Tendo estabelecido Jesus como o fundamento, essência e alvo das virtudes, façamos agora um exercício de literatura comparada, relacionando o fruto do Espírito com as demais listas de virtudes no NT e depois com as listas pagãs e judaicas. No restante do NT, portanto, temos as seguintes listas de virtudes (com o grego transliterado entre parênteses, caso o leitor queira fazer outras comparações):
- Mateus 5.5-10: manso (praus), justiça (dikaiosynē), ser misericordioso (eleēmōn), pacificador (eirēnopoios).
- Romanos 12.9-13; 14.17; 15.13: amor (agapē), espiritualmente entusiasmado (zeō), alegria/alegre (chara, chairō), esperança (elpis), paciente (hypomenō), fiel (proskartereō), hospitalidade (philoxenia), retidão (dikaiosynē), paz (eirēnē).
- 1 Coríntios 13.4-7: amor (agapē), paciente (makrothymeō), bondoso (chrēsteuomai), esperança (elpizō), perseverança (hypomenō), alegria (synchairō), crença (pisteuō), suportar (stegō).
- 2 Coríntios 6.6-10: pureza (hagnotēs), compreensão/conhecimento (gnōsis), paciência (makrotimia), bondade (chrēstotēs), amor (agapē), verdadeiro (alētheia), retidão (dikaiosynē), verdadeiro (alēthēs), alegria (chairō).
- Gálatas 5.22-23: amor (agapē), alegria (chara), paz (eirēnē), paciência (makrothymia), bondade (chrēstotēs), benignidade (agathōsynē), fidelidade (pistis), gentileza (prautēs), autocontrole (enkrateia).
- Efésios 4.2-3; 4.32–5.2; 5.9: humilde (tapeinophrosynē), ser gentil (prautēs), paciente (makrotimia), tolerante (anechomai), amor (agapē), paz (eirēnē), bondoso (chrēstos), compassivo (eusplanchnos), perdoador (charizomai), bondade (agathōsynē), retidão (dikaiosynē), verdade (alētheia).
- Colossenses 3.12-15: compaixão (splanchnon), bondade (chrēstotēs), humildade (tapeinophrosynē), gentileza (prautēs), paciência (makrotimia), suportar uns aos outros (anechomai), perdoar (charizomai), amor (agapē), paz (eirēnē).
- 1 Timóteo 3.2-4, 8-12; 4.12; 6.6, 11, 18: acima de qualquer reprovação (anepilēmptos), temperante (nēphalios), autocontrolado (sōphrōn), respeitável (kosmios), hospitaleiro (philoxenos), capaz de ensinar (didaktikos), gentil (epieikēs), digno de respeito (semnotēs, semnos), fé/confiável (pistis, pistos), amor (agapē), pureza (hagneia), retidão (dikaiosynē), piedade (eusebeia), resistência (hypomonē), gentileza (praupathia), bom (agathoergeō), generoso (eumetadotos);
- 2 Timóteo 2.22-24; 3.10: justiça (dikaiosynē), fé (pistis), amor (agapē), paz (eirēnē), bondoso (ēpios), capaz de ensinar (didaktikos), paciência (makrothymia), perseverança (hypomonē).
- Tito 1.8; 2.2-7, 12; 3.1-2: hospitaleiro (philoxenos), ama o que é bom (philagathos), autocontrolado (sōphrōn), reto (dikaios), santo (hosios), disciplinado (enkratēs), temperante (nēphalios), digno de respeito (semnos), são na fé (pistis), amor (agapē), resistência (hypomonē), reverente (hieroprepēs), puro (hagnos), gentil (agathos), piedoso (eusebōs), obediente (peitharcheō), pacífico (amachos), atencioso (epieikēs), gentil (prautēs).
- Hebreus 6.11-12: diligência (spoudē), fé (pistis), paciência (makrotimia).
- Tiago 3.13, 17-18: humildade (prautēs), puro (hagnos), pacífico/amante da paz (eirēnē, eirēnikos), atencioso (epieikēs), submisso (eupeithēs), misericórdia (eleos), imparcial (adiakritos), sincero (anypokritos), retidão (dikaiosynē).
- 1 Pedro 3.8: mesmo pensamento (homophrōn), simpático (sympathēs), amoroso (agapē), compassivo (eusplanchnos), humilde (tapeinophrōn).
- 2 Pedro 1.5-7: fé (pistis), bondade (aretē), conhecimento (gnōsis), autocontrole (enkrateia), perseverança (hypomonē), piedade (eusebeia), afeição mútua (philadelphia), amor (agapē).
- Judas 2: misericórdia (eleos), paz (eirēnē), amor (agapē).
Das 46 virtudes diferentes citadas, nove são facetas do fruto do Espírito (ou seja, amor, alegria etc.), e muitas outras são sinônimas ou estão intimamente associadas a elas (ou seja, exploram o domínio semântico de uma das facetas do fruto do Espírito).[1] Isso, contudo, ainda deixa 16 virtudes não contabilizadas.[2]
O maior subconjunto das virtudes não explicadas diz respeito à integridade moral geral, honestidade e retidão: retidão (dikaiosynē), santo (hosios), pureza (hagnotēs), ser sincero (anypokritos), verdadeiro (alētheia), acima de qualquer reprovação (anepilēmptos) e imparcial (adiakritos). Dado o valor reiterado dessas qualidades na Bíblia, é interessante que Gálatas 5.22-23 não as mencione. Isso pode ter duas explicações: em primeiro lugar, a retidão é uma qualidade abrangente de integridade pessoal, ao passo que as nove características do fruto do Espírito seriam aspectos específicos que, juntos, resultam em pureza espiritual. Em segundo lugar, há indícios de que a justiça está, ao menos em parte, inclusa no sentido bíblico de paz/shalom.[3]
Três atributos estão associados a posições específicas ocupadas pelo crente na comunidade: ter aptidão para ensinar (didaktikos, relacionada ao supervisor em 1 Tm 3.2), ser respeitável (kosmios) e digno de respeito (semnos).[4] Por estarem mais ligados a papéis sociais específicos, esses atributos não serão considerados na análise das virtudes gerais, e isso explica o motivo de não serem listadas no fruto do Espírito, que são características que todo cristão deve ter.
Três características se referem mais a ações do que a traços de personalidade e, por isso, podem ser excluídas da lista. A obediência (peitharcheō) aparece quatro vezes em sua forma verbal — duas vezes relacionada a Deus e ao Espírito Santo (At 5.29, 32), uma vez às autoridades (Tt 3.1) e uma vez à aceitação de conselhos humanos (At 27.21). A diligência (spoudē) diz respeito ao zelo e esforço, como em 2 Pedro 1.5, que orienta a “acrescentar à sua fé a bondade com todo o empenho [spoudēn]”. Já o perdão (charizomai) é liberar alguém da culpa ou da dívida causada por uma ofensa, escolhendo não revidar, não alimentar o ressentimento e, sempre que possível, restaurar o relacionamento (2 Co 2.10).
A esperança
Restam agora apenas duas virtudes que não foram relacionadas ao fruto do Espírito: humildade e esperança. A humildade está ligada a cada faceta do fruto do Espírito, especialmente como sinônimo de mansidão, como veremos ao analisarmos essa virtude na Parte 2 deste livro.
A relação da esperança com o fruto do Espírito merece um olhar mais aproximado. Na psicologia, a esperança pode ser definida como “um estado antecipatório que resulta da percepção da mera possibilidade de um resultado desejado”,[5] ou “uma emoção orientada para o futuro que requer uma expectativa total ou parcial do que está por vir”.[6] No que diz respeito à esperança cristã, a possibilidade de um resultado desejado é sustentada pela fé, como confirmado por Hebreus 11.1: “Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem.”
Consequentemente, N. T. Wright oferece o seguinte resumo: “A esperança é a confiança estabelecida e inabalável de que este Deus não nos deixará nem nos abandonará, mas sempre terá mais reservado para nós do que poderíamos pedir ou pensar.”[7] A esperança é, portanto, um aspecto central do caráter cristão e está intimamente ligada a várias facetas do fruto do Espírito.
Esperança, alegria e paz
“Alegrai-vos na esperança, sede pacientes na tribulação, perseverai na oração” (Rm 12.12, A21). Romanos 12.11-13 é introduzido com um aviso geral contra a falta de zelo, seguido por sete exortações positivas. A terceira (breve) exortação relaciona alegria e esperança. Para Paulo, os crentes se alegram em sua esperança de salvação (1Ts 5.8), sua herança gloriosa (Ef 1.18; Cl 1.5) e sua participação na glória de Deus (Rm 5.2; Cl 1.27)[8] — todas essas expressões são escatológicas, ou seja, estão ligadas à nossa esperança.
“Que o Deus da esperança vos encha de toda alegria e paz na vossa fé, para que transbordeis na esperança pelo poder do Espírito Santo” (Rm 15.13, A21). Paulo conclui a longa seção em que lida com os “fracos” e os “fortes” nas comunidades cristãs romanas (14.1–15.13) invocando a bênção de Deus sobre todos eles. O apóstolo se refere a Deus como “o Deus da esperança”, uma descrição única e que não aparece em outras partes do Novo Testamento ou da Septuaginta. Nessa passagem, Paulo ora para que os crentes “transbordem de esperança”, e, ao chamar Deus de o “Deus da esperança”, refere-se provavelmente a Deus como aquele que inspira esperança em seu povo. Esse transbordar de esperança ocorre “pelo poder do Espírito Santo”. Paulo sugere que, se Deus abençoar os que nele confiam com “toda alegria e paz”, isso resultará em uma esperança abundante, produzida “pelo poder do Espírito Santo”.[9]
Assim, essas duas facetas do fruto do Espírito — alegria e paz — estão totalmente ligadas com a esperança. A alegria só pode ocorrer dentro da atmosfera da esperança (Rm 12.12), e, quando o Deus da esperança nos enche de alegria e paz, o resultado é uma abundante esperança (Rm 15.13). A esperança é, portanto, condição e resultado da alegria e da paz.
Esperança e fé (fidelidade)
A palavra para fé é a mesma para fidelidade, e, quando analisarmos esse aspecto do fruto mais adiante, preferiremos a tradução “fidelidade”, ainda que seja impossível separar uma da outra. No seu comentário sobre a epístola aos Gálatas, Jerônimo afirma a esse respeito: “Entre os ‘frutos do Espírito’, a fé ocupa o sétimo e sagrado lugar, embora seja, em outros lugares, um dos três — ‘fé, esperança e amor’”. Então, continua: “Nem é notável que a esperança não seja inclusa neste catálogo [isto é, o fruto do Espírito], uma vez que o objeto da esperança já está incluso como parte da fé.”[10]
Esperança, perseverança e domínio próprio
“Recordando-nos, diante do nosso Deus e Pai, da operosidade da vossa fé, da abnegação do vosso amor e da firmeza da vossa esperança em nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts 1.3). Ainda que não esteja explícita no texto, a esperança está ligada ao domínio próprio especialmente no contexto de “muita tribulação” (1Ts 1.6). A esperança firme habilita os crentes a suportarem o sofrimento com domínio próprio.
Esperança e paciência
“Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos” (Rm 8.25). A expressão “com paciência” traduz hypomonēs, que denota não uma espera passiva até que o que se espera chegue — “matando o tempo”, por assim dizer —, e sim uma árdua manutenção da esperança e a operação do bem apesar do sofrimento e das dificuldades (veja 2.7; 5.3-4; 15.4-5; 2Co 1.6; 6.4; Cl 1.11; 1Ts 1.3-4; 1Tm 6.11; 2Tm 3.10; Tt 2.2).[11] A paciência também aparece sempre junto da esperança e, especialmente em Romanos 8.25, como um modo da espera genuína.
Esperança e amor
E não somente isto, mas também nos gloriamos nas próprias tribulações, sabendo que a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança. Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado. (Rm 5.3-5)
Nessa passagem, Deus fornece garantia contínua de seu amor para sustentar a esperança em meio às provações (cf. 2Co 5.14-15).[12] Na ética bíblica, amor e esperança também sempre estão juntos.
Dado o contexto escatológico do fruto do Espírito que vimos no capítulo 3, não é surpresa que a esperança não seja nominalmente listada em Gálatas 5.22-23, pois todo o fruto do Espírito é orientado para o futuro (quando teremos essas virtudes de forma perfeita).
Listas de virtude no Novo Testamento: conclusão
A conclusão da comparação de todas as listas de virtudes no NT é que nenhuma lista delas é exaustiva e jamais teve a pretensão de sê-lo. Os autores bíblicos intencionalmente selecionam virtudes que julgam (sob o Espírito) as mais pertinentes para seus leitores originais (público-alvo). Além disso, vimos que todas as virtudes estão relacionadas e que, portanto, toda e qualquer virtude genuína no NT é fruto do Espírito na vida do(s) pecador(es) redimido(s).
O artigo acima é um trecho retirado com permissão e adaptado do livro O fruto do Espírito, de Willian Orlandi, em breve pela Editora Fiel.
[1] Amor: afeição mútua (philadelphia), compaixão (splanchnon), misericordioso (eleēmōn), simpático (sympathēs); paz: pacífico (amachos), de mente semelhante (homophrōn); bondade: gentil (ēpios), atencioso (epieikēs), hospitaleiro (philoxenia); benignidade: virtude (aretē), generoso (eumetadotos); fidelidade: espiritualmente entusiasmado (zeō), fiel (proskartereō), piedade (eusebeia), reverente (hieroprepēs); mansidão: gentil (epieikēs); domínio próprio: autocontrolado (sōphrōn), temperado (nēphalios), perseverante (hypomenō), resistente (stegō), suportando uns aos outros (anechomai).
[2] Capaz de ensinar (didaktikos), irrepreensível (anepilēmptos), diligência (spoudē), perdoador (charizomai), santo (hosios), esperança (elpis), humilde (tapeinophrosynē), imparcial (adiakritos), obediente (peitharcheō), pureza (hagnotēs), respeitável (kosmios), retidão (dikaiosynē), sincero (anypokritos), submisso (eupeithēs), verdadeiro (alētheia), digno de respeito (semnotēs).
[3] Dörnyei, Psychology of the Fruit of the Spirit, p. 103.
[4] Ibid.
[5] Rob M. A. Nelissen, “The Motivational Properties of Hope in Goal Striving”, Cognition and Emotion 31, n. 2 (2017): 233.
[6] Daniel T. Cordaro et al., “Contentment: Perceived Completeness across Cultures and Traditions”, Review of General Psychology 20, n. 2 (2016): 230.
[7] N. T. Wright, After You Believe: Why Christian Character Matters (Nova York: HarperOne, 2010), p. 203.
[8] Colin G. Kruse, Paul’s Letter to the Romans, PNTC (Grand Rapids: Eerdmans; Nottingham: Apollos, 2012), p. 477.
[9] Ibid., p. 534-35.
[10] Jerome, “Commentary on the Epistle to the Galatians”, em Galatians, Ephesians, Philippians, ed. Mark J. Edwards, ACCS (Downers Grove: InterVarsity, 1999), p. 85.
[11] Kruse, Paul’s Letter to the Romans, p. 350.
[12] David G. Peterson, Romans, EBTC (Bellingham: Lexham Press, 2021), p. 235.