Adaptado do livro A Igreja e a Surpreendente Ofensa do Amor de Deus, de Jonathan Leeman, publicado pela Editora Fiel.
O amor de Deus nos ofende porque o maior objeto de seu amor é o próprio Deus e não nós.
“Porque dele e por meio dele e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente” (Rm 11.36), disse o apóstolo Paulo após gastar onze capítulos explicando a natureza da redenção. Se “todas as coisas” incluem o amor, e certamente incluem, então todo amor é de Deus, por meio de Deus e para Deus. O amor, conforme tenho dito, é como um bumerangue, vindo de Deus e atraindo o amor de volta para Deus em retribuição.
O bumerangue do amor de Deus é lançado na exigência que Deus faz para que toda a humanidade adore a ele, não a nós mesmos. O bumerangue retorna no louvor e glória que ele recebe tanto pela salvação quanto pelo julgamento. “Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!… A ele, pois, a glória eternamente” (Rm. 11.33, 36). Uma vez que o amor de Deus é centrado em Deus, os homens serão julgados, o que não seria o caso se o amor dele fosse centrado em nós.
Por essa razão, podemos também dizer que o amor de Deus é ofensivo a nós porque ele produz julgamento contra nós. E nós queríamos ser o juiz.
Visto que Deus é o maior objeto do amor de Deus, o evangelho de Deus, apesar das coisas que o mundo possa gostar em relação a ele, no final das contas nos ofende. Afinal, o evangelho de Deus envolve aplicar a própria justiça de Deus ao pecador, por meio da fé, não deixando ao pecador coisa alguma da qual se orgulhar. Com o evangelho de Deus, toda glória vai para Deus (Rm 3.21-27), não para nós. Além disso, o seu evangelho nos chama para uma vida de justiça. Ele até mesmo declara que o amor é demonstrado pela obediência. Essa é uma ideia difícil de vender numa cultura que equipara o amor à liberdade absoluta.
Visto que Deus é o maior objeto do amor de Deus, a igreja de Deus, apesar das coisas que o mundo possa gostar em relação a ela, no final das contas nos ofende. Afinal, a igreja é o âmbito das pessoas que têm se rendido a esse Deus ofensivamente autoglorificador. Esses traidores têm se deixado enganar para promover esse megalomaníaco.
Eles estão apoiando a forma de governo dele. E onde ficam o nosso jeito e a nossa glória?
Os limites da membresia e da disciplina nos ofendem porque eles nos fazem lembrar do julgamento de Deus, o qual desprezamos. “O quê? Ele pensa que pode me excluir?” Na verdade, essas mesmas fronteiras, limites ou barreiras ao redor da igreja, que relembram aos olhos não regenerados que esse âmbito é o que é, foram os mesmos limites, barreiras e fronteiras que conquistaram os territórios em nosso país. Pergunte a qualquer nação ocupada como ela se sente em relação a essa ocupação.
A resposta será imediata: indignação e ultraje. Como uma nação trata os seus compatriotas quando eles passam para o lado do inimigo? Eles são desprezados. São chamados de traidores. São acusados de atividades criminosas. Geralmente eles são enforcados.
Admito completamente que essas metáforas militaristas podem parecer cruéis. As metáforas de barreiras e fortificações são cruéis exatamente porque o “amor”, no domínio do homem natural, é definido como: “Eu estou no centro, não Deus.” Afirmar que “Deus é o centro” é, por definição, algo cruel a se dizer. Essas metáforas são agressivas exatamente porque o amor de Deus, de fato, almeja destruir o que é cruel, tornando-o amoroso. Ele almeja redefinir o amor do homem natural, de modo que o próprio Deus, e não o homem, torne-se o objeto supremo do amor. O ato de criar o novo homem é um ato de destruição — assassinato — do velho homem. Morte, depois ressurreição. E não somente isso, mas Deus almeja fazer isso por meio do ato ofensivo de evangelismo e do ato ridículo da pregação. Que audácia!
Os limites da igreja são os limites entre dois domínios — um onde Deus está no centro e um onde o centro somos nós. Não há um território neutro entre esses dois domínios. Isso não significa que sempre está claro quem pertence a qual, mas fazemos bem em lembrar, conforme disse Jesus, que nenhum de nós pode servir a dois senhores. Porque ou há de aborrecer-se de um e amar o outro, ou se devotará a outro e desprezará ao um. Ou, conforme o apóstolo João afirmou, não podemos amar a Deus e ao mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele. Ou ainda, conforme disse Jesus, quem não é por Deus é contra Deus, e quem com ele não ajunta espalha. Ou estamos do lado de dentro do forte ou estamos do lado de fora.
O amor de Deus, o evangelho de Deus e a igreja de Deus nos ofendem porque nós somos ladrões de glória, emprestando aqui a frase de Paul David Tripp. Deus nos criou para desfrutarmos e exibirmos a sua glória, mas o pecado enredou o nosso coração, de modo que agora tentamos roubar aquilo que por direito pertence a ele. Tripp ilustra esse ponto com uma simples história de um menino pequeno numa festa de aniversário de uma menininha de cinco anos. Ele dá uma olhada para suas lembrancinhas e depois para a enorme pilha de presentes dela. Aborrecido com a comparação, ele cruza os braços, faz um bico e emite um audível “hum!”. Na verdade, ele repete esse “hum!” várias vezes para se assegurar que todos o ouvem. Finalmente, uma das mães que estava na festa se abaixa, traz o rosto dele perto do dela e diz algo profundo: “Johnny, esta festa não é a sua!”
Aquilo que é verdade para uma criança de cinco anos é verdade para todos nós: nós tratamos a vida como se ela fosse a nossa festa. Queremos que a montanha de presentes e os créditos pertençam a nós, não a qualquer outra pessoa. Muito menos a Deus. Passamos nossa vida conspirando contra esse fim. Deus responde à nossa conspiração não com um evangelho de “amor incondicional”, mas com um evangelho do amor “contrariamente condicional”. A ideia de amor incondicional sugere que ele se contenta em nos amar exatamente do modo como ele nos encontra, mas isso não está totalmente correto. Ele nos ama no momento em que nos encontra, mas ele nos ama nos transformando naquilo que devemos ser.
Se a vida fosse a nossa festa, como nós e o pequeno Johnny desejamos, as linhas divisórias não fariam sentido. Existe um universo de diferenças entre um Deus que ama mais a Deus e um Deus que ama mais o homem. Um é santo, o outro não. Qualquer sistema teológico que torne a humanidade o foco primordial do amor de Deus é um sistema que, no final das contas, perde sua necessidade de fronteiras ou limites de santidade ou retidão, de justiça ou misericórdia. A misericórdia se torna sem significado e a licenciosidade se torna tudo. As linhas demarcatórias entre a membresia da igreja e o mundo afinal desaparecerão ou, pelo menos, terão uma função vazia e paradoxal, mais condizente com o marketing de negócios — “Una-se a nós como você está, todos são especiais aqui!” No entanto, a linha quase inexistente entre a igreja e o mundo seria o menor dos nossos problemas. O perigo real seria um Deus que não discrimina, compelido a tranquilizar todos os caprichos e desejos ardentes dos humanos.
Por outro lado, curvar-se ante o amor de Deus por Deus — submeter-se à sua glória — significa ser incorporado a ele, compartilhar dele e desfrutar eternamente a mais bela de todas as belezas.