Como se quisesse nos sacudir de qualquer complacência que ainda restasse ao aproximar-se do final de seu sermão, Jesus faz uma pergunta simples: “Por que me chamais Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos mando?” (6.46). Essas palavras contêm uma advertência, conduzem a uma investigação e exigem um autoexame. Jesus está se dirigindo àqueles nos quais há uma grande lacuna entre o que dizem e o que fazem. Ele está perguntando se a sua profissão verbal é acompanhada de obediência moral.
Jesus lançou esse desafio em mais de uma ocasião. Em Mateus 7, ao pregar um sermão semelhante, Jesus colocou a questão da seguinte forma: “Nem todo”, diz ele, “o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus”. Imagine ouvir isso. A resposta natural e correta seria perguntar: “Bem, quem entrará no Reino dos Céus? Se não são as pessoas que dizem Senhor, Senhor!, quem está no Reino?” Bem, diz Jesus, as únicas pessoas que entram no céu são aquelas que fazem a vontade de meu Pai, que está nos céus. Na verdade, continua, quero que vocês entendam que, no dia em que eu vier para salvar e julgar, muitas pessoas dirão “Senhor, Senhor! Porventura, não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres?” (v 22). Jesus está pensando naqueles que podem legitimamente dizer: “Senhor, nós estávamos na vanguarda do ministério. Usamos nossos dons para servir-lhe. Fomos capazes de fazer todo tipo de coisa em seu nome, Senhor”. E a resposta dele? “Então, lhes direi explicitamente: nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade” (v. 23).
Reunir-se com o povo de Cristo, dizer todas as palavras certas e cantar as músicas certas não são um indicador seguro de um relacionamento com Jesus ou uma garantia de admissão no céu.
Pare um momento para absorver isso. Esses são homens e mulheres que fazem uma clara profissão verbal de fé e que são ativos no ministério, mas a quem Jesus dirá: “nunca vos conheci”.
Novamente, precisamos deixar claro o que Jesus não está dizendo. Ele não está dizendo que uma profissão verbal de fé não é importante.“Se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo”, escreveu Paulo à igreja em Roma (Rm 10.9). De fato, é impossível dizer “Jesus é o Senhor” com qualquer senso de realidade e integridade, exceto pela capacitação do Espírito de Deus (1Co 12.3). Jesus não está deixando de lado, de forma alguma, a importância – na verdade, a necessidade – de fazer uma profissão verbal de nossa fé e confiança em Jesus: de nossa disposição de declarar com nossos lábios que Jesus é o Senhor. No entanto, o que Jesus está dizendo é que é perfeitamente possível fazer uma profissão verbal – uma profissão verbal ortodoxa, entusiasmada e pública – que, na verdade, é inverossímil.
É possível ser usado por Jesus para construir sua igreja sem ser genuinamente um cristão. É possível ser presenteado por Jesus com várias habilidades sem ser genuinamente um cristão. É possível ter uma teologia completamente ortodoxa e conhecer muito bem a Bíblia sem ser genuinamente cristão. Ter dons não equivale a ter aceitado o senhorio de Jesus; ser um grande pregador também não.
John Stott, magistralmente conciso, como de costume, diz o seguinte:
Que melhor profissão cristã poderia ser dada [do que esta]? Aqui estão pessoas que chamam Jesus de ‘Senhor’ com cortesia, ortodoxia e entusiasmo, na devoção particular e no ministério público. O que pode haver de errado nisso? Em si mesmo, nada. E, no entanto, tudo está errado porque é conversa sem verdade, profissão sem realidade. Isso não os salvará no dia do julgamento.
É por isso que a ênfase da Bíblia, tanto para o indivíduo que examina sua vida quanto para qualquer pessoa que esteja avaliando a fidelidade e a saúde de um ministério, está na honestidade de nossa vida e na obediência de nosso coração. Nosso comportamento particular, tanto quanto ou mais do que nossa profissão pública, revela a verdade ou não de nossa reivindicação de seguir a Jesus como Senhor. Ou seja, o verdadeiro teste – e isso é profundamente desafiador – é se “afastar do mal” (2Tm 2.19, NVT). Não significa que precisamos viver uma vida perfeita, mas quando somos confrontados pela palavra de Jesus nos chamando para parar algo, ou assumir algo, ou mudar de alguma forma, dizemos: “Sim, Senhor” e – seja qual for o custo para nós e seja qual for a incompreensão, ou que a pior coisa do mundo nos ocorra – elaboramos o que a obediência a ele precisa representar para nós e, em seguida, seguimos em frente, confiando no poder do Espírito que reside em nós.
Jesus não está exigindo 100% de sucesso, e é claro que haverá decepções, vacilações e falhas ao longo do caminho. Continuaremos muito longe do que fomos chamados a ser, mas também estaremos cada vez mais distantes do que já fomos. Em outras palavras, os outros poderão dizer de nós, “deixando os ídolos, vos convertestes a Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro” (1Ts 1.9). Seremos diferentes, e ficará claro para as pessoas ao nosso redor que somos diferentes. Portanto, a melhor pessoa para lhe dizer se essa verdade é evidente em sua vida provavelmente não é você, mas outra pessoa que ama Jesus e conhece bem você. Muitas vezes, a sabedoria consiste em convidar uma pessoa querida ou um amigo para lhe dizer se e onde ele o vê mudando e crescendo. Dizer,“Jesus é o Senhor”, é necessário, mas não é suficiente, de acordo com Jesus. O seu proceder é que revela a realidade.
Edifício e barcos
Agora Jesus chega a outra de suas frases mais famosas. Ele muda o contraste de dizer e fazer para ouvir e fazer:
Todo aquele que vem a mim, e ouve as minhas palavras, e as pratica, eu vos mostrarei a quem é semelhante. É semelhante a um homem que, edificando uma casa, cavou, abriu profunda vala e lançou o alicerce sobre a rocha; e, vindo a enchente, arrojou-se o rio contra aquela casa e não a pôde abalar, por ter sido bem-construída. Mas o que
ouve e não pratica é semelhante a um homem que edificou uma casa sobre a terra sem alicerces, e, arrojando-se o rio contra ela, logo desabou; e aconteceu que foi grande a ruína daquela casa. (Lc 6.47-49)
Não sou construtor, mas acho que posso dizer com segurança que, se estivéssemos caminhando juntos por uma rua e víssemos duas casas em construção que haviam chegado ao estágio de edificação das paredes, sendo que até essa etapa o trabalho estava sendo bem feito, não conseguiríamos ver nenhuma diferença fundamental entre elas. E, se não soubéssemos nada sobre construção e tivéssemos passado por essa estrada duas semanas antes, poderíamos ter questinado por que o construtor da primeira casa parecia passar tanto tempo escavando o solo em vez de construindo no solo, enquanto o segundo construtor já estava construindo as paredes e colocando o telhado no lugar. Poderíamos até ter dito a nós mesmos: “Deixe-me anotar em minha mente que, se algum dia eu for construir uma casa, devo pedir um orçamento a esse segundo construtor, porque ele é muito mais eficiente, desperdiçará muito menos do meu dinheiro e construirá uma bela casa para mim com muito mais rapidez e facilidade”.
Talvez você não fosse tão ingênuo a ponto de pensar assim. Mas, quando essas duas casas estivessem prontas, ninguém seria capaz de ver qualquer diferença entre elas.
Até que viessem as tempestades.
Na história de Jesus, foi somente quando o rio transbordou e o vento bateu com força contra as estruturas que a diferença fundamental e fatal entre as duas casas ficou evidente. Uma delas – aquela cujo construtor “cavou, abriu profunda vala e lançou o alicerce sobre a rocha” – não podia ser abalada. A que não tinha alicerce “desabou; e aconteceu que foi grande a ruína daquela casa”.
Essa imagem não é difícil de entender. Sabemos disso por experiência própria. Qualquer pessoa que tenha um conjunto de Lego sabe que a base é importante. Qualquer pessoa que já tenha colocado algo no solo sabe da importância de colocá-lo corretamente – o que geralmente não é o mesmo que colocá-lo rapidamente ou sem muito esforço. De vez em quando, depois de uma tempestade assolar o nordeste de Ohio, eu dirijo e vejo algumas caixas de correio erguidas e outras abandonadas e achatadas. E minha suspeita é que muitas das que estão deitadas foram colocadas rapidamente em uma tarde de sábado e que há uma conversa em andamento naquela casa do tipo:
— Você não acha que teria sido melhor cavar um pouco mais e talvez colocar um pouco de concreto?
— Bem, quando eu a coloquei, ela parecia tão boa quanto a dos vizinhos do outro lado da rua, não é?
— Sim, com certeza. Mas não parece tão boa quanto a deles agora que a tempestade passou, não é?
A história de Jesus é bem-humorada, mas a questão é extremamente séria. Do lado de fora, em uma manhã de domingo, os cristãos professos tendem a ser muito parecidos uns com os outros. Eles vão à igreja, cantam hinos, ouvem sermões. É difícil ver quem está edificando sua vida na Palavra e é membro do Reino – e quem não é. A questão para os ouvintes do sermão de Jesus – incluindo eu e você – não é se o ouvimos, nem se o afirmamos, mas se o praticamos.
Como, então, saberemos se Jesus é realmente nosso Senhor? É quando a enchente vem, quando a torrente se rompe e quando nossas vidas são viradas de cabeça para baixo – é nesse momento que descobrimos. (Na verdade, essa é uma das razões pelas quais Deus permite que as provações entrem em nossa vida – “para que, uma vez confirmado o valor da vossa fé […] redunde em louvor, glória e honra”, 1Pe 1.6-7). Quando a tempestade chega, a diferença entre aquele que apenas ouviu a palavra e aquele que realmente construiu sua vida com base na palavra é revelada.
Vamos usar outra analogia. Imagine barcos em um mar calmo. Lá estão eles, parados alegremente, estacionados. (Para ser sincero, não sei mais sobre navegação do que sobre construção). Então, de repente, do nada, surge uma enorme tempestade. Alguns deles são virados, outros são lançados à deriva; e outros permanecem no lugar, na posição correta, atingidos pela tempestade, mas impassíveis. Por quê? Porque lançaram suas âncoras e, portanto, os barcos não foram a lugar algum.
Assim, a questão é: quando as tempestades vierem, e elas virão…
Sua âncora se manterá firme nas tempestades da vida, Quando as nuvens lançarem seus ventos de contenda? Quando as fortes marés se elevarem e os cabos se esticarem, Sua âncora se desviará ou permanecerá firme?
Temos uma âncora que mantém a alma Firme e segura enquanto as ondas se agitam; Presa à Rocha inabalável,
Firmada e alicerçada no amor do Salvador![i]
As tempestades da vida revelam se essa última estrofe é ou não verdadeira para nós. Como João Calvino disse: “A verdadeira piedade não se distingue de sua falsificação até chegar a provação”.[ii]
Uma advertência e um convite
Novamente, vamos deixar claro o que Jesus não está dizendo quando pergunta se somos aqueles que ouvem e praticam, em vez de aqueles que apenas ouvem. Ele não está dizendo que a entrada no Reino dos Céus se dá por meio da obediência, ou que ele nos inicia na vida cristã pela graça e depois continuamos por meio da obediência. A única maneira de chegar a essa conclusão a partir dessa passagem é retirá-la do Evangelho de Lucas. Jesus não veio para pregar a obediência, mas para morrer e nos resgatar. A mensagem do Evangelho de Lucas é que “o Filho do Homem veio buscar e salvar o perdido” (Lc 19.10). Ele não veio “chamar justos”, que eram bons em obedecer-lhe, mas sim os “pecadores”, que sabiam que não eram bons em obedecer-lhe (5.32). A salvação é somente pela graça, somente pela fé, e mais nada. Tudo o que levamos a Cristo é o pecado do qual precisamos ser perdoados.
Ainda assim, não podemos deixar de perceber o desafio de Jesus no que ele está dizendo, que é o seguinte: aqueles que realmente creram no evangelho procurarão obedecer a ele. Vale a pena nos lembrarmos do que ouvimos de Lutero no primeiro capítulo deste livro: que “Cristo não está dizendo nada nesse sermão sobre como nos tornamos cristãos, mas apenas sobre as obras e os frutos que ninguém pode fazer a menos que seja cristão e esteja em um estado de graça”. Mas, como Lutero também costuma dizer, é somente a fé que salva, mas a fé que salva nunca está sozinha. Ou seja, somos salvos somente e completamente ao depositarmos nossa fé na morte de nosso Senhor Jesus em nosso lugar, mas a fé em Jesus como nosso Senhor inevitavelmente levará à obediência aos seus mandamentos. Para usar as palavras do apóstolo João, que era um dos que ouviam Jesus enquanto ele pregava essas palavras: “Se dissermos que mantemos comunhão com ele e andarmos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade” (1Jo 1.6). Mentimos para nós mesmos se afirmamos ser de Cristo, mas seguimos os caminhos deste mundo, o que é cair na armadilha da assimilação. É por isso que a Bíblia é um livro perigoso de se ler e a igreja é um lugar perigoso de se estar – porque podemos nos convencer de que, por termos ouvido, estamos salvos.
O sermão inteiro é um desafio e uma advertência – e um convite. Pois há um solo sobre o qual você pode construir sua vida de forma que nenhuma tempestade, durante esta vida ou no final dela, será capaz de destruí-la. Há uma maneira de viver de tal forma que você pode olhar para qualquer provação e dizer: “Você pode me bater e me machucar, mas nunca me derrubará, pois construí minha vida sobre Cristo, e você não pode tirar Cristo de mim”. Há uma maneira de viver de tal forma que você pode até mesmo olhar para a morte e dizer: “Você não me prenderá, pois meu Salvador vive e me prometeu: ‘hoje estarás comigo no paraíso’” (Lc 23.43). Aquele que confessa Jesus como Senhor com os lábios e crê em suas promessas em seu coração e, portanto, procura obedecer-lhe em sua vida é quem pode atravessar as tempestades com confiança, cantando:
Minha esperança está fundamentada em nada menos
Do que o sangue e a justiça de Jesus;
Não ouso confiar na fachada mais bela,
Mas me apoio totalmente no nome de Jesus.
Em Cristo, a rocha sólida, eu permaneço;
Todo outro terreno é areia que afunda.[iii]
Este artigo é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro A vida cristã segundo Jesus, de Alistair Begg, Editora Fiel.
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[i] Priscilla J. Owens, “We Have an Anchor” (1882).
[ii] João Calvino, Commentary on a Harmony of the Evangelists, Matthew, Mark, and Luke, vol. 1, p. 370.
[iii] Edward Mote, “My Hope Is Built on Nothing Less” (1834). [Tradução livre].