Calvino, francês de nascimento, viveu, pastoreou e trabalhou na Suíça. Ele é um dos teólogos que mais escreveu sobre o governo civil.
Em suas idéias, firma-se a tradição reformada sobre a política. Sua atuação na cidade de Genebra não foi somente teológica e eclesiástica.
Seguindo o entrelaçamento com o Estado que ainda prevalecia naqueles tempos, Calvino teve intensa atuação na estruturação da sociedade civil daquela cidade. Participou, igualmente, da administração e dos detalhes operacionais do dia-a-dia da cidade, inclusive em seus aspectos sociais.
Os escritos de João Calvino revelam uma percepção incomum à época, traçando claramente os limites de atuação do Estado e especificando com clareza a esfera da Igreja.
Em seu mais famoso trabalho, as Institutas da Religião Cristã, no Livro IV, Capítulo 20 (o último capítulo desse seu livro), encontramos uma grande exposição do tema, sob o título Do Governo Civil, em 32 seções. Na terminologia de Calvino, os governantes são chamados de “magistrados” ou de “magistrados civis”, seguindo a própria terminologia paulina de Romanos 13.1-7.
1. O Governo Civil – esfera específica e legítima ao cristão
Grande parte do que Calvino escreveu foi dirigida aos anabatistas,contradizendo os argumentos destes que diziam ser o governo civil uma área de atuação ilegítima ao cristão.
Calvino exalta o ofício do magistrado civil e extrai da Palavra de Deus definições e parâmetros que, mais tarde, fariam parte da tradição reformada.
Logo na seção 1, Calvino indica que o governo civil é algo diferente e separado do reino de Cristo, uma questão que ele diz não ter sido compreendida pelos judeus. Ele aborda a separação entre Igreja e Estado, dizendo: “Aquele que sabe distinguir entre o corpo e a alma, entre a vida presente efêmera e aquela que é eterna e futura não terá dificuldade em entender que o reino espiritual de Cristo e o governo civil são coisas completamente separadas”.
Na seção 2, entrando na terceira, ele afirma que, mesmo restrito à esfera temporal, o governo civil é área legítima ao cristão. Calvino chama de “fanáticos” os que se colocam contra a instituição do governo.
Entre as funções primordiais do governo, ele relaciona: “…que a paz pública não seja perturbada; que as propriedades de cada pessoa sejam preservadas em segurança; que os homens possam exercer tranqüilamente o comércio uns com os outros; que seja incentivada a honestidade e a modéstia”.
Nas seções 4 a 7, Calvino fala sobre a aprovação divina do governante, ou seja, o ofício do magistrado civil, ancorando suas observações em Provérbios 8.15-16 e Romanos 13, respondendo também a objeções. Entretanto, ele insiste que a primeira conseqüência dessa aprovação é a grande responsabilidade que os próprios governantes têm consigo mesmo perante Deus.
Existe, pois, a necessidade de um auto-exame constante, para aferirem se estão sendo justos e se estão se enquadrando, com toda propriedade, na categoria de ministros de Deus.
Calvino escreve, sobre os governantes: “Se eles cometem qualquer pecado, isso não é apenas um mal realizado contra pessoas que estão sendo perversamente atormentadas por eles, mas representa, igualmente, um insulto contra o próprio Deus, de quem profanam o sagrado tribunal.
Por outro lado, eles possuem uma admirável fonte de conforto quando refletem que não estão meramente envolvidos em ocupações profanas, indignas de um servo de Deus, mas ocupam um ofício por demais sagrado, porque são embaixadores de Deus”.
2. Exame de formas de governo
Na seção 8, Calvino examina três formas de governo: monarquia, aristocracia e democracia. Ao fazer isso, ele adentra a política em toda a sua extensão. Ele classifica de futilidade as discussões que pretendem provar conclusivamente que uma forma de governo é melhor do que outra. Para Calvino, as três formas são passíveis de críticas: a monarquia tende à tirania; na aristocracia, a tendência é a regência de uma facção de poucos; na democracia, ele vê uma forte tendência à quebra da ordem. Ao dizer isso, ele se revela um defensor da aristocracia – como a forma menos danosa de governo. O raciocínio de Calvino é que a história não favorece a monarquia, pois reis e imperadores despóticos marcam essa forma de governo. No entanto, Calvino não se sente confortável em uma democracia, sob o temor de que as massas não saibam conter seus “vícios e defeitos”.
No governo de alguns sobre muitos (aristocracia), ele vê a possibilidade de controle de uns sobre os outros, de aconselhamento mútuo e de preservação desses “vícios e defeitos”. A essência de qualquer forma de governo, para Calvino, é a liberdade. Ele escreve: “Os governantes [magistrados] devem fazer o máximo para impedir que a liberdade, à qual foram indicados como guardiões, seja suprimida ou violada.
Se eles desempenham essa tarefa de forma relaxada ou descuidada, não passam de pérfidos traidores do ofício que ocupam e de seu país”.
3. Deveres dos governantes para com a religião
Calvino reflete ainda a visão da época, de que um dos deveres dos governantes era a promoção da religião verdadeira. Essa compreensão se tornaria parte, inclusive, do texto original da Confissão de Fé de Westminster, quase 100 anos depois, em 1648, tendo sido, depois, modificada significativamente, em 1788, nos Estados Unidos. A seção 9 desenvolve exatamente essa linha de pensamento.
Calvino faz referência a várias passagens bíblicas que conclamam os governantes a exercer os princípios divinos de justiça, como Jeremias 23.2 e Salmos 82.3-4. Mas não é somente nessa abrangência que ele enxerga a atuação do governo. Ele afirma que a esfera de autoridade se “estende a ambas as tábuas da lei”.
Ou seja, os primeiros quatro mandamentos (a primeira tábua da Lei), como falam dos deveres dos homens para com Deus, legitimaria o governo não somente em promover o exercício da religião verdadeira, como também em punir os que não a seguissem. Esse pensamento seria posteriormente refinado por vários outros pensadores e documentos reformados, que, diferentemente de Calvino, considerariam a esfera legítima de atuação no governo como situada apenas na segunda tábua da Lei (os mandamentos que regulam as atividades e os relacionamentos com o nosso próximo). Na seção 10, Calvino trata desse assunto, respondendo a objeções colocadas contra esse ponto de vista, especialmente as que surgiam dos anabatistas.
4. Prerrogativas dos Governos
Da seção 11 até a 13, Calvino fala de várias prerrogativas dos governos, começando com a de envolverse em guerras. Ele não é um incentivador do estado beligerante, mas vê como uma realidade o fato de que os governos terão de pegar em armas para defenderem seus governados e seus territórios. Nessa linha de pensamento, o governo deve ser forte e se armar para garantir a vida pacífica de seus governados, reprimindo pela força os criminosos. Em todas essas seções, citando Agostinho para fundamentar sua posição, Calvino faz várias referências à restrição necessária aos governantes, para que não abusem da prerrogativa da força. A segunda prerrogativa, tratada na seção 13, é a de cobrar impostos. Nesse sentido, Calvino propõe a legitimidade de os governantes cobrarem impostos e taxas até para seu próprio sustento – isso não deveria espantar, nem confundir os cristãos.
5. Os governos e as leis
Calvino apresenta um extenso tratamento da lei de Deus nas seções 14 a 16. Ele introduz a distinção entre a lei religiosa, a lei civil e a lei moral – encontrada nas Escrituras.
Reconhecendo os dois primeiros aspectos como temporários, pertinentes apenas ao Antigo Testamento, ele reafirma a permanência da Lei Moral. Diz Calvino: “É evidente que aquela lei de Deus que chamamos de moral nada mais é do que o testemunho da lei natural e da consciência que Deus fez gravar na mente dos homens… Assim [esta lei] deve ser o objeto, a regra e o propósito de todas as leis. Em qualquer lugar que as leis venham a se conformar com esta regra, direcionadas a este propósito e restritas a esta finalidade, não existe razão porque sejam reprovadas por nós”. Calvino cita Agostinho (A Cidade de Deus, Livro 19, c. 17) como apoio à sua exposição e termina examinando as leis de Moisés – quais podem ser aplicadas e quais foram ab-rogadas.
6. Os governados e a lei – relacionamentos de uns para com os outros
Cinco seções são utilizadas (17 a 21) para tratar de um tema que é sempre controvertido – como os governados podem usar as leis para ajustarem seu comportamento de uns para com outros? Calvino trata da questão explorando até onde é legítima uma demanda judicial entre governados. Uma de suas preocupações era a de refutar os anabatistas, que condenavam qualquer forma de procedimentos judiciais.
Em seu tratamento, ele responde especificamente a duas objeções. A primeira, a indicação de que Cristo nos proíbe resistir ao mal (Mt 5.39-40); a segunda, a de que Paulo condena toda e qualquer ação judicial (1 Co 6.6). Na visão de Calvino, os crentes são pessoas que devem suportar “afrontas e injúrias”. Isso contribui para a formação do caráter e produz uma geração que não se fixa em retaliação – o que caracteriza os descrentes. No entanto, ele não chega a dizer que o cristão nunca deve levar um caso à justiça.
Paulo, em 1 Coríntios 6, aborda uma situação em uma igreja que tinha o litígio como característica de vida e com o envolvimento de estranhos à comunidade. Tudo isso causava grande escândalo ao evangelho. Assim, afirma Calvino, devemos estar até predispostos a sofrer perdas, mas ele complementa:“Quando alguém vê que a sua propriedade imprescindível está sendo defraudada, ele pode, sem nenhuma falta de amor [caridade], defendê-la. Se ele o fizer, não estará ofendendo, de maneira nenhuma, esta passagem de Paulo” (seção 21).
7. Os governados e a lei – respeito e submissão aos governantes
As dez últimas seções (22 a 32) ocupam-se com a questão da submissão dos governados. Calvino trata do respeito e da obediência devidos aos governantes (22 e 23), passando a examinar a questão da submissão aos tiranos (24 e 25). Ele demonstra que as Escrituras consideram o ofício do regente civil na mais alta conta, e não resta ao cristão senão ter a mesma visão que a Palavra de Deus tem. Baseando-se em Romanos 13, Calvino reforça que a desobediência civil é desobediência a Deus. Calvino não dá abrigo aos pensamentos de revolta contra as autoridades, nem mesmo contra os tiranos.
Ele diz: “Insisto intensamente em provar isto, que nem sempre é perceptível aos homens: mesmo um indivíduo do pior caráter – aquele que não é merecedor de qualquer honra –, se estiver investido de autoridade pública, recebe aquele poder divino ilustre de sua justiça e de julgamento que o Senhor, pela sua palavra, derramou sobre os governantes.
Assim, no que diz respeito à obediência pública, ele deve ser objeto da mesma honra e reverência que recebe o melhor dos reis”.
Nesse sentido, Calvino passa a fazer referência a vários textos da Palavra de Deus (seções 26 e 27), alguns dos quais demonstram que os reis ímpios não estão fora do plano soberano de Deus, mas servem de braço vingador do próprio Deus, cumprindo os seus propósitos.
Calvino faz referência a passagens como Daniel 2.21, 37; 4.17, 20; 5.18-19; Jeremias 27.5-8 e 12, que ele classifica como um dos trechos mais impressionantes.
Calvino responde às objeções mais comuns a essa postura de obediência (seção 28) e passa a traçar algumas considerações para que consigamos exercitar paciência, quando submetidos à tirania (seções 29 e 30). Ele ensina três posturas: (1) devemos nos concentrar não na pessoa do que oprime, mas no ofício que aquela autoridade recebeu de Deus; (2) quando estamos sendo alvo de opressão, devemos nos lembrar de nossos próprios pecados e (3) devemos confiar que Deus é justo juiz e executará justiça no seu devido tempo, vingando o oprimido. No entanto, Calvino admite que, às vezes, Deus levanta corporativamente uma nação para controlar a tirania e o mal exercidos por outra (seções 30 e 31). Calvino insiste que há uma diferença entre a postura individual (o dever de submissão e obediência) e a corporativa (que pode ser contestatória, sempre baseada nos princípios divinos de justiça).
Calvino encerra a sua exposição (seção 32), traçando os limites da obediência e da submissão – os governantes não podem ordenar ações que sejam contrárias à Palavra de Deus. A resistência a essas ordens não pode ser classificada como insubmissão, e sim como demonstração de lealdade a Deus. Calvino mostra a resistência de Daniel (6.22) e ressalta como a submissão do povo, sob o governo de Jeroboão, que os levou à adoração de bezerros de ouro (1 Reis 12.28) é condenada em Oséias 5.11. Além de referir-se a Atos 5.29 (a declaração de Pedro indicando a importância de obedecer a Deus acima dos homens), Calvino menciona 1 Coríntios 7.23, mostrando que não devemos subjugar a liberdade recebida em Cristo às impiedades e desejos depravados dos homens.
Síntese do pensamento de Calvino
O pensamento de Calvino tem, portanto, uma visão elevada da importância dos governantes. Ele não “abre brechas” para focos de insubmissão ou de insurreição. Apresenta um aspecto muito ligado ao seu tempo – colocar o Estado como “protetor” da Igreja. (Essa posição seria depois mais bem examinada pelos teólogos, e as áreas de atuação, mais bem identificadas no desenvolvimento da tradição reformada.) Todavia, Calvino não deixa de classificar as esferas de cada um – Estado e Igreja, agindo em áreas e situações diferentes. Acima de tudo, ele coloca tanto governantes como governados responsáveis diante de Deus por suas ações ou omissões. Em nossos dias, a visão clara e precisa de Calvino a respeito desses diversos aspectos da regência terrena de nossas vidas deveria ser estudada, aplicada e defendida tanto pelos governantes como pelos governados.