Não devemos pensar que todos os pregadores que gastam muitas horas estudando a Bíblia são bons exegetas. Oração, tempo e esforço precisam ser unidos a princípios corretos de interpretação. Muitas pessoas sinceras entendem a Bíblia de modo totalmente errado. Eles se manifestam e levam seus ouvintes ao erro. Isto não pode acontecer.
Superstição
Por exemplo, algumas pessoas estudam a Bíblia de maneira supersticiosa. Em vez de focalizarem o sentido claro das palavras e sentenças das Escrituras, estão sempre procurando significados ocultos. O que está escrito com clareza na Bíblia não comove tais pessoas; porém, se encontrarem algo que as pessoas comuns não podem ver, ficam fortemente impressionadas! Para elas, este é o significado “espiritual” das Escrituras, e o consideram mais importante do que o seu significado evidente.
Entre os que estudam as Escrituras desta maneira, encontram-se aqueles que tributam grande atenção ao valor numérico das letras do hebraico. Quase todo o Antigo Testamento foi escrito em hebraico. Cada letra do alfabeto hebraico serve não apenas como letra, mas também como número. Se você quiser, pode somar os números representados pelas letras de uma palavra, dando a esta um valor numérico. Pode fazer o mesmo com as sentenças. Pode até encontrar outras letras e sentenças com o mesmo valor numérico. Com todos esses números ante os seus olhos e um pouco de imaginação, pode chegar a todo tipo de conclusão. Considere o que você poderá dizer às pessoas depois de um estudo de todas as palavras e sentenças que têm valor numérico igual a 666!
Outras pessoas não chegam a esse ponto, mas são controladas por essa mentalidade. Se não se mostram interessadas em letras hebraicas, podem ser fascinadas pelo significados dos nomes dos lugares na Bíblia, sobre os quais fundamentam grande parte de seu ensino. Para estes, o importante é o significado que as pessoas comuns não podem ver. “Afinal de contas”, eles argumentam, “1 Coríntios 2.14 não ensina que as coisas espirituais são discernidas espiritualmente?”
O fato de que eles usam este versículo nos mostra como eles são péssimos exegetas! No versículo, Paulo estava falando sobre pessoas não-convertidas. Estava ensinando que tais pessoas não aceitam as coisas espirituais, nem se importam com elas. Pensam que essas coisas são loucura e irrelevantes. Esta é a razão por que não têm qualquer senso espiritual. Para que venha a apreciar as coisas espirituais, uma pessoa tem de experimentar uma mudança de natureza e receber um novo coração.
A Bíblia não ensina que sua mensagem pode ser entendida somente por uma elite espiritual. E, com certeza, também não afirma que seu verdadeiro significado é tal que a maioria das pessoas não pode descobri-lo! Os verdadeiros pregadores da Palavra rejeitam toda exegese supersticiosa.
Alegoria
Algumas pessoas estudam a Bíblia alegoricamente. A maneira de pensar deles possui certas semelhanças com o que acabamos de descrever, mas não é idêntica. Elas estão verdadeiramente interessadas no sentido gramatical da Palavra de Deus, mas crêem que, em adição a este sentido, algo mais precisa ser descoberto.
Pessoas têm estudado a Bíblia de maneira alegórica desde os primeiros séculos da igreja cristã. Para entendermos como elas analisam as Escrituras, devemos talvez pensar no famoso livro O Peregrino, de John Bunyan. Neste livro, encontramos diversos personagens que passam por aventuras extraordinárias. Os personagens e as aventuras são importantes, porque sem eles o livro não existiria. Mas o que realmente importa não são os detalhes da história, e sim o que John Bunyan está transmitindo, enquanto conta a história. Ele tem verdades a ensinar e lições que precisamos aprender. Estas são as coisas importantes, e não os personagens e as aventuras usadas para transmiti-las.
Os que estudam a Bíblia de maneira alegórica lêem-na de modo semelhante. O significado claro das palavras e sentenças é importante, mas não é tão importante quanto as verdades e lições que estão por trás desse significado. A Bíblia está repleta de significados, e o significado evidente está entre os menos valiosos.
Esse tipo de interpretação leva a fantasias ilimitadas e às mais grosseiras interpretações. O Antigo Testamento, em particular, significa aquilo que o pregador deseja que signifique. Esse tipo de “exegese” aniquila o estudo sério e recompensa a ingenuidade. Pregar torna-se apenas uma demonstração dos poderes inventivos do pregador, enquanto o trabalho árduo exigido pela exegese séria desaparece de cena.
Certa vez, ouvi um sermão baseado em Gênesis 24. Fiquei assentado em meu banco por 75 minutos, sentindo-me totalmente encantado, enquanto o pregador contava a história de como Abraão mandara seu servo de confiança à Mesopotâmia, a fim de encontrar uma esposa para Isaque, seu filho. O propósito da mensagem era mostrar como Deus Pai traz uma noiva para seu Filho. No sermão, Abraão foi igualado a Deus Pai; Isaque, a Deus Filho; o servo de confiança, ao Espírito Santo; Rebeca, à igreja; e os camelos, às promessas divinas que levam a igreja, guiada pelo Espírito, em segurança ao céu!
Já passaram-se quarenta anos desde que ouvi esse sermão. Ainda posso recordar quase todas as palavras. Foi pregado por um homem a quem eu devo mais do que posso expressar. Ele já está no céu há alguns anos, e não pretendo manchar sua memória, de maneira alguma. Todavia, o seu sermão teria sido totalmente correto, se ele tivesse apenas usado Gênesis 24 como ilustração da doutrina que estava ensinando. Mas não o fez. Ele deu a impressão de que Gênesis 24 foi escrito com a intenção de ensinar como Deus traz uma noiva para seu Filho. Contudo, esse não é, de modo algum, o significado tencionado pela passagem. Assim, infelizmente, preciso dizer: um sermão que me deixou fascinado era um péssimo sermão.
A verdadeira pregação exige que descubramos o significado proposital da passagem que estamos abordando. Não há lugar para o alegorismo, a menos que digamos às pessoas que o estamos fazendo para ilustrar nosso argumento — e tem de ser um argumento já estabelecido pela exegese correta. Não é proveitoso apelarmos à passagem como Gálatas 4.21-31 para argumentarmos que às vezes a alegoria é permitida. Algumas pessoas também mencionam 1 Coríntios 10.1-3 e Hebreus 7.1-3, para apoiar este ponto de vista. Se considerarmos com atenção estas passagens, perceberemos que não são realmente alegorias, embora pareçam à primeira vista. São exemplos de como o Antigo Testamento pode ser usado como ilustração. Também é interessante observar que nenhuma destas passagens é usada para provar qualquer tipo de doutrina.
É tempo de abandonar o uso de exegese alegórica. Há uma pergunta simples que nos diz quando usamos uma passagem como alegoria ou como ilustração: no estudo desta passagem, o significado intencional das palavras e sentenças está em primeiro plano ou oculto no contexto? Se o significado intencional não ocupa a posição primária de nossa exegese, a alegoria está espreitando perigosamente em algum lugar — e tem de ser aniquilada imediatamente!
Dogma
Existe outro grupo de pessoas que estuda a Bíblia dogmaticamente. Não há nada errado com o vocábulo dogma, desde que entendamos o que ele significa. Esta não é uma palavra que gosto de usar com freqüência, porque é antiquada e, no que diz respeito a muitas pessoas, transmite idéias indesejáveis. “Dogma” é uma palavra antiga que significa doutrina. “Teologia dogmática” é outra maneira de descrever “teologia sistemática”. Mas, o que é isso realmente? É uma afirmação do sistema de doutrina ensinado na Bíblia, sem o emprego de qualquer outra informação, além daquela que a própria Bíblia nos fornece.
Os pregadores mais poderosos são sempre aqueles que são fortes em teologia dogmática. Aceitam um sistema de doutrina que governa todo o seu viver. Esse sistema de doutrina determina a crença e controla o comportamento deles. Expressa-se nas orações e se manifesta claramente na pregação deles. São homens de convicções; por isso, estão em perigo.
À medida que estudam qualquer parte da Bíblia, encontram facilidade em interpretá-la à luz de seu sistema, em vez de lembrarem que a própria Bíblia é a fonte do sistema teológico deles. O fato é que algumas passagens das Escrituras são muito difíceis de serem entendidas. Somos tentados a fazer com que elas se encaixem em nosso sistema teológico, em vez de gastarmos tempo e esforço necessários para fazermos uma exegese rigorosa. Muitos pregadores que são fortes em teologia dogmática caem nessa armadilha. Pode-se até dizer que caem com regularidade. Fazem certos textos e passagens parecerem dizer coisas que realmente não dizem!
Podemos tomar Hebreus 6.4-8 como exemplo. Inúmeros pregadores e comentaristas bíblicos têm interpretado estes versículos à luz do seu sistema e, por isso, têm deixado de entendê-los corretamente. Aqueles que têm um sistema de teologia que ensina a perda de salvação do verdadeiro crente usam estes versículos para provar o seu ensino. Aqueles que possuem um sistema de teologia cujo ensino é de que o crente não perde a salvação, afirmam que a advertência dada nesta passagem de Hebreus é apenas hipotética — o autor estava pintando um quadro ameaçador, mas não descrevia a realidade.
Em ambos os casos, estudar as Escrituras com uma abordagem dogmática leva os seus seguidores ao erro. Se qualquer desses pontos de vista for pregado, o pregador será culpado de inexatidão exegética. A passagem não está comentando se o crente pode ou não perder a salvação. Esse não é o propósito. E a situação sobre a qual a passagem fala não é hipotética, como é bem evidente no versículo 9. A passagem é uma das várias na Epístola aos Hebreus que têm a intenção de mostrar que é possível alguém ter uma verdadeira experiência do Espírito Santo, sem ter necessariamente uma experiência de salvação. A prova de que você teve uma experiência salvadora da parte do Espírito Santo não é o fato de que sentiu algo, e sim de que você persevera na fé e produz fruto. Se isso não acontece, você está perdido — portanto, precisa examinar a si mesmo e tomar os passos concretos para assegurar-se de seu progresso espiritual.
Somente um compromisso com a exegese completa nos capacita a pregar o significado intencional da passagem. E o que é verdade a respeito de Hebreus 6.4-8 também é verdade a respeito de qualquer outra parte da Bíblia. A teologia dogmática é boa, mas temos de aprender a mantê-la no seu devido lugar. Se não o fizermos, ela arruinará nossa pregação.
Razão humana
Gostaria de concluir esta secção dizendo que existem pessoas que estudam a Bíblia racionalisticamente. Para estes, o grande fator é a razão humana; eles rejeitam tudo que a ofendem. Isto significa que elas não crêem em milagres ou em qualquer fenômeno sobrenatural. Estas pessoas estão certas de que a verdade está na Bíblia, mas não podem crer que toda parte da Bíblia seja verdadeira. Como poderia ser verdadeira toda a Bíblia? Ela não foi escrita por homens imperfeitos?
Esse tipo de abordagem tem um grande efeito na maneira como a Bíblia é interpretada. Moisés e os israelitas não atravessaram o mar Vermelho da maneira como foi descrita no livro de Êxodo, pois quem pode acreditar que as águas se abriram formando muros em ambos os lados dos israelitas? Podemos realmente crer que Isaías predisse o surgimento de Ciro, citando-o por nome, muito antes de ele nascer? A alimentação de cinco mil pessoas tem de ser explicada de alguma outra maneira, bem como a ressurreição física de nosso Senhor Jesus Cristo.
A “desmistificação” da Bíblia, e dos evangelhos em particular, tem sido uma das maneiras pelas quais a confiança na razão humana tem se manifestado em anos recentes. A idéia é que, ao escreverem os quatro evangelhos, os seus autores, do século I, podiam pensar apenas como pensavam as pessoas daquele século. Para entendermos o que disseram, não devemos seguir a maneira que eles tinham para ver as coisas, e sim considerar as verdades subjacentes usando uma perspectiva do século presente. Por exemplo, não temos de crer que Jesus ressuscitou fisicamente dentre os mortos. Basta crer que, por meio da experiência de Jesus, homens e mulheres podem ter vida verdadeira. A história da ascensão de Jesus não deve ser entendida li- teralmente. O que aconteceu foi que os escritores dos evangelhos estavam ressaltando a outra natureza de Jesus.
O que devemos dizer a respeito disso? Rejeitamos essa abordagem, e a rejeitamos por completo. A Bíblia, embora escrita por homens imperfeitos, é a Palavra de Deus. Ele a inspirou e garantiu que seus autores humanos escrevessem com exatidão, sem massacrar, de alguma maneira, a personalidade e os diferentes estilos deles. Se retirarmos da Bíblia o sobrenatural, ela não tem mensagem. Temos de entender o Antigo Testamento como nosso Senhor o entendeu. Temos de crer no Novo Testamento, sujeitando-nos a ele como as Escrituras que nosso Senhor ordenou a seus apóstolos que escrevessem.
Se retirarmos da Bíblia tudo que causa dificuldade à razão humana, seremos culpados de distorção exegética. Terminaremos pregando nada mais do que nossas próprias idéias. Rejeitar o sobrenatural reduz a Bíblia ao absurdo. Assim, o pregador pode fazê-la dizer apenas o que ele quer. Princípios de interpretação que estão centralizados completamente no homem, nunca serão bem-sucedidos em entender o Livro de Deus. Nenhuma exegese verdadeira (e, conseqüentemente, nenhuma pregação verdadeira) resulta do campo racionalista.
O trecho abaixo foi retirado com permissão do livro Pregação pura e simples, de Stuart Olyott, Editora Fiel.