Nossa lembrança do que ocorreu durante a Reforma do século dezesseis tem sido um pouco seletiva. Como herdeiros do protestantismo reformado, recordamos da Reforma principalmente como uma recuperação do evangelho e do modo bíblico de adoração. Mas também precisamos lembrar dela como uma grande recuperação da compreensão bíblica do casamento.
Com base na piedade monástica da antiguidade tardia — encontrada em autores como Agostinho e Jerônimo — a igreja medieval considerava a vida celibatária do mosteiro ou convento de freiras como lugar de desenvolvimento de uma espiritualidade muito superior à encontrada nas casas daqueles que eram casados. Argumentava-se que o celibatário vivia como os anjos e, assim, já experimentava de certa forma a vida do mundo por vir. No entanto, com a crescente corrupção da igreja no fim da Idade Média, a realidade era que muitos dos clérigos eram celibatários, mas não castos.
Lutero: marido e pai pioneiro
Embora Martinho Lutero não tenha sido o primeiro dos reformadores a se casar e a ter uma família, seu casamento com Katharina von Bora em 13 de junho de 1525 tornou-se, em muitos aspectos, o ideal paradigmático para a família protestante. Inicialmente, o seu casamento não foi por amor. Katharina tinha escapado de um convento de freiras em Nimbsch, perto de Grimma, com várias outras freiras, e acabou buscando refúgio em Wittenberg. Durante algum tempo, Lutero agiu como uma espécie de intermediário matrimonial, procurando encontrar maridos para as freiras. Por fim, Katharina ficou sozinha, e Lutero casou-se com ela, disse ele, para agradar ao pai, que sempre quisera netos, e também, como Lutero inigualavelmente afirmou, por desprezar o papa.
Essas dificilmente são as melhores razões para o casamento, mas com o tempo, seu casamento “floresceu em uma parceria de profundidade real e devoção tocante”, para citar Andrew Pettegree em seu estudo recente sobre Martinho Lutero. Esse “êxito alegre” do casamento de Martinho e Katharina e dos seis filhos que vieram da sua união tornou-se, nas palavras de Pettegree, “um poderoso arquétipo da nova família protestante”. O amor de Lutero por seus filhos levou-o a ver corretamente que o dom de filhos e filhas era central para as alegrias do casamento. E “pessoas que não gostam de crianças”, ele disse uma vez em seu estilo contundente, são “burras e tolas, não dignos de serem chamados de homens e mulheres, porque desprezam as bênçãos de Deus, o criador e autor do casamento”.
O casamento do João Calvino
Quando João Calvino veio a se casar, disse ao seu amigo e cooperador William Farel no fim da década de 1530 que ele não estava preocupado com a beleza física. O que ele queria era uma esposa que fosse casta, sábia, econômica, paciente e capaz de “cuidar da minha saúde”.
Ao contrário de Lutero, que era bastante público em relação aos detalhes da sua vida conjugal, Calvino raramente falou sobre o seu casamento com Idelette de Bure durante os seus oito anos e meio de casamento — ela morreu em março de 1549, tendo sofrido de má saúde por muitos anos. Porém, de vez em quando, uma observação mostra quão próximos eles eram um do outro. Por exemplo, Calvino estava com sua esposa em Estrasburgo durante a primavera de 1541. Uma praga se espalhava na cidade, e Calvino decidiu permanecer em Estrasburgo, mas fez a sua esposa partir para sua própria segurança. Ele escreveu a Farel que “dia e noite minha esposa esteve constantemente em meus pensamentos, em necessidade de conselhos agora que ela está separada do seu marido”.
Eles tiveram um filho, Jacques, que morreu logo após o nascimento, em 1542. “O Senhor”, escreveu Calvino a um amigo próximo, Pierre Viret, “certamente causou uma ferida grave e amarga na morte do nosso filhinho. Mas ele mesmo é um Pai e sabe melhor o que é bom para os seus filhos”.
No momento da morte de sua esposa, Calvino declarou em uma carta a Farel: “Verdadeiramente a minha dor não é comum. Estou desprovido da melhor amiga de minha vida, de alguém que, se fosse ordenado, teria voluntariamente compartilhado não somente a minha pobreza, mas também a minha morte. Durante sua vida, ela foi a ajudadora fiel do meu ministério”. Essa é uma passagem notável e revela a profundidade da mudança que a Reforma Protestante havia provocado. O casamento agora era visto como Deus o intencionou em Gênesis 2: a união de aliados íntimos, trabalhando por uma causa comum, ou seja, a expansão do reino de Deus.
Tradução: Camila Rebeca Teixeira
Revisão: André Aloísio Oliveira da Silva
Original: The Reformation Ideal of Marriage