Qual é o objetivo geral do estudo da ética? Deve ser o cumprimento de nosso propósito principal, que é glorificar a Deus.
No Antigo Testamento, Deus diz o seguinte sobre seus filhos e filhas:
… os que criei para a minha glória, os formei, e também os fiz. (Is 43.7; veja também o v. 21)
Semelhantemente, o Novo Testamento afirma que, antes da fundação do mundo, Deus predestinou pessoas para que fossem salvas “para louvor da sua glória” (Ef 1.12). Visto que Deus nos criou para glorificá-lo, faz perfeito sentido que o Novo Testamento nos diga: “Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31).
O Catecismo Maior de Westminster resume essa perspectiva dizendo:
Pergunta 1: Qual é o fim supremo e principal do homem?
Resposta: O fim supremo e principal do homem é glorificar a Deus e se alegrar nele para sempre.
Três perspectivas sobre uma vida vivida para a glória de Deus
A princípio, pode parecer muito abstrato dizer para as pessoas: “você deve viver para a glória de Deus”. O que exatamente isso significa? Como é uma vida vivida para a glória de Deus?
A Bíblia é uma rica casa de tesouros, com materiais que nos ajudam a responder a essas perguntas de maneiras específicas. Para o propósito deste livro, nosso foco será o que a Bíblia diz sobre três perspectivas sobre uma vida vivida para a glória de Deus: (1) nosso caráter pessoal, (2) os resultados que as nossas vidas geram e (3) o nosso comportamento, a nossa conduta de vida.
Não devemos nos surpreender com o fato de que Deus não se preocupa somente com o nosso comportamento. Ele se interessa em nós como pessoas. Ele não está interessado somente em nossas ações individuais. Ele não quer simplesmente que pratiquemos ações que sejam moralmente boas. Ele também quer que sejamos pessoas moralmente boas e que nossas vidas gerem resultados moralmente bons, resultados que o agradem e honrem. As três próximas seções deste capítulo analisam essas perspectivas de maneira mais detalhada.[1]
Em resumo, uma vida vivida para a glória de Deus será uma vida que tem:
- Um caráter que glorifica a Deus: um caráter parecido com o de Cristo.
- Resultados que glorificam a Deus: uma vida que gera abundantes frutos para o Reino de Deus.
- Um comportamento que glorifica a Deus: uma vida de obediência a Deus, relacionando-se pessoalmente com Deus.
O objetivo em relação ao caráter: uma vida em conformidade com a imagem de Cristo
Uma divisão do estudo da ética se chama “ética das virtudes”. Esse é um estudo sobre os traços de caráter que as pessoas devem procurar ter. Na ética, “virtude” é a inclinação interior de agir, sentir, responder e pensar de maneiras que são moralmente boas.[2] Às vezes, chamo essas virtudes de “traços de caráter”.
Certamente, o desenvolvimento da virtude moral no cristão é uma preocupação da Bíblia, pois há dezenas de passagens que falam sobre traços de caráter pessoal que os cristãos devem se esforçar para ter em suas vidas. Pedro diz que os cristãos devem se esforçar ao máximo para acrescentar “virtude” à fé cristã (2Pe 1.15) e aqui usa a palavra grega aretē, que costumava ser empregada pelos filósofos gregos para falar sobre traços desejáveis que as pessoas deveriam se esforçar para incluir em suas vidas.
Contudo, isso não significa que os valores éticos da Bíblia são os mesmos que os valores éticos da filosofia pagã. R. C. Roberts explica:
Algumas coisas que talvez sejam verdadeiras sobre a esperança cristã talvez não sejam verdadeiras sobre a esperança marxista; o que é verdade sobre a paz cristã talvez não seja verdade sobre a equanimidade estoica; o que é verdade sobre a coragem cristã talvez não seja verdade sobre a coragem aristotélica. A maneira como um cristão maduro lida com o seu temor (a saber, sua coragem) envolve sua convicção de que Deus está presente e que ele é confiável; sendo assim, depende da prática da oração e da experiência com o Espírito Santo. Como o aristotélico não pratica a oração, não crê que Deus está presente e não tem qualquer experiência com o Espírito Santo, sua coragem não é o mesmo traço de caráter que a coragem do cristão.[3]
O nosso objetivo em relação ao nosso caráter é nos conformarmos à imagem de Cristo. Paulo diz o seguinte sobre os cristãos: “Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho” (Rm 8.29). O propósito de Deus ao nos escolher foi nos conformar à imagem de Cristo, isto é, foi que nos tornássemos parecidos com Cristo em nosso caráter e em nossas ações. Semelhantemente, Paulo diz: “E, assim como trouxemos a imagem do que é terreno, devemos trazer também a imagem do celestial” (1Co 15.49) — o “celestial”, nessa passagem, é Cristo. Nós teremos a imagem dele, o que significa que seremos como ele.
Tornar-se parecido com Cristo é um processo que dura uma vida inteira.[4] Muitas passagens do Novo Testamento falam sobre o processo de tornar-se parecido com Cristo como um processo que dura uma vida inteira. “Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo”, escreve Paulo em 1 Coríntios 11.1, o que sugere que até os crentes mais maduros entre os leitores de Paulo ainda precisam ser incentivados a imitá-lo, assim como ele mesmo continuava a imitar a Cristo. João nos lembra que “aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou” (1Jo 2.6). Nossas vidas devem refletir a vida de Cristo para que ele seja honrado em tudo o que fazemos (Fp 1.20). Por isso, o Novo Testamento retrata o cristão como alguém que se esforça para imitar a Cristo em todas as suas ações: “Portanto, acolhei-vos uns aos outros, como também Cristo nos acolheu para a glória de Deus” (Rm 15.7); “[m]aridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja” (Ef 5.25); “[n]isto conhecemos o amor: que Cristo deu a sua vida por nós; e devemos dar nossa vida pelos irmãos” (1Jo 3.16). Ao longo de nossas vidas, devemos “correr… a carreira que nos está proposta, olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus” (Hb 12.1-2; veja também Ef 5.2; Fp 2.5-11; 1Ts 1.6; 1Jo 3.7; 4.17). Em contraste, a desobediência expõe Cristo à ignomínia (Hb 6.6).
A nossa imitação de Cristo é especialmente evidente no sofrimento. Os cristãos são chamados a suportar o sofrimento com paciência, “pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos” (1Pe 2.21). Paulo queria “conhecer… a comunhão dos seus sofrimentos [os de Cristo], conformando-[s]e com ele na sua morte” (Fp 3.10; veja também 2Co 1.5; 4.8-11; Hb 12.3; 1Pe 4.13).
Além disso, nosso sofrimento é vinculado com a participação na glória de Cristo quando ele voltar: “Se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados” (Rm 8.17). É provável que seja assim porque é através do sofrimento e das dificuldades que Deus nos faz mais parecidos com Cristo, fazendo-nos amadurecer nele (Ef 4.13, 15; Tg 1.2-4; Hb 5.8-9).
Além disso, visto que Cristo obedeceu ao Pai perfeitamente, mesmo diante de tanto sofrimento, a nossa obediência, confiança e paciência em meio ao sofrimento retratam mais plenamente como Cristo era e, assim, servem para honrá-lo mais. É uma grande fonte de consolação saber que estamos experimentando somente o que ele já experimentou e, portanto, que ele compreende o que nós enfrentamos e se identifica conosco em nossas orações (Hb 2.18; 4.15-16; 12.11). Como resultado de uma vida de obediência, seremos participantes da glória de Cristo: “Ao vencedor, dar-lhe-ei sentar-se comigo no meu trono, assim como também eu venci e me sentei com meu Pai no seu trono” (Ap 3.21).
Contudo, a nossa imitação de Cristo não é uma mera mímica de suas ações. O propósito muito mais profundo é que, ao imitá-lo, nos tornemos mais e mais parecidos com ele: quando agimos como Cristo, tornamo-nos parecidos com Cristo. Em Cristo, crescemos em maturidade (Ef 4.13, 15; Hb 5.8-9; Tg 1.2-4) à medida que somos “transformados com glória cada vez maior” (2Co 3.18). O resultado é que nos tornaremos perfeitamente como Cristo, que é o que Deus nos predestinou para sermos (Rm 8.29; 1Co 15.49), e que, “quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele” (1Jo 3.2). Quando isso acontecer, Cristo será completamente glorificado em nós (2Ts 1.10-12; Jo 17.10).
Todavia, nada disso faz com que percamos a nossa individualidade. Nós nos tornaremos perfeitamente parecidos com Cristo, mas não nos tornaremos Cristo, não seremos absorvidos em Cristo e não perdemos a nossa individualidade para sempre. Em vez disso, seremos verdadeiros indivíduos quando conhecermos como somos conhecidos (1Co 13.12); somos nós que o veremos como ele é (1Jo 3.2); somos nós que o adoraremos, que veremos sua face, que teremos o nome dele escrito em nossas testas e que reinaremos com ele para sempre (Ap 22.3-5). Assim como o Pai, o Filho e o Espírito Santo são idênticos em caráter (Jo 14.7, 9), mas continuam sendo pessoas distintas, nós podemos nos tornar cada vez mais parecidos com Cristo, sem deixarmos de ser indivíduos distintos com diferentes dons e diferentes funções (Ef 4.15-16; 1Co 12.4-27).
Aliás, quanto mais nos tornamos parecidos com Cristo, mais nos tornamos quem verdadeiramente somos (Mt 10.39; Jo 10.3; Ap 2.17; Sl 37.4). Se nos esquecermos dessa verdade, a tendência será negligenciar a diversidade de dons na Igreja, o que nos fará querer que todos sejam parecidos conosco. A tendência também será negar a importância absoluta que temos como indivíduos. Uma perspectiva bíblica apropriada permite que cada crente não somente diga: “nós, cristãos, somos importantes para Cristo”, mas também: “eu sou importante para Cristo; ele conhece meu nome, ele me chama pelo nome e ele me dá um nome que é somente meu” (veja Jo 10,3; Ap 2.17).
Este artigo é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Ética Cristâ, de Wayne Grudem, Editora Fiel (em breve).
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[1] Leitores do livro de John Frame, A Doutrina da Vida Cristã (São Paulo: Cultura Cristã, 2013), reconhecerão algumas semelhanças com o uso que ele faz das três perspectivas na vida ética: o que eu chamo de caráter é parecido com sua categoria “existencial”; o que eu chamo de resultados é parecido com sua categoria “situacional”; e o que eu chamo de comportamento é parecido com sua categoria “normativa”. Meu objetivo é utilizar termos que são compreendidos imediatamente por leitores comuns e que comunicam o amplo testemunho bíblico sobre o tipo de vida que Deus quer que vivamos. Essas três perspectivas são uma maneira útil de resumir o ensino bíblico (as três perspectivas de Frame fazem o mesmo). Frame e eu reconhecemos que essas categorias não são absolutamente distintas umas das outras, pois há muitas partes do testemunho bíblico que poderiam se encaixar bem em qualquer uma das três. Trata-se de três “perspectivas” (uma palavra que Frame ama usar) sobre a vida em sua totalidade para a glória de Deus.
[2] Sou grato a David Horder por me ajudar a pensar em uma definição clara de “virtude” (embora eu seja responsável por essa definição específica). M. A. Reid explica que virtudes e vícios são “tendências ou inclinações internas habituais para a realização de atos moralmente bons ou ruins” (“Vice”, em New Dictionary of Christian Ethics and Pastoral Theology, ed. David J. Atkinson e David H. Field [Leicester: Inter-Varsity; Downers Grove: InterVarsity, 1995], p. 874). Mas a virtude também inclui a tendência ou disposição de pensar e sentir de maneiras que são moralmente boas. Confira R. C. Roberts, “Virtue, Virtues”, em Atkinson e Field, New Dictionary of Christian Ethics and Pastoral Theology, que diz que as virtudes de uma pessoa “determina suas preocupações, desejos, emoções e percepções sobre praticamente tudo, bem como suas ações” (p. 881).
[3] R. C. Roberts, “Character”, em Atkinson e Field, New Dictionary of Christian Ethics and Pastoral Theology, p. 66.
[4] Esta seção é uma adaptação de Wayne Grudem, Systematic Theology: An Introduction to Biblical Doctrine, 2ª ed. (Londres: Inter-Varsity; Grand Rapids: Zondervan, 2020), p. 1037-38 [edição em português: Teologia Sistemática: Completa e Atual, 2ª ed. (São Paulo: Vida Nova, 2022)], com permissão dos editores.