O profeta no Israel do Antigo Testamento era um homem solitário. Ele era um indivíduo separado por Deus para uma tarefa penosa. Ele servia como uma espécie de promotor público, apontado pelo Supremo Juiz do céu e da terra para mover uma ação judicial contra aqueles que pecaram contra o tribunal.
O profeta era um mensageiro, um arauto do Rei cósmico. Seus pronunciamentos eram introduzidos pelas palavras “Assim diz o Senhor”. A vida dos profetas era turbulenta e muitas vezes curta; o registro da vida dos profetas é similar a história de mártires.
Quando é dito sobre Jesus que ele “era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer” (Isaías 53.3), fica claro que ele fazia parte de uma longa lista de homens que Deus havia apontado para tal sofrimento. A maldição do profeta era a solidão; sua casa era, muita vezes, uma caverna. O deserto era seu local tradicional de encontro com Deus. A nudez era, algumas vezes, seu guarda-roupa, uma berlinda de madeira, sua gravata. Suas canções eram compostas com lágrimas.
Assim era Isaías ben Amoz. No rol de heróis do Antigo Testamento, Isaías se destaca em realce sem igual. Ele foi um profeta de profetas, um líder de líderes.
O que distinguia o profeta Isaías de todos os outros homens era o caráter sagrado do seu chamado. Seu chamado não veio de homens. Ele não poderia se candidatar para o trabalho. Ele precisava ser selecionado – escolhido direta e imediatamente por Deus. O chamado não poderia ser recusado, e o trabalho era vitalício.
O registro do chamado de Isaías é talvez o mais dramático de todos chamados desse tipo no Antigo Testamento. Ele aconteceu no ano da morte do rei Uzias.
Uzias morreu no século VIII a.C. Ele foi um dos melhores reis que governou sobre Judá. Ele não foi um rei como Davi, mas também não era conhecido pela corrupção que marcava os reis do norte, tal como Acabe. Uzias se tornou rei aos dezesseis e reinou por 42 anos.
A Bíblia diz que Uzias começou seu reinado de forma piedosa, fazendo “o que era reto perante o SENHOR” (2 Cr nicas 26.4). Ele buscou a Deus, e Deus o abençoou. Pela maior parte de sua carreira, Uzias foi reconhecido como um grande e amado rei.
A história de Uzias termina com um tom de tristeza. Sua carreira foi manchada pelo pecado do orgulho, cometido após ele ter adquirido grande riqueza e poder. Ele audaciosamente entrou no templo e arrogantemente reivindicou o direito que Deus havia dado apenas aos sacerdotes. Quando os sacerdotes do templo tentaram pará-lo, Uzias ficou irado. Enquanto ainda gritava em fúria contra eles, surgiu lepra em sua testa, e ele viveu o resto de sua vida em isolamento.
Quando Uzias morreu, apesar da vergonha de seus últimos anos, houve um período de luto nacional. Isaías foi ao templo, presumivelmente procurando consolo. Ele obteve muito além do que esperava.
No ano da morte do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as abas de suas vestes enchiam o templo. (Isaías 6.1)
Quando Isaías veio ao templo, havia uma crise de soberania na terra. O rei Uzias estava morto. Os olhos de Isaías foram abertos para ver o verdadeiro Rei da nação. Ele viu a Deus, o Soberano, sentado em um trono.
Os seres humanos não têm permissão para ver a face de Deus. As Escrituras advertem que nenhuma pessoa pode ver a Deus e viver. Lembramo-nos do pedido de Moisés em Êxodo 33, quando ele subiu ao monte santo de Deus. Moisés fora uma testemunha ocular de milagres surpreendentes, mas não estava satisfeito. Queria mais. Ele rogou a Deus no monte: “Deixe-me ver sua face. Mostra-me sua glória”. O pedido foi negado, mas o Senhor permitiu que Moisés visse suas costas enquanto a glória de Deus passava por ele.
Quando Moisés retornou do monte depois de ter visto as costas do Senhor, seu rosto brilhava. As pessoas ficaram apavoradas e se afastavam dele em temor. Então Moisés colocou um véu sobre o rosto. Se as pessoas ficaram aterrorizadas diante da visão da glória refletida das costas de Deus, como alguém conseguiria contemplar sua santa face diretamente?
No entanto, o objetivo final de todo cristão é ver aquilo que foi negado a Moisés. Queremos ver a Deus face a face. Essa esperança se torna mais do que uma esperança para o cristão – ela se torna uma promessa. O apóstolo João escreveu: “Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é” (1 João 3.2).
Aqui está a promessa de Deus: nós o veremos como ele é. Teólogos chamam essa expectativa de “visão beatífica”. Veremos a Deus como ele é, em sua pura essência divina.
Neste momento, é impossível vermos a Deus em sua pura essência. Antes que isso aconteça, precisamos estar purificados. Jesus prometeu a visão de Deus somente a um grupo distinto: “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus” (Mateus 5.8). Nenhum de nós é puro de coração neste mundo. É a nossa impureza que nos impede de ver a Deus.
Em sua visão, Isaías avistou serafins por cima de Deus enquanto este se assentava entronizado no templo. O versículo três é o ponto crucial da visão de Isaías. É a canção dos serafins que revela a impressionante mensagem deste texto: “Santo, santo, santo é o SENHOR dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória” (Isaías 6.3). A canção é a repetição de uma única palavra: santo. A importância da repetição da palavra santo pode passar facilmente despercebida. É um recurso literário encontrado na literatura hebraica, principalmente na poesia. É um tipo de ênfase.
Em poucas ocasiões a Bíblia repete algo três vezes seguidas. Mencionar algo três vezes seguidas é elevá-lo ao grau superlativo. Por exemplo, o terrível julgamento de Deus é declarado assim no livro de Apocalipse: “Ai! Ai! Ai dos que moram na terra” (Apocalipse 8.13).
Apenas uma vez na Sagrada Escritura um atributo de Deus é elevado ao terceiro grau. Somente uma característica de Deus é mencionada três vezes seguidas. A Bíblia diz que Deus é santo, santo, santo. Ele não é meramente “santo”, ou mesmo “santo, santo”. Ele é “santo, santo, santo”.
Então, disse eu: ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o SENHOR dos Exércitos! (Isaías 6.5)
Ao som da voz dos serafins, as portas do templo tremeram. O material inerte do batente da porta teve o bom senso de se deixar estremecer pela presença de Deus. Mas não eram apenas as portas que tremiam. O que mais tremia era o corpo de Isaías. Quando viu ao Deus vivo, ele clamou: “Ai de mim!”.
O clamor de Isaías soa estranho ao ouvido moderno. É raro ouvirmos alguém usar a expressão “ai” hoje em dia. Já que essa expressão é antiga e arcaica, alguns tradutores modernos preferiram substituí-la por outra expressão. Esse é um erro sério. A expressão “ai” é um termo bíblico crucial que não podemos nos dar o luxo de ignorar.
A força total da exclamação de Isaías deve ser vista no contexto de um tipo especial de discurso encontrado na Bíblia. Quando os profetas pronunciavam suas mensagens, a forma mais comum era o oráculo. Oráculos eram pronunciamentos de Deus, que podiam ser boas ou más notícias. Os oráculos positivos começavam com a palavra “bem-aventurado”. Jesus usou essa fórmula nas Bem-aventuranças. Seus ouvintes compreendiam que ele usava a fórmula do profeta. Esses oráculos traziam boas novas.
Jesus também usou a forma negativa do oráculo. Enquanto denunciava os fariseus, ele pronunciou o julgamento de Deus sobre suas cabeças. Na boca do profeta, o “ai” é um anuncio de condenação.
O uso de Isaías do “ai” foi extraordinário. Quando viu o Senhor, ele pronunciou o julgamento de Deus sobre si mesmo. “Ai de mim!”, ele clamou, invocando a maldição de Deus sobre sua própria cabeça. Uma coisa é o profeta amaldiçoar alguém em nome de Deus; outra totalmente diferente é o profeta proclamar a maldição sobre si mesmo.
Imediatamente após a maldição de condenação, Isaías clamou: “Estou perdido”. Eu prefiro a tradução mais antiga, que diz: “Vou perecendo”. Perecer significa acabar-se. Um súbito vislumbre de um Deus santo, e toda a autoestima de Isaías foi abalada. Enquanto podia se comparar com outros mortais, ele era capaz de manter uma opinião elevada sobre seu próprio caráter. No instante que ele se mediu diante do padrão último, ele foi destruído – moralmente e espiritualmente aniquilado.
A súbita consciência de ruína estava ligada à boca de Isaías. Ele clamou: “sou homem de lábios impuros”. Poderíamos ter esperado que ele dissesse “sou homem de hábitos impuros” ou “sou homem de pensamentos impuros”. Em vez disso, ele chamou a atenção imediatamente para a sua boca. De fato, disse: “Tenho uma boca suja”. Por que esse ênfase na boca?
Talvez uma pista para a atitude de Isaías possa ser encontrada nas palavras de Jesus, quando afirmou que não é o que entra pela boca que contamina o homem, mas o que sai. Ou poderíamos examinar o discurso de Tiago, irmão de Jesus, o qual escreveu que a língua “é mal incontido, carregado de veneno mortífero” (Tiago 3.8).
Esta foi a percepção de Isaías. Ele reconheceu que não estava só em seu dilema quando exclamou: “sou homem de lábios impuros, habito no meio de um povo de impuros lábios” (Isaías 6.5). Ele entendeu que toda a nação estava infectada de pessoas de boca suja. Instantaneamente, Isaías teve uma compreensão nova e radical do pecado. Viu como este contaminava a si mesmo e a todos.
Temos sorte em Deus não aparecer a nós da mesma forma que o fez com Isaías. Deus normalmente revela a nossa pecaminosidade aos poucos. Mas mostrou a Isaías toda sua corrupção de uma vez. Não é de se admirar que Isaías estava perecendo.
Isaías explicou o ocorrido desta forma: “meus olhos viram o Rei, o SENHOR dos Exércitos!” (Isaías 6.5). Ele viu a santidade de Deus. Pela primeira vez em sua vida, Isaías realmente entendeu quem Deus era. No mesmo instante, também entendeu, pela primeira vez, quem ele realmente era.
Então, um dos serafins voou para mim, trazendo na mão uma brasa viva, que tirara do altar com uma tenaz; com a brasa tocou a minha boca e disse: Eis que ela tocou os teus lábios; a tua iniquidade foi tirada, e perdoado, o teu pecado. (Isaías 6.6-7)
Isaías estava moralmente nu e sozinho diante de Deus. Ao contrário do que aconteceu com Adão, Isaías não possuía nenhuma Eva para confortá-lo, nenhuma folha de figueira para ocultá-lo. Ele era plena angústia moral, daquelas que dilaceram o coração de um homem e rasgam sua alma em pedaços.
Mas o santo Deus é também um Deus de graça. Ele se recusou permitir que seu servo continuasse sem conforto. Tomou medidas imediatas para limpar aquele homem e restaurar a sua alma. Comandou um dos serafins para entrar em ação. A criatura angélica se moveu rapidamente, voando para o altar com uma tenaz. Do fogo ardente, o serafim tomou uma brasa viva, tão quente que nem o anjo poderia tocá-la, e voou até Isaías.
O serafim pressionou a brasa nos lábios do profeta e os queimou. O forte cheiro da carne queimada encheu as narinas de Isaías, mas tal sensação foi entorpecida pela dor excruciante. Essa foi uma misericórdia severa, um doloroso ato de purificação. A ferida de Isaías foi cauterizada, a sujeira em sua boca, queimada. Ele fora refinado pelo fogo sagrado.
Neste ato divino de purificação, Isaías experimentou um perdão que foi além da purificação dos seus lábios. Ele foi totalmente purificado, completamente perdoado, mas não sem a terrível dor do arrependimento. Foi além da graça barata e de um leviano “sinto muito”. Ele estava enlutado pelo seu pecado, tomado por tristeza moral, e Deus enviou um anjo para curá-lo. Seu pecado foi retirado. Sua carne queimada por um breve segundo trouxe uma cura que se estenderia até a eternidade. Em um momento, o profeta desintegrado estava inteiro novamente. Sua boca havia sido purgada. Ele estava limpo.
Depois disto, ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Disse eu: eis-me aqui, envia-me a mim. (Isaías 6.8)
A visão de Isaías toma então uma nova dimensão. Até este ponto, ele havia visto a glória de Deus, ouvido a canção dos serafins e sentido a brasa viva em seus lábios. Agora, pela primeira vez, ele ouve a voz de Deus. De repente, os anjos ficaram em silêncio e a voz ressoou pelo templo; a voz que a Bíblia descreve em outros lugares como o som de muitas águas.
Há um padrão aqui, o qual se repete pela história. Deus aparece; as pessoas estremecem em terror. Deus perdoa e cura; Deus envia. Quando Deus perguntou “a quem enviarei?”, Isaías compreendeu o peso de tais palavras. Ser “enviado” é ser um emissário de Deus. A palavra “apóstolo” significa “alguém que é enviado”. O apóstolo do Novo Testamento é o profeta do Antigo Testamento. Deus estava buscando um voluntário para ingressar no ofício solitário e extenuante de profeta.
Repare na resposta de Isaías: “eis-me aqui, envia-me a mim”. Isaías não estava apenas indicando sua localização. Com essa resposta, Isaías estava dando um passo à frente como voluntário. Sua resposta foi: “Eu irei. Não procure mais. Envia-me.”
Todos pregadores são vulneráveis à acusação de hipocrisia. Na verdade, quanto mais fiéis à Palavra de Deus os pregadores forem, mais passíveis de tal acusação serão. Por quê? Porque quanto mais as pessoas forem fiéis à Palavra de Deus, mais elevada será a mensagem que pregarão. Quanto mais elevada a mensagem, mais distante estarão de obedecê-la.
Eu tremo quando falo nas igrejas sobre a santidade de Deus. Posso antecipar as respostas das pessoas. Elas deixam o santuário convencidas de que estiveram na presença de um homem santo. Porque me ouviram pregar sobre santidade, elas assumem que devo ser tão santo quanto a mensagem que prego. É aí que clamo “ai de mim”!
É perigoso assumir que porque uma pessoa é atraída a estudar a santidade, então ela é uma pessoa santa. Há aqui uma ironia. Estou certo de que a razão pela qual tenho um desejo profundo de aprender sobre a santidade de Deus é precisamente porque não sou santo. Sou um homem profano. Mas provei o suficiente da majestade de Deus para querer mais. Sei o que significa ser perdoado e ser enviado em uma missão. Minha alma clama por mais.
Fonte: trecho do livro “Deus é Santo!“, de R. C. Sproul.