Começamos este capítulo com uma história de uma recitação na fogueira, onde um jovem judeu ouviu com bastante atenção, comparando Gênesis com o início do Evangelho de João. É hora de fechar o ciclo.
No Evangelho de Mateus, ouvimos outro apóstolo abrir sua narrativa remontando ao início. Enquanto João usa a palavra archē para “princípio” (Jo 1.1; cf. Gn 1.1 na Septuaginta, a tradução grega do Antigo Testamento), Mateus emprega outra palavra para transmitir uma ideia semelhante, porém esta será imediatamente familiar para a maioria dos leitores contemporâneos da Bíblia. Mateus escolhe a palavra grega genesis — que significa “fonte” ou “origem” — em sua frase de abertura. Observe o movimento:
- No princípio [archē] Deus […] (Gn 1.1, Septuaginta)
- No princípio [archē] o Verbo […] (Jo 1.1)
- Livro do início/genealogia [isto é, geneseōs, uma forma da palavra genesis] de Jesus Cristo […] (Mt 1.1)
- Ora, o início/nascimento [isto é, geneseōs] de Jesus Cristo […] (Mt 1.18)
O que Mateus está fazendo? Podemos achar as genealogias chatas, mas essa revela o propósito do autor. Mateus aqui faz alusão à tradução da Septuaginta de Gênesis 5.1 — especificamente, o “o livro da genealogia [hē biblos geneseōs] de Adão”, que por sua vez ecoa “a gênese dos céus e da terra quando foram criados” (Gn 2.4). Mateus apresenta Jesus como o cumprimento das promessas de Deus e de sua presença com seu povo, de Abraão ao exílio, do período pós-babilônico ao início do primeiro século. Depois de mapear uma genealogia afirmando que Jesus é o ápice das promessas e do tempo, o mistério outrora oculto, Mateus continua com sua versão particular da história.[1]
Deus é o Criador. Tudo o que não é Deus se enquadra na categoria “Criação”. Isso inclui plantas e aranhas, Netuno e Saturno, oxigênio e humanos. Tudo o que não é Deus, no entanto, aponta para Deus como o Criador e Sustentador de todas as coisas. Só Deus não tem origem nem começo. Ele é o Eterno: todas as coisas vêm dele, por meio dele e para ele (Rm 11.36).
É verdade que este mundo criado foi comprometido, causando ruptura, desordem e desarmonia. Essa ruptura afeta todos os nossos relacionamentos, da comunhão com Deus à comunhão com os outros, de nossos corpos infectados com câncer à nossa conexão distorcida com a terra. Por causa dessa ruptura, também somos incapazes de entender a Criação, confundindo os limites criados com a pecaminosidade. Isso pode nos levar, como Marcião, a colocar o Criador contra o Redentor, pondo sobre a Criação a nossa incompreensão de Deus e de seus propósitos para ela e para nós nela.
Parte do remédio para esse erro é renovar nossa compreensão das conexões entre o “começo” original na Criação e o “novo começo” na Redenção. Deus em Cristo demonstra seu amor por seu mundo. Ele o ama tanto que, por meio de um ato particular e único do Deus trino, o eterno Filho de Deus “se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14). Deus, que não possui DNA nem parentesco genético, humilhou-se por meio do Filho, o qual considerou a igualdade com Deus não como usurpação, mas, em vez disso, tornou-se humano (Fp 2). Basílio de Cesareia afirmou assim: o Filho se tornou genuinamente humano, tal como Adão foi originalmente criado; caso contrário, “nós, que morremos em Adão, não teríamos sido vivificados em Cristo. […] E que necessidade haveria da Virgem Santa, se a carne portadora de Deus não devesse ser assumida a partir do material do qual Adão foi moldado?”.[2]
[Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus. 1 João 4.2]
Estranhamente, sem deixar de ser divino, o Filho assume uma natureza humana genuína. Ele não escolhe entre o divino e o humano. Envolto em finitude — dentro dos limites da experiência da criatura —, o Filho paradoxalmente vem como o abraço divino à Criação. Ele vem para se aproximar e renovar. Nessa vinda, descobrimos o coração de Deus. E sua vinda liga o florescimento humano aos nossos limites de criaturas.
Embora nossa cultura ainda contenha traços de gnosticismo, na maioria das vezes ela aceita e celebra nossa fisicalidade — até mesmo a ponto de ignorar questões espirituais. Reclamamos com menos frequência sobre ter um corpo em geral do que sobre ter este corpo em particular. O próximo capítulo analisa essa questão, chamando-nos a honrar cada corpo humano, rejeitando os abusos, por um lado, e incentivando o envolvimento físico na adoração, por outro.

Edte artigo é um trecho adaptado e retirtado com permissão do livro Conheça seus limites, de Kelly Kapic, em breve pela Editora Fiel.
[1] Para mais informações sobre essas alusões, e para demonstrações sobre como Marcos e Lucas parecem fazer alusões semelhantes, embora muito menos abertamente, ver Sean M. McDonough, Christ as Creator: Origins of a New Testament Doctrine (Oxford: Oxford University Press, 2009), especialmente p. 19–22, com as p. 212–222 dedicadas ao uso desse material por João.
[2] Basílio, Epístola 261, citado por Peter C. Bouteneff, Beginnings: Ancient Christian Readings of the Biblical Creation Narratives (Grand Rapids: Baker Academic, 2008), p. 132.