derickson em seu massivo comentário das cartas joaninas:

[O amor] não pode ser tornado um dos mais importantes ou o mais importante controlador de seus atributos. No entanto, é um atributo que os crentes podem expressar — e espera-se que o façam. Deus não é mais “amor” do que é “luz”, embora ambos descrevam seu caráter e natureza em algum sentido — sendo a luz uma metáfora para a santidade e pureza, enquanto o amor deve ser entendido literalmente. Mesmo assim, o amor, como definido por João, não é tanto emocional quanto volitivo. É o motivo de Deus por trás do que ele faz mais do que sua resposta emocional ou atitude para com seus filhos, embora isso seja entendido como verdadeiro também. 

I. Howard Marshall identifica o ponto da afirmação de João, que será desenvolvido nos versículos que se seguem, afirmando que “uma pessoa não pode entrar em um relacionamento real com um Deus amoroso sem ser transformada em uma pessoa amorosa”.  Além disso, somos lembrados de que “‘Deus é amor’ não significa simplesmente que o amor é uma de suas atividades, mas que toda a sua atividade é amorosa.” 

Cristo, a encarnação do amor

Considere seriamente estas três passagens a seguir:

Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado. Porque Cristo, quando nós ainda éramos fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios. Dificilmente, alguém morreria por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém se anime a morrer. Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores. (Rm 5.5-8)

Nisto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos. (1Jo 3.16)

O meu mandamento é este: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos. (Jo 15.12-13)

Cristo é Deus encarnado, e Deus é amor. Portanto podemos dizer que Cristo é a encarnação do amor. Nele temos a manifestação humana suprema e perfeita do amor divino. Podemos ver como é a face do amor, como o amor pensa, sente e age; enfim, temos um quadro completo e pleno do amor ao olharmos para Cristo com os olhos da fé, assim como ele é apresentado nas Escrituras. 

Em um ensaio fascinante intitulado The Emotional Life of Our Savior [A vida emocional do nosso Salvador], B. B. Warfield aponta que a compaixão “é a emoção que é mais frequentemente atribuída a ele [Jesus]”.  Toda a vida de Jesus é uma grande exposição da frase “o fruto do Espírito é amor”. 

O amor-ágape de Jesus por nós é ativo, intencional, compassivo e sacrificial. O Amor habitou entre nós, cheio de graça e verdade (Jo 1.14). O amor comia e bebia com pecadores, enquanto repreendia duramente religiosos hipócritas (Mc 2.16-18). O Amor decidiu, com uma firmeza nunca antes vista, ir para Jerusalém para morrer na cruz (Lc 9.51) e de fato entregou sua vida por seus amigos (Jo 15.13).

O artigo acima é um trecho retirado com permissão e adaptado do livro O fruto do Espírito, de Willian Orlandi, em breve pela Editora Fiel.


Autor: Willian Orlandi

É casado com Vitória, pai da Alice e do Nicolas. Graduado em Teologia (Seminário Martin Bucer) e em Letras (PUC-Campinas). Pós-graduado em Novo Testamento (UNIFIL) e em Psicolinguística (Metropolitana). Mestrando em Novo Testamento (Seminário Teológico Jonathan Edwards). Professor de Teologia em vários Seminários Teológicos do país.

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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