“Eu creio; eu creio. É bobo, mas eu creio”. Essas são palavras bem conhecidas ditas pela jovem Susan Walker no famoso filme de natal De Ilusão Também se Vive (1947). Eles fornecem um simples exemplo de como a fé é comumente retratada em nossa cultura: um salto às cegas no escuro — crendo sem qualquer razão.
Tal visão da fé, contudo, é completamente divergente do que a Bíblia ensina. Fé, de acordo com a Bíblia, não é irracional ou “boba”. Não é um comprometimento cego ou um sentimento arbitrário de proximidade com Deus. Essas coisas não são fé, do mesmo modo que não é fé um homem escolher, de olhos vendados, uma pessoa em meio a uma multidão, e pedir a ela que lhe faça uma cirurgia cardíaca. Isso não é fé de maneira alguma; é tolice, pura e simples.
O que, então, é fé? Historicamente, o cristianismo ortodoxo respondeu essa a questão distinguindo três principais elementos que, juntos, compreendem a fé salvífica. Falando de maneira geral, três palavras latinas foram usadas para identificar esses três elementos: notitia, ou “conhecimento”; assensus, ou “assentimento”; e fiducia, ou “confiança”.
Notitia
O primeiro elemento da fé salvífica é notitia, ou conhecimento, que aponta para o fato de que a fé genuína deve crer em alguma coisa. Em outras palavras, ela deve ter conteúdo intelectual. Ela não pode ser vazia ou cega, mas deve ser baseada no conhecimento de certas verdades fundamentais. Nós vemos isso por toda a Bíblia nas passagens que são distintas pela expressão “crer que”, seguida por uma proposição doutrinária de alguma natureza. Bons exemplos incluem Romanos 10.9, que afirma que “se… creres que Deus ressuscitou [Jesus] dentre os mortos, serás salvo”, e João 20.31 que diz: “Estes [sinais] foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome”. Em cada caso, nós vemos que há um conteúdo doutrinário para a fé. Fé significa crer em certas proposições; nos exemplos citados acima, as proposições são “que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos” e “que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus”.
Assensus
O segundo elemento da fé salvífica é assensus, ou consentimento; parecer favorável. Isso se refere à convicção intelectual de que o conhecimento que alguém possui é factualmente verdadeiro e pessoalmente benéfico. Não é suficiente simplesmente conhecer certas coisas. Devemos também crer que tais coisas são verdadeiras e atendem às nossas necessidades. Nós vemos esse elemento de fé retratado em passagens bíblicas como João 5.46-47; 8.31-38, 45-46; 10.37-38; 14.11.
Fiducia
O terceiro elemento da fé salvífica é fiducia, ou confiança. É de longe o mais importante dos três elementos que mencionamos. Sem esse elemento, a fé é meramente um empreendimento intelectual — muito parecida com a “fé” dos demônios que sabem a verdade sobre Jesus, mas se recusam a confiar nele porque odeiam o que eles sabem ser verdadeiro (Tg 2.19; Mt 8.29). Esse elemento consiste em uma confiança pessoal em Cristo como ele é oferecido no evangelho, e uma completa confiança nele para a salvação. Ele é visto em passagens que falam sobre crer “em” Jesus (por exemplo, Jo 3.15-16; Rm 9.33; 10.11) e em passagens que falam de “inclinar-se” ou “repousar” sobre Jesus (Sl 71.5-6; Pv 3.5-6), “olhar” para ele (Jo 6.40; Hb 12.1-2), e “comprometer-se” com ele (2Tm 1.12; Mt 11.28; Sl 37.5).
Os três elementos ilustrados
Considere a seguinte ilustração. Imagine que quatro pessoas são lançadas sem comida ou água no meio de um campo muito extenso cheio de minas terrestres. Suponha que um dos indivíduos cegamente escolha um caminho pelo campo e siga naquela direção sem hesitar. Esse não é um exemplo de fé, mas é mais como aquela tolice da qual falamos anteriormente. Fé genuína não é cega; é baseada em conhecimento.
Mas suponha que um helicóptero apareça sobre os três homens que restaram, e do helicóptero, uma parte interessada anuncia o caminho pelo campo minado. Um dos homens confia na palavra da parte interessada e caminha de uma vez pelo campo minado. Isso também não é um exemplo de fé. Sim, as ações do homem são baseadas em conhecimento (o testemunho da parte interessada) e consentimento (o homem considera o testemunho como verdadeiro e benéfico em atender as suas necessidades). Mas a sua ação ainda é cega, pois é baseada em conhecimento insuficiente (isto é, o testemunho incerto de um completo estranho). Ela também carece do mais importante elemento da fé: confiança pessoal naquele que fala.
Suponha, contudo, que os dois homens restantes façam certas perguntas à parte interessada para discernir como ele veio a conhecer o caminho correto do campo, por que ele quer ajudá-los e o quão certo ele está de que pode guiá-los seguramente através das minas terrestres. Suponha que eles também peçam referências da parte interessada para ver se ele conhece alguém que eles conheçam ou a quem sejam relacionados. Suponha que eles até mesmo tentem testar as suas instruções, lançando objetos na direção que ele sugere para ver se parece estar livre de minas. Ao fazer tais coisas, os dois homens restantes estão reunindo conhecimento suficiente para decidir se podem confiar no indivíduo do helicóptero. Essa confiança (fiducia), que é edificada sobre um conhecimento (notitia) e consentimento a tal conhecimento (assentus), é do que se trata a fé. Tal fé não é “boba” de maneira nenhuma, mas completamente razoável.
Fé demonstrada em obras
Quando todos os três elementos da fé estão presentes, eles necessariamente se manifestarão em boas obras. Se considerarmos a ilustração acima, podemos ver que os dois homens restantes demonstram a genuinidade da sua fé (ou a falta dela) por aquilo que eles fazem. Se eles escolhem ficar onde estão e se recusam a seguir instruções do homem no helicóptero, ou se eles seguem em sua própria direção, eles demonstrarão que não creem de verdade. Mas se eles genuinamente confiam no homem no helicóptero, eles seguirão na direção para a qual ele aponta. Eles seguirão suas instruções (à la João 14.15). As suas ações vão demonstrar a genuinidade de sua fé.
Quando notitia, assensus e fiducia estão presentes juntos, há verdadeira fé. E quando há verdadeira fé, boas obras necessariamente seguirão. Boas obras não são parte da fé; elas fluem da fé. É somente a fé que recebe o dom de Deus da justificação, mas fé que justifica nunca estará sozinha; ela sempre se manifestará em boas obras.