Até hoje, a questão do papel da lei de Deus na vida cristã provoca muito debate e discussão. Este é um dos pontos em que podemos aprender muito com nossos antepassados, o tratamento clássico, dado à Lei por João Calvino em suas Institutas da Religião Cristã é particularmente útil. A instrução de Calvino chega até nós no que ele chama de tríplice uso da lei com relação à sua relevância para o novo pacto.
A lei, em sua aplicação primária, revela o caráter de Deus, e isso tem grande valor para qualquer crente a qualquer momento, pois a lei revela o caráter de Deus colocando nos em frente a um espelho no qual é refletida, para nós mesmos, nossa falta de santidade contra o padrão supremo de justiça. Nesse sentido, a lei atua como um professor que nos conduz a Cristo. Uma das razões pelas quais os reformadores e teólogos de Westminster consideravam que a lei permanecia valiosa para o cristão é o fato de que ela, constantemente nos leva ao evangelho. Essa também foi uma das aplicações da lei que Martinho Lutero mais enfatizou.
Segundo, a lei funciona como uma restrição contra o pecado. É certo que os reformadores entenderam o que Paulo diz em Romanos 7, ou seja, que em certo sentido, a lei pode induzir as pessoas a pecar, pois, quanto mais as pessoas não regeneradas olham para a lei, mais inclinadas estarão a querer quebrá-las. Por outro lado, no entanto, apesar dessa tendência da lei, há ainda um benefício salutar, para o mundo em geral, em ter as restrições que a lei nos dá. Suas advertências e ameaças impedem as pessoas de serem tão más quanto poderiam ser, e assim a ordem civil é preservada.
Terceiro, e o mais importante na perspectiva de Calvino, é que a lei nos revela o que é agradável a Deus. Tecnicamente falando, os cristãos não estão mais sob o antigo pacto e suas condições, no entanto, ao mesmo tempo somos chamados a imitar a Cristo e a viver como pessoas que procuram agradar ao Deus vivo (Ef 5.10; Cl 1. 9-12). Portanto, embora em um sentido eu não esteja comprometido com a lei ou sob a maldição da lei, eu a coloco diante da porta da frente, dou a volta pela porta dos fundos e digo: “Oh Senhor, eu quero viver uma a vida que é agradável a ti e, como o salmista do Antigo Testamento, posso dizer: ‘Oh, como amo a tua lei’. ” Posso meditar sobre a lei dia e noite porque é ela que revela o que é agradável a Deus.
Deixe-me dar um exemplo pessoal. Vários anos atrás, eu estava em “Rye”, Nova York, falando em uma conferência sobre a santidade de Deus, depois de uma das sessões, os patrocinadores da conferência me convidaram para ir à casa de alguém para orar e descansar. Quando cheguei à casa, havia cerca de vinte e cinco pessoas na sala de estar orando a seus parentes mortos. Dizer que fiquei chocado seria um eufemismo. Eu disse: “Esperem um minuto, o que é isso? Não podemos fazer isso. Vocês não sabem que Deus proíbe essa prática, que isso é uma abominação aos seus olhos, que isso contamina toda a terra e provoca o julgamento por parte dele”? E qual foi a resposta imediata deles? “Isso é o Antigo Testamento.” Eu disse: “Sim, mas o que mudou para que uma prática que Deus considerou como uma ofensa capital durante uma fase da economia da história da redenção, agora seja algo em que ele se agrade?” Naquele momento eles já não tinham muito mais a dizer pois é evidente que a partir do Novo Testamento Deus é tão contra a idolatria como era no Antigo.
É claro que, quando lemos as Escrituras, vemos que há algumas partes da lei que não se aplicam mais aos crentes da nova aliança, pelo menos não da mesma forma que se aplicavam aos crentes da antiga aliança. Fazemos uma distinção entre leis morais, leis civis e leis cerimoniais, como, por exemplo, as leis alimentares e a circuncisão física. Isso é útil porque existem situações onde praticar algumas das leis do Antigo Testamento como cristãos seria realmente uma blasfêmia. Paulo enfatiza em Gálatas, por exemplo, que se exigíssemos a circuncisão, estaríamos pecando. Hoje a distinção entre leis morais, civis e cerimoniais é útil, mas para o antigo judeu da aliança, fazer essa distinção era algo artificial pois, para eles, manter a leis cerimoniais era uma questão de grandes consequências morais. Era, por exemplo, uma questão moral para Daniel e seus amigos, não comerem como os babilônios comiam (Dn.1). Entretanto, a distinção entre as leis morais, civis e cerimoniais mostra que há um fundamento sólido, de leis justas que Deus dá ao seu povo da aliança, que têm significado e relevância permanentes antes e depois da vinda de Cristo.
Durante o período do escolasticismo reformado nos séculos XVII e XVIII, os teólogos reformados diziam que Deus legisla a Israel e à nova igreja da aliança em duas bases distintas: com base na lei natural divina e com base no propósito divino. Nesse caso, os teólogos não se referiam à “lex naturalis”, como a lei que se revela na natureza e na consciência, para eles a “lei natural” se referia àquelas leis enraizadas e fundamentadas no próprio caráter de Deus. Para Deus, revogar essas leis seria ultrajar o seu próprio ser. Por exemplo, se Deus no antigo pacto dissesse: “Não terás outros deuses diante de mim”, mas agora dissesse: “Tudo bem que vocês tenham outros deuses e se envolvam na idolatria”, ele estaria atentando contra o seu próprio caráter sagrado. Os estatutos ordenados com base nesta lei natural são aplicáveis em todos os momentos.
Por outro lado, temos uma legislação elaborada com base no propósito divino da redenção, vejamos por exemplo, as leis relacionadas aos alimentos, uma vez que o propósito dessas leis é cumprido Deus pode revogá-la sem que isso represente qualquer afronta ao seu próprio caráter. Eu acredito que essa distinção seja útil, ela não responde a todas as perguntas, mas nos ajuda a discernir quais leis permanecem aplicáveis para que possamos saber o que é agradável a Deus.
Tradução: Paulo Reiss Junior.
Revisão: Filipe Castelo Branco.
Fonte: Which Laws Apply?