Diz-se que o liberalismo geralmente penetra sorrateiramente na igreja pela porta do evangelismo e da obra missionária. Acho que isso é verdade. É exatamente no ponto em que a igreja interage com o mundo que a igreja será tentada a solucionar os problemas que o mundo diz que devem ser solucionados.
Por exemplo, afrontados pela crítica que o Iluminismo fez ao cristianismo histórico, os protestantes liberais dos séculos XVIII e XIX desejavam um cristianismo que pudesse se adequar às novas ciências. Conforme J. Gresham Machen observou, “Que relação há entre o cristianismo e a cultura moderna; o cristianismo pode se sustentar numa era científica? Esse é o tipo de problema que os liberais modernos tentam solucionar” (Cristianismo e Liberalismo. São Paulo: Editora Os Puritanos). É como se o mundo dissesse: “Dê-nos um cristianismo que seja compatível com o liberalismo”, cristianismo este que os liberais sentem-se na obrigação de oferecer.
Em nossos dias, há muitos lugares onde as igrejas, em prol do evangelismo e das missões, correm o risco de se amoldarem às exigências do mundo. Uma área de especial importância é o interesse crescente em definir o evangelho e a missão da igreja em termos da justiça social. Cada vez mais, os evangélicos e os líderes missionais têm caracterizado o evangelho da justificação somente pela fé, a substituição penal e a salvação das almas como um “evangelho pequeno”. Os escritores têm falado sobre como outrora haviam interpretado o evangelho de maneira minimalista e individualista e, depois, descrevem, com entusiasmo, sua descoberta de um grande evangelho, um evangelho que trata das questões sistemáticas da injustiça social, da pobreza e do colapso ambiental.
Grandes Problemas?
Certo autor começou seu artigo sobre o assim chamado “pequeno evangelho” desta forma:
Nossos problemas não são pequenos. Uma olhada superficial num jornal nos lembrará de crises globais como a AIDS, as catástrofes locais de violência irracional, a falência da família, as ameaças ecológicas e as guerrinhas nas igrejas. Esses problemas resistem a soluções fáceis. Eles são robustos – poderosos, abrangentes e sistêmicos. Temos um evangelho suficientemente grande para esses problemas?
O grande evangelho não se ocupa em “gerenciar o pecado” nas trivialidades sem importância, conforme foi dito por outro autor, mas sim com esses problemas globais, poderosos e sistêmicos.
Se o perigo do liberalismo reside em construir a igreja, e sua mensagem gira em torno dos problemas que o mundo deseja resolver, não é difícil imaginar o quão problemática a área da justiça social poderia se tornar. Não há dúvidas que, na Bíblia, os crentes são chamados para cuidar do viajante que foi assaltado e deixado semimorto à beira do caminho. Por essa razão, de um modo maravilhoso, muitos cristãos têm se lançado em obras como orfanatos, reforma de bairros pobres, construção de moradias, defesa dos direitos humanos, prevenção e tratamento da AIDS, defesa dos direitos trabalhistas, instauração de processos penais contra traficantes de sexo, criminalização do aborto, abrandamento da dívida externa do terceiro mundo e muito mais. Essa obra de compaixão deve caracterizar o povo de Deus. A religião pura diante de Deus é “visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo” (Tg 1.27).
Entretanto, são esses os problemas primordiais que o evangelho e a igreja local, como instituição, são chamados a tratar? Ou eles apresentam tentações sutis para que as igrejas comecem a ver sua missão nos termos estabelecidos pelo mundo? “Dê-nos um cristianismo que resolva os problemas com os quais nos preocupamos, como doenças, trabalho escravo e pobreza”.
Eis quatro razões por que creio que a ênfase recente que tem sido dada à justiça social não indica a restauração de um tema bíblico perdido ou menosprezado, como alguns reivindicam, mas sim o primeiro passo na direção de um novo liberalismo, pelo menos, em muitas das exposições sistemáticas com as quais tenho me deparado.
Uma Visão Minimalista de Deus
Ter uma visão da mensagem ou da missão da igreja em termos da justiça social geralmente induz a uma visão minimalista de Deus. Essa visão toma as conseqüências da Queda – morte, doenças, pobreza e outras coisas – e as torna nos “grandes” problemas que precisam ser solucionados. Falando em termos gerais, não há dúvidas que, no final, Jesus desfará todos os efeitos da Queda. Entretanto, a Bíblia não utiliza 66 livros e vários anos da história da redenção apenas para nos dizer isso. Na verdade, toda a história de Israel é uma gigantesca lição de que uma nação pode ter todas as vantagens de um rei justo, de leis justas e de prosperidade econômica (veja 1 Reis 4.20-25), e essas coisas serem completamente insuficientes, pois o verdadeiro grande problema ainda está camuflado, encoberto aos olhos.
O verdadeiro grande problema não reside no que quer que seja que a humanidade tenha encontrado do lado de fora do Éden. Não reside nos efeitos da maldição. Em primeiro lugar, o problema é o que nos levou a sermos expulsos do Éden. O problema é o conflito importantíssimo entre a natureza daquele que lançou a maldição e o motivo que lhe demos para lançá-la – nossa decisão traiçoeira de nos tornarmos “iguais a Deus”. Em outras palavras, o problema é que Deus é extraordinariamente reto, e seus olhos não podem contemplar o pecado, e nós cometemos pecado. Ele é tão perfeitamente bom e justo que não pode deixar o culpado sem punição, e nós somos culpados. Ele é tão maravilhosamente santo que toda a terra se enche da sua glória, e nós estamos destituídos de sua glória. O verdadeiro grande problema é que, em nossos pecados, temos agido de maneira traiçoeira e odiosa contra o Deus triúno, que é infinitamente glorioso e belo, e a penalidade para isso é a condenação eterna. Dizer que o evangelho é “grande” porque ele resolve o problema da humanidade, em vez de resolver o problema divino, é simplesmente reduzir sua infinita glória divina a algo menos importante do que o sofrimento humano. Não tenho a intenção de subestimar o sofrimento humano, mas é certo que não podemos deixar de dar a devida importância para as transgressões contra a glória de Deus.
Isso deve ficar mais claro após considerarmos o segundo problema – o inferno.
Uma Visão Irrelevante do Inferno
A ênfase recente na justiça social parece corresponder a uma visão irrelevante do inferno. Em outras palavras, uma pessoa raramente ouve os escritores missionais falarem do inferno. Um livro recente sobre a missão de Deus, de aproximadamente 600 páginas, registra apenas uma indicação sobre o inferno. Vire a página indicada e você apenas descobrirá que essa palavra é simplesmente mencionada numa citação bíblica. Como um autor fala por quase 600 páginas sobre a “missão de Deus” sem discutir sobre o inferno? O inferno não é um problema assim tão grande? Afinal de contas, talvez, ninguém esteja indo para lá. Quando o inferno é mencionado por tais líderes, ele é apenas redefinido como aniquilação ou a mera ausência de Deus – o pecador recebendo aquilo que pediu, nada mais.
Isso é profundamente problemático. Em outra ocasião, argumentei, por um pouco mais de tempo, que uma das razões primordiais pela qual instituímos leis é proteger algo precioso. Há leis contra assassinatos por que a vida é preciosa. Há leis contra roubos porque a propriedade é preciosa. Nesse sentido, pode-se dizer que as leis funcionam como cercas ou sistemas de segurança. As pessoas fazem cercas e instalam sistemas de segurança quando querem guardar algo precioso. Além disso, as leis ameaçam os transgressores com uma penalidade, a fim de dar poder à reivindicação do valor da lei. Se a transgressão da lei não resultar em penalidade alguma, aprendemos que, seja o que for que essa lei esteja protegendo, não deve ser muito valioso. Mas se a penalidade pela transgressão for severa, aprendemos que o que ela protege é valioso.
Quão valiosa e digna é a glória de Deus? Quão precioso é aquele de quem a lei fala? Torne o inferno inferior e ironicamente você tornará Deus inferior. Torne inferior a ira de Deus contra o pecado e você tornará Deus inferior. Temo que muitos cristãos se esforcem de todas as maneiras para não chegar a essa conclusão, mas essa atitude sugere que estamos sendo muito mais influenciados pelo mundo do que gostaríamos de admitir. O Deus da Bíblia estabelece uma conexão direta entre o inferno e sua própria glória (Rm 9.20-24).
A Falta de Ênfase na Conversão
Quando Deus é pequeno e o inferno não é tão ruim, parece razoável que a doutrina da conversão se encontre sentada silenciosamente no banco, isso se não for completamente deixada de fora do time. É por essa razão que os escritores missionais falam sobre fazer o bem e convidar os descrentes para fazerem o bem conosco; como se sacrifícios e caridade fossem mais importantes do que um coração quebrantado e contrito. Tenho ouvido falar que os construtores que fazem casas para a Associação Habitat para a Humanidade estão fazendo a obra de Deus; como se boas ações sem fé não fossem pecado. E dizem que os cristãos que fazem missões têm muito mais a aprender com os outros do que a ensinar; como se a mensagem da igreja e as missões fossem apenas mais uma boa idéia, e não o resultado da entrada do Espírito Santo na história, inaugurando uma nova criação.
Pensando bem, isso pode soar como se o evangelho missional estivesse fundamentado numa visão mais positiva da humanidade. É quase como se os descrentes não estivessem realmente perdidos, cegos, escravizados e mortos em seus pecados. Eles são apenas mal orientados ou oprimidos. Não precisam do Espírito Santo para criá-los novamente; só precisam de alguém que seja bom para com eles e de um lugar seguro onde possam fazer perguntas honestas.
Em sua defesa, muitos líderes trabalham duro para chamar as pessoas para ambas as coisas: conversa e conversão; transformação estrutural e individual. Isso parece razoável, mas é o tipo de coisa que não vem ao caso. O Novo Testamento enfatiza essas duas coisas? Em lugar algum o alvo é a conversa, mas a conversão. E qualquer tipo de conversa sobre transformação estrutural é o resultado necessário da transformação individual no contexto da igreja. E vez após vez, os autores do Novo Testamento, desde João 17 até Efésios 3 e 4, enfatizam como esses indivíduos transformados se tornaram novas pessoas juntos. Eles são a manifestação da glória de Deus. Na verdade, o quanto a Bíblia fala sobre a transformação das estruturas sociais? Isso nos leva ao próximo ponto…
Um Enredo Bíblico Reducionista
A ênfase em coisas como justiça social e assistencialismo representa, na melhor das hipóteses, um modo estranhamente reducionista de ler o enredo bíblico. Tentativas ousadas vem sendo feitas com o intuito de vincular essas coisas à história e ao propósito de toda a Bíblia, como a obra, anteriormente mencionada, sobre a missão de Deus. No entanto, o que nos surpreende é o quão escasso é o material bíblico para descrever a missão da igreja em termos da justiça social. Todos nós temos vistos textos que comprovam isso em Jeremias 29, Mateus 25, Gálatas 6.10 e as leis da antiguidade conclamando os israelitas a cuidarem dos estrangeiros. Mas sobre o que é o livro de Levítico? Ou Isaías? Ou o evangelho de João? Ou Hebreus? Ou 1 e 2 de Pedro? Às vezes, pergunto se nós todos estamos lendo a mesma Bíblia.
Não tenho tempo para detalhar o enredo de toda a Bíblia (para essa finalidade, leia KOSTENBERGER, Andréas; O’BRIAN, Peter. Salvation to the Ends of the Earth – “Salvação até os Confins da Terra”), por essa razão, deixe-me oferecer o meu “texto de comprovação” – a história de Jesus sendo ungido em Betânia (Mc 14.3-9). Alguns estavam indignados com o fato de uma mulher derramar perfume nos pés de Jesus, pois o bálsamo “poderia ser vendido por mais de trezentos denários” e dado aos pobres. Mas Jesus, ao contrário, elogiou seu ato extravagante de adoração. Sendo assim, o cuidado com os pobres não tem que estar em oposição à adoração. Não há dúvidas que uma pessoa pode adorar por meio do cuidado com os pobres. Mas exatamente nesse texto, Jesus coloca essas coisas em oposição, e a adoração vence.
Nessa passagem, aprendemos que a adoração à inestimável glória de Deus constitui a missão primordial da igreja. Além disso, isso significa que todas as formas de atividade social devem servir aos propósitos do evangelismo e discipulado, visto que é o evangelismo que produz adoradores. Isso significa que um culto feito pela causa evangelística é hipocrisia, como até mesmo John Stott sugeriu em seu livro Christian Mission in the Modern World (“A Missão Cristã no Mundo Moderno”)? Se for feito com ódio no coração ou indiferença, certamente é. Mas e se for feito por amor às pessoas? Como isso poderia ser hipocrisia, engodo ou desvio (nos termos de Sttot)? Poderíamos acusar Jesus de engodo e desvio por realizar milagres, a fim de demonstrar que tinha poder para perdoar pecados (ex. Mc 2.10-11)?
Novamente, nossa preocupação em tudo isso é que as igrejas evangélicas têm permitido, de forma crescente, que o mundo defina quais problemas precisam ser resolvidos – que tipo de salvação precisam ganhar. Não é preciso ter os olhos da fé; sobrenaturais, nascidos de novo e recriados, para enxergar que a morte é um problema, ou a AIDS, a pobreza, o tráfico sexual e todas as outras conseqüências horríveis da Queda. Os olhos da carne podem ver esses problemas muito bem, e é precisamente por essa razão que essas coisas têm se tornado os projetos preferidos das estrelas de Hollywood e das organizações governamentais mundiais. E esses são bons projetos para que os cristãos se encarreguem de fazer junto com o mundo. Por outro lado, é preciso ter os olhos da fé; sobrenaturais, nascidos de novo e recriados, para enxergar o que significa estar destituído da glória de Deus e por que isso é mais importante do que a morte, e por que proclamar o evangelho é o único mandato para a igreja e sua prioridade suprema.
Os cristãos devem cuidar dos pobres e buscar a justiça em sua cidade por uma série de razões. Na ordem de prioridades, o que os cristãos devem fazer é: (1) providenciar uma ocasião para compartilhar o evangelho de Cristo para a salvação dos pecadores, (2) providenciar um retrato da generosidade e justiça de Deus, ainda que extraordinariamente imperfeito, (3) expressar a compaixão que Deus colocou em nosso coração para aqueles que passam por sofrimento. Se fizéssemos isso, estaríamos alimentando todas as bocas e nivelando todas desigualdades injustas do planeta, e, na melhor das hipóteses, teríamos a mesma restauração que Israel teve nos dias do rei Salomão, quando todo o Israel habitava em segurança, “cada um debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira” (1 Re 4.25). Mas quanto tempo isso durou? Não havia mais nenhum grande problema a ser resolvido? O povo de Deus não tinha uma tarefa mais importante a cumprir?
Na verdade, isso não seria simplesmente um retorno ao Éden? É isso o que estamos planejando?
Conclusão
Dizer que o liberalismo entra em cena sorrateiramente por meio do evangelismo é dizer que outros pontos da doutrina de uma pessoa podem até ser ortodoxos. Por exemplo, o deus da igreja missional pode parecer grande. Karl Barth, cujos escritos são reputados como a nascente do pensamento missional, inicia o seu capítulo sobre a veracidade de Deus, intitulado Os Dogmas da Igreja, com duas palavras importantes: “Deus é”. E toda a teologia que ele continua explicando depois disso não consegue dizer mais nada além de “Deus é”. O deus de Barth parece ser grande. No entanto, Barth, assim como muitos outros pensadores missionais, reformula o inferno de tal forma que não deixa claro se alguém está indo para lá. Falem o que quiserem sobre o “Grande Deus” dos neo-ortodoxos. Falem o quanto quiserem sobre a trindade, como muitos autores missionais o fazem. Todavia, qualquer evangelho missional que considera que as causas e as conseqüências da Queda possuem o mesmo peso, na melhor das hipóteses, criará uma contradição interna em todo o seu sistema.
O grande evangelho é aquele que trata do grande problema que existe entre o grande Deus e os seres humanos pecaminosos. Diga que o nosso grande problema é algo relativo à experiência humana e, no final, você acabará com um evangelho diferente, não importa o que mais você venha a dizer sobre Deus.
Traduzido por: Pr. Waléria Coicev
Do original em inglês: Is the God of the Missional Gospel Too Small?