domingo, 17 de novembro
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O deslumbramento poético de Isaac Watts

O compositor de hinos britânico do século XVII, Isaac Watts tem ocupado por bastante tempo um lugar importante na minha mente e em meu coração. Quando a minha devoção está fria e árida, em público ou em privado, eu me volto para Watts, que “concede-me as asas da fé” e me faz voltar para Jesus. Estou inclinado a pensar que se Watts, mais de duzentos anos depois de sua morte, pode ser o meio usado para despertar a alma de um jovem de dezessete anos de idade, pode haver uma grande parte do conjunto de sua obra sem a qual nenhuma geração de cristãos pode se dar ao luxo de viver sem.

Primeiro, precisamos da poesia de Watts em nossas vidas. O nosso mundo segue atrás daquilo que é mais atual, e à medida que nos desgastamos no processo, grandes poetas como Watts são colocados muitas vezes dentro de uma caixa na calçada para o rapaz do brechó vir buscar. Como poderia um poeta desajeitado que viveu e escreveu 300 anos atrás ser relevante hoje em dia? Nossa cultura pós-moderna, pós-cristã e pós-bíblica rejeitou quase totalmente o que foi chamado de poesia nos dias de Watts. Poucos negam o fato: a nossa é uma cultura pós-poesia.

Martinho Lutero insistia que, em uma reforma, “nós precisamos de poetas”. No entanto, os cristãos frequentemente aceitam o declínio da poesia sem lamentar. Será que a vida da sociedade não continuará muito bem sem poesia? A igreja não ficará muito bem sem ela? Não é como se a poesia contribuísse para algo vital. Você não pode comê-la. Assim pensou o Rei Jorge II da casa de Hanôver: “Eu odeio todos os poetas!”, ele declarou. Mas será que os cristãos não deveriam se manter de fora com deferência enquanto a cultura lança a poesia – a forma mais elevada – no círculo mais profundo do inferno?

O que aconteceu com a verdadeira poesia, e por que nós precisamos tão desesperadamente que Watts nos ajude a recuperá-la? Provavelmente o declínio foi alimentado por Walt Whitman, um homem com novas ideias que exigiam uma nova forma. “Por mim”, ele escreveu, “vozes proibidas, vozes de sexos e de desejo, vozes veladas e eu retiro o véu”.

Semelhantemente a Whitman, a poesia do Vers libre vai contra qualquer estrutura convencional de métrica ou rima, elementos líricos necessários para tornar a poesia cantável, como Watts entendia tão bem. O impulso de jogar-fora-as-algemas de Whitman criou uma mancha no gênero literário em que a forma poética foi abandonada em favor de rajadas irregulares de sentimento. O que muitas vezes permanece é prosa fragmentada. “Poesia”, assim concebida, fornece uma pseudo-forma de dizer coisas pessoais sobre si mesmo, coisas que não se diria no discurso direto – até Whitman retirar o véu.

Tal redefinição de poesia levou a uma proliferação de palavras e frases que parecem mais exibicionismo emotivo escrito por fanáticos terapêuticos que qualquer coisa parecida com poesia real. Certa vez ouvi John Stott ironizar sobre os americanos, “O problema com vocês americanos é que vocês estão constantemente engajados em um strip-tease espiritual”.

Abandonar forma por emoção crua não é exclusividade dos poetas. Grande parte dos artistas está bastante satisfeita consigo mesma por destruir formas obsoletas em favor de novas estruturas, mais adequadas à autoexpressão, a agora esfera primária da arte.

Não é coincidência que a poesia tenha começado a sua descida à “emocionalização gasosa” na América igualitária. Alexis de Tocqueville colocou a culpa nas restituições da democracia: “Nada é mais repugnante para a mente humana, em uma era de igualdade, que a ideia de sujeição a formas”. Conforme ele continuava, questiona-se se Tocqueville estava pensando em Whitman: “A democracia desvia a imaginação de tudo o que é exterior ao homem, e fixa-a apenas no homem. Cada cidadão está engajado por hábito na contemplação de um objeto extremamente insignificante, a saber, de si mesmo”.

Enquanto isso, Whitman estava trabalhando em seu poema biográfico, Canção de Mim Mesmo, o protótipo de louvor vazio – ao objeto errado. A poesia de louvor centrada no homem nasceu. Quão imensamente diferente de Watts, que escreveu a respeito de seu propósito poético:

Begin, my tongue, some heav’nly theme,
And speak some boundless thing.
The mighty works, or mightier Name
Of our eternal King.

 [Comece eu a entoar a canção celestial,
E falar de algo sem limites.
As grandes obras, ou Nome eternal
Do nosso Rei mais poderoso.]

Enquanto Watts fez de Cristo o tema de sua poesia, Canção de Mim Mesmo de Whitman definiu a argamassa da autorreferência poética. Grande parte de sua poesia é um material repugnante: “Acredito na carne e nos apetites”, ele murmurou em Canção de Mim Mesmo. “Divino eu sou por dentro e por fora… O cheiro dessas axilas é um perfume mais elevado do que a prece, esta cabeça é mais do que as igrejas, as bíblias, e todas as crenças… Nada, nem Deus, é maior… mais maravilhoso do que eu mesmo”. Deseja-se que Whitman tivesse parado, mas ele não o fez. Nem os poetas desde então.

Um resultado trágico de Whitman e seus imitadores é que temos perdido a capacidade de medir a qualidade da poesia, assim o verso livre prolifera sem censura enquanto todas as pessoas e seus periquitos e papagaios entram em contato com o poeta interior, incluindo jovens líderes de louvor bem-intencionados. Há pouco espaço para Watts em um mundo tão literário. O nosso mundo é sem leme, onde a poesia não tem limites, nem tela, nem paredes, nem arcos, nem tetos abobadados – e, portanto, nenhuma grandeza duradoura. Hoje se pode criar um verso e chamá-lo de poesia simplesmente ao fazer uma pesquisa no Google e, em seguida, combinar os resultados em linhas de absurdo. E, sim, isso tem um nome: flarf. A poesia flarf e seus derivados redefiniram o que a poesia é. Redefinir é o que a pós-modernidade faz de melhor, e o resultado é que o rico legado literário do passado está à beira de ser esquecido – e Watts com ele.

Se ele fosse vivo hoje, eu duvido que passaria por sua cabeça celebrar a aleatoriedade cibernética com sua caneta ou escrever um hino em celebração de si mesmo. Watts foi um poeta extraordinariamente talentoso, um que praticamente pensava em rima e métrica, e que escreveu a maior parte de sua poesia no primeiro esboço. Com essas habilidades, ele poderia ter sido um líder das letras na Grã-Bretanha neoclássica. A era de Watts foi chamada de a Era de Johnson, e o próprio Samuel Johnson classificou Watts entre os grandes autores e disse a seu respeito: “Seu ouvido era bem afinado, e sua dicção era elegante e abundante”.

Embora a Universidade de Edimburgo e a Universidade de Aberdeen tenham conferido a Watts a honra de Doutor em Divindade em 1728, muitos críticos literários consideraram a sua poesia muito explicitamente cristã para a aclamação literária. E foi assim propositalmente. Brilhante poeta que era, Watts evitou, como ele mesmo chamou, o “excesso de bagagem de forma intrincada, bem como de adorno poético”. Para ele, o objetivo era evangélico acima de tudo. Poesia, para Watts, era um meio para um fim maior, talvez uma exigência de toda grande poesia.

Assim, ele era assumidamente um poeta bíblico e teológico que concedeu a todos os cristãos um rico legado de adoração cantada, cheio de imaginação, habilidade, percepção teológica profunda, percepção sensorial vívida, alegria em meio ao sofrimento e desvantagens, e um sentimento contagiante de admiração diante da majestade de Deus. O nosso mundo precisa desesperadamente da poesia Watts.

Em segundo lugar, nós precisamos da voz de Watts em nossa adoração. A adoração cristã precisa desesperadamente de Watts. Recentemente estive em cultos com cristãos bem-intencionados que cantavam: “Sim, Senhor, sim, Senhor, sim, sim, Senhor”. Em outro culto, fiquei aturdido enquanto todas as pessoas ao meu redor erguiam suas mãos para o alto, acariciando o ar e cantando: “Basta pensar nisso, pense nisso, pense nisso”. Sem querer estar lá sendo o crítico, tentei observar ao meu redor para descobrir sobre o que eu deveria estar pensando. Tente o quanto quiser, eu encontrei pouco nas letras vazias que eles estavam murmurando que exigissem algum grau de pensamento sobre qualquer coisa.

Eu lamento um mundo sem Watts. Lamento uma igreja sem ele. Por que os cristãos desejariam se privar de uma rica paixão teológica habilmente adornada, como nos melhores hinos de Watts?

Em mais um culto, eu assisti outros cantarem “Quando a Maravilhosa Cruz Eu Contemplei” de Watts, mas eu fui pouco comovido pelas palavras. O mais perto que eu posso dizer, a razão pela qual Watts não me comoveu desta vez foi que havia muitos elementos na adoração que me impediam de tomar as palavras em meus lábios e em meu coração como minhas próprias e cantá-las. Os líderes de louvor balançando e toda a parafernália da banda de rock indie encheu o palco, e o volume foi intensificado tão alto que acabei sendo forçado a levar meu filho de sete anos de idade para fora do lugar, com as mãos apertadas sobre seus ouvidos. Eu assisti ao invés de cantar, porque neste tipo de entretenimento, pouco importa se a congregação participa do canto. Tudo bem se ela participar, é claro, mas isso não faz diferença para o que se ouve. As inflexões vocais emotivas e as contorções faciais comprimidas do líder de louvor bem-intencionado são difíceis para a maioria de nós imitar, e a repetição inesperada ocasional de versos ou a adição de letras improvisadas nos deixa cantando algo diferente do que o líder de louvor está cantando. Mas não é para se preocupar, ninguém o ouvirá de qualquer maneira.

Eu estava ao lado do meu filho mais velho em uma igreja em um galpão urbano em Seattle, Washington, as paredes pintadas de preto, várias luzes coloridas piscando ao redor do palco e da sala, o cinegrafista projetando na tela atrás da banda um enorme close-up do guitarrista deslizando os dedos para cima e para baixo pelo corpo de seu instrumento. Sob a influência agressiva da nova liturgia de boate, eu novamente me perguntei se eu deveria estar cantando algo. Havia dois mil jovens de dezenove a vinte e nove anos no salão, mas eu não conseguia ouvir ninguém cantando exceto o guitarrista, e ele estava gemendo de uma forma que eu me senti intensamente desconfortável ao tentar imitar. Virei-me para o meu filho, respirei fundo e gritei: “Nós deveríamos estar cantando?” Ele se virou e gritou de volta em meu ouvido: “Eu não sei”. Ninguém ao nosso redor foi minimamente perturbado pela nossa conversa.

Assim como a igreja medieval cortou fora a participação da congregação na adoração cantada do culto, hoje muitos líderes cristãos bem-intencionados têm reconstruído um culto cantado na qual a participação congregacional não importa. Nós nos sentamos ou ficamos de pé como nossos antepassados ??medievais fizeram e assistimos aos outros cantarem para nós. O culto se tornou um espetáculo, diversão, um meio de entretenimento para se conectar à cultura jovem da moda, e aparentemente, ao evangelho. Tal local produz uma reação no ouvinte – uma supercarregada com emoção crua – mas eu me pergunto se é uma reação emocional produzida por uma mente renovada pela profunda consideração das verdades objetivas do evangelho da graça, ou pela música em si.

Watts claramente entendia tudo isso. Ele, sem dúvida, aprendeu com os Salmos e, talvez, com o prefácio de João Calvino em seu comentário sobre os Salmos:

Sabemos, por experiência, que o canto tem grande força e vigor para mover e inflamar os corações dos homens a invocar e louvar a Deus com um zelo mais veemente e ardente. Cuidados devem sempre ser tomados para que a canção não seja rasa e nem frívola, mas que tenha profundidade e majestade (como disse Santo Agostinho); e, também, há uma grande diferença entre a música que se faz para entreter os homens na mesa e na sua casas, e os Salmos que são cantados na Igreja, na presença de Deus e seus anjos.

Em uma época de adoração dirigida pela diversão, uma apreciação recuperada de Watts como hinólogo é fundamental para corrigir as tendências “rasas” e “frívolas” da igreja pós-moderna, e talvez as sombrias e também. Toda geração biblicamente madura na igreja desejará contribuir com poesia e música para o culto da igreja – mas, ai de mim, as biblicamente imaturas também. Watts é um excelente modelo para orientar as novas gerações de poetas que presumem escrever letras para a adoração congregacional do povo de Deus.

Ao invés de deixar o seu filho ser guiado pelos transitórios apetites poéticos e musicais do momento, o pai de Watts ensinou-lhe quem deveria guiar sua pena:

In ancient times God’s worship did accord,
Not with tradition, but the written word;
Himself has told us how He’ll be adored.

Na antiguidade o culto a Deus não era ajustado,
Por tradição, mas pelo que está registrado;
Deus mesmo nos diz como quer ser adorado.

Watts entendeu a mensagem de seu pai: o que os cristãos cantam no culto deve ser guiado por aquilo que Deus revelou sobre como devemos cantar a tal Deus. Watts dominou o dom poético que lhe foi confiado e ganhou o título incontestável de “o Pai da Hinódia Inglesa”. Se hinos são poemas escritos em louvor e adoração a Deus, então isso faz de Watts o pai do louvor de fala inglesa a Deus. Todo cristão que se preocupa em viver uma vida de louvor desejará que a sua adoração cantada seja guiada pelo coração, mente e devoção poética de Watts. Por quê? Porque Watts foi consumido pelo deslumbramento diante de Jesus Cristo, o supremo objeto de adoração cristã.

Em terceiro lugar, precisamos do exemplo de Watts ao vivermos em nossa fragilidade. Outra razão importante para observar a vida e obra de Watts é que a sua vida é um modelo de paciência na aflição para todos os cristãos que sofrem. Os primeiros anos de sua vida foram de constante conflito político, incerteza e perseguição, durante os quais seu pai saía e voltava para a prisão por sua fé em Cristo. Todos os seus setenta e quatro anos foram de superação de grandes dificuldades. Watts esteve cronicamente doente durante a maior parte de sua vida adulta, sofrendo continuamente com febres e, muitas vezes, suportando desconforto físico intenso.

Além disso, Watts vivia com a inevitável falta de atratividade pessoal. Sem rodeios, ele não era um homem bonito. Isso é importante para americanos, que gastam 15 bilhões de dólares por ano com cirurgia plástica – cem vezes mais que todo o produto interno bruto anual de Uganda. Podemos ignorar o significado de sua feiura, assumindo que a sua sociedade não se preocupava com essas frivolidades. Mas ela se preocupava. Talvez, ao lado apenas da nossa própria, as pessoas do Iluminismo estavam profundamente preocupadas com a aparência física e adornos, incluindo perucas ridiculamente elaboradas, maquiagem masculina e culotes rosa de cetim – para homens. Em nossa cultura terapêutica, Watts seria um candidato à insegurança e a uma vida de baixa autoestima. Hoje o médico prescreveria aconselhamento, talvez um regime de drogas antidepressivas – e preenchimento de botox.

Além disso, Watts mantinha pontos de vista religiosos que eram o escárnio da elite em sua sociedade, e ele cometeu o erro social imperdoável de não frequentar as escolas certas. Como um não conformista, ele era indesejável em Oxford e Cambridge e foi forçado a participar de pequenas instituições, insignificantes, sob a censura e desprezo de uma sociedade refinada.

Precisamos de Watts por muitas razões. Precisamos de sua poesia para nos ajudar a recuperar uma compreensão e imaginação santificadas. Precisamos dele para ajudar a reformar a adoração e o canto em nossas igrejas hoje. E todos nós, que já nos sentimos marginalizados pela nossa fragilidade, falta de atratividade, falta da educação formal em escolas de elite, ou por qualquer outra limitação – real ou percebida – precisa de Watts. Todas as pessoas encontrarão uma fartura de enriquecimento e encorajamento ao aprender mais sobre o deslumbramento poético de Isaac Watts.


Autor: Douglas Bond

Douglas Bond é chefe do Departamento de Língua Inglesa no Colégio Covenant, em Tacoma, Washington, onde leciona literatura, redação e história. Faz palestras sobre literatura e história da igreja. Bond tem pós-graduação em educação inglesa pela Universidade Saint Martin e possui certificado em teologia pela Faculdade Teológica Moore, na Austrália. É presbítero e autor de vários livros.

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A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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