Nesta primeira parte de nossa reflexão sobre o fruto do Espírito, estamos nos detendo em alguns pressupostos importantes para o entendimento dessa passagem. O último que abordaremos é a complexa questão teológica sobre a soberania de Deus (o fruto é do Espírito) e nossa responsabilidade (de frutificarmos para a glória de Deus).
A dificuldade do tema
Christian Miller e seus colegas expressam honestamente a dificuldade do tema:
Não está claro como compreender a contribuição que tanto os seres humanos como Deus devem dar para promovê-las [as virtudes em geral]. Alguns teólogos cristãos sustentam que não apenas a fé, a esperança e o amor, mas também as virtudes morais não podem ser adquiridas pelo esforço humano; devem, antes, ser infundidas por Deus.[1]
N. T. Wright chama essa tensão bíblica entre a agência divina e a humana de “mistério”,[2] elaborando esse ponto da seguinte forma:
Estamos aqui, como tantas vezes na teologia, nas fronteiras da linguagem, porque estamos tentando falar, ao mesmo tempo, sobre “algo que Deus faz” e “algo que os humanos fazem”, como se Deus fosse simplesmente outro personagem como nós, como se (em outras palavras) a interação entre a obra de Deus e a nossa pudesse ser imaginada no modelo de duas pessoas colaborando em um projeto.[3]
Henri Blocher, entre vários outros estudiosos, destaca que, embora algumas passagens bíblicas destaquem o Espírito Santo como o autor divino da santificação (p. ex., 2Ts 2.13; 1Pe 1.2), em outros lugares, os crentes são encorajados a buscar ativamente a santificação (p. ex., Hb 12.14).[4] O assunto demanda uma explanação um pouco mais detalhada da sinergia na santificação. Para isso, veremos agora o testemunho histórico (especificamente da tradição reformada), bem como o testemunho bíblico em algumas passagens-chave.
Monergismo ou sinergismo?
“Monergismo” e “sinergismo” são termos que se referem à ação de Deus e dos homens na salvação. Na regeneração, por exemplo, o monergismo ensina que nascemos de novo por meio de uma ação única de Deus, e de Deus somente (em grego, mono [um] + erg- [obra]). O sinergismo, por outro lado, ensina que nascemos de novo pela cooperação humana com a graça de Deus (em grego, syn [com] + erg- [obra]).
Os reformadores protestantes se opuseram fortemente a todas as interpretações sinergistas do novo nascimento. Eles corretamente acreditavam que, devido à morte espiritual e à incapacidade moral do homem, nossa regeneração é inteiramente resultado da ação soberana e exclusiva de Deus. Não cooperamos nem contribuímos para nosso novo nascimento.
Entretanto, quando os teólogos reformados lidavam com a santificação, usavam uma linguagem sinergista ou, no mínimo, uma linguagem que expressava o elemento ativo do crente no processo de santificação. Em outras palavras, uma vez que o crente seja regenerado, espiritualmente ressuscitado, tendo ganhado, de forma totalmente passiva, uma nova natureza como um presente imerecido de Deus, essa nova realidade é de tal natureza que ele, pelo e no Espírito, pratica obras que são realmente boas diante de Deus (veja Ef 2.10).
Testemunhos históricos da tradição reformada
Veremos agora uma série de testemunhos de teólogos reformados que afirmam esse entendimento resumidamente exposto.[5]
João Calvino (1509–1564), comentando sobre 2 Pedro 1.5 (“por isso mesmo, vós, reunindo toda a vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude etc.”), diz:
Como é uma obra árdua e de imenso trabalho tirar a corrupção que está em nós, ele nos ordena a lutar e fazer todo esforço para esse propósito. Ele sugere que nenhum lugar deve ser dado neste caso à preguiça e que devemos obedecer ao chamado de Deus não lentamente ou descuidadamente, mas que há necessidade de presteza; como se ele tivesse dito: “Façam todo esforço, e façam seus esforços manifestos a todos.”[6]
Francis Turretini (1623–1687) emprega “santificação” como um termo teológico, o que significa que:
[…] ela é usada estritamente para designar uma renovação real e interior do homem pela qual Deus liberta o homem plantado em Cristo mediante a fé e justificado (pelo ministério da Palavra e a eficácia do Espírito), mais e mais a partir de sua depravação inata e o transforma em sua própria imagem. E, assim, com a separação do mundo e do pecado e a consagração ao serviço de Deus, ela implica uma renovação de sua natureza.O termo é entendido também mais estrita e propriamente como a renovação segundo a imagem de Deus. Esta segue a justificação e tem início aqui nesta vida pela regeneração e é promovida pelo exercício da santidade e boas obras, até que seja consumada na outra vida pela glória. Nesse sentido, ela é então entendida passivamente, visto ser operada por Deus em nós; então ativamente, uma vez que deve ser feita por nós, com Deus realizando esta obra em nós e por meio de nós.[7]
Sobre a relação entre a regeneração e a santificação, Turretini ainda afirma:
A mortificação real do velho homem, e a vivificação do novo, consistindo na remoção dos vícios e na reparação da vida e dos hábitos (atos com os quais o homem coopera), realmente seguem-se à regeneração habitual como seu fruto próprio (Gl 5.22, 23; Cl 3.5) e não podem separar-se dela. No entanto, aquelas se distinguem desta como o efeito da causa e um ato de um hábito (Ef 2.10; Rm 6.4; Ez 36.26; Jr 32.39). Pois somos por Deus feitos novas criaturas para que possamos, assim, andar em novidade de vida.[8]
Ainda com respeito à necessidade das obras como algo fundamental à santificação, Turretini afirma:
[…] o estado de graça e de liberdade para o qual o evangelho nos transfere exige isso. É uma liberdade espiritual da maldição da lei, da tirania de Satanás e do jugo do pecado, mas não uma licença carnal. Não nos livra da obediência a Deus, mas nos une a ele por um vínculo mais forte: “E, uma vez libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça” (Rm 6.18); “como livres que sois, não usando, todavia, a liberdade por pretexto da malícia, mas vivendo como servos de Deus” (1Pe 2.16), isto é, em cujo culto consiste em nossa verdadeira liberdade, porque “servir a Deus é reinar”.[9]Wilhelmus à Brakel (1635–1711), em seu magistral The Christian’s Reasonable Service [O culto racional cristão], disse:
Ao aplicar a lei dos opostos, agora fica evidente o que é o novo homem: a propensão espiritual, a vida espiritual, a natureza santificada e a imagem de Deus, consistindo em verdadeiro conhecimento, retidão e santidade. Ele também é chamado de homem interior (Rm 7.22); o homem oculto do coração (1Pe 3.4); a obra de Deus (Ef 2.10); uma nova criatura (2Co 5.17); e a natureza divina (2Pe 1.4). Ele é chamado de homem porque permeia o homem inteiro e penetra seu intelecto, vontade, afeições e todos os membros do corpo em seus movimentos, fazendo com que o homem funcione em harmonia com essa natureza santa. Ele é chamado de novo homem porque é infundido no homem subsequentemente à existência do velho homem e o transforma em um homem inteiramente diferente e renovado. [10]
Falando sobre a mortificação do velho homem, ele afirma:
O Espírito Santo, tendo infundido uma nova natureza na regeneração, preserva-a por sua influência contínua, agita-a, sustenta-a e dirige-a em todos os seus movimentos ― “Pois Deus é quem opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade” (Fp 2.13). Essa vida espiritual, essa nova natureza, sendo assim sustentada e ativada, funciona em harmonia com sua força (ou fraqueza), e se coloca contra a velha natureza, seja para mortificá-la, seja para expulsá-la.[11]
E, ainda sobre as operações eficazes de Deus no eleito, lemos:
Os crentes odeiam o pecado, amam a Deus, são obedientes e fazem boas obras. No entanto, eles não fazem isso nem por si próprios nem independentemente de Deus; em vez disso, o Espírito Santo, tendo infundido vida neles na regeneração, mantém essa vida por sua influência contínua, agita-a, ativa-a e faz com que funcione em harmonia com sua natureza espiritual.[12]
Charles Hodge (1797–1878) não se contradiz ao dizer que, embora a santificação seja obra de Deus, demanda cooperação humana. Essa linguagem é necessária para evitar que se pense na santificação como obra meramente humana e cultural, ou que imagine ser possível participar dela de forma totalmente passiva e irresponsável. Ele diz:
Já se demonstrou que, embora a santificação não exclua toda cooperação por parte dos que lhe são sujeitos, mas, ao contrário, demande sua incansável e enérgica ação, ela é, não obstante, obra de Deus. Não é realizada como mero processo de cultura moral através de meios morais; é tão verdadeiramente supernatural em seu método quanto em sua natureza.[13]
Encontramos esses mesmos temas — santificação como dom e santificação como cooperação ativa — no grande sistemático de Princeton. Hodge enfatiza que a santificação é “sobrenatural”, no sentido de que as virtudes sagradas na vida de um crente não podem “ser produzidas pelo poder da vontade nem por todos os recursos do homem, por mais prolongados ou habilidosos que sejam em sua aplicação. Elas são dons de Deus, os frutos do Espírito.”[14]
Ainda assim, Hodge é rápido em acrescentar que essa obra sobrenatural de santificação não exclui “a cooperação de causas secundárias”. Ele explica:
Quando Cristo abriu os olhos do cego, nenhuma causa secundária se interpôs entre sua volição e o efeito. Mas os homens trabalham sua própria salvação, enquanto é Deus quem opera neles o querer e o efetuar, de acordo com seu próprio prazer. Na obra de regeneração, a alma é passiva. Ela não pode cooperar na comunicação da vida espiritual. Mas, na conversão, arrependimento, fé e crescimento na graça, todos os seus poderes são chamados ao exercício. Como, no entanto, os efeitos produzidos transcendem a eficiência de nossa natureza caída e são devidos à agência do Espírito, a santificação não deixa de ser sobrenatural, ou uma obra da graça, porque a alma está ativa e cooperando no processo.[15]
O teólogo presbiteriano William G. T. Shedd (1820–1894) vai na mesma direção de seus antecessores:
O crente coopera com Deus, o Espírito, no uso dos meios de santificação. A santificação é tanto uma graça quanto um dever[…] A regeneração, sendo uma obra exclusiva de Deus, não é um dever. Não se exige em lugar algum que o homem se regenere.[16]
O grande teólogo holandês Herman Bavinck (1854–1921) segue essa mesma linha:
… em primeiro lugar, [a santificação] é uma obra e um dom de Deus (Fp 1.5; 1Ts 5.23), um processo no qual os humanos são passivos assim como são na regeneração, do qual é a continuação. Mas com base nessa obra de Deus nos humanos, ela adquire, em segundo lugar, um significado ativo, e as próprias pessoas são chamadas e equipadas para se santificarem e devotarem toda a sua vida a Deus (Rm 12.1; 2Co 7.1; 1Ts 4.3; Hb 12.14; e assim por diante).[17]
Loraine Boettner também afirma a conjuntura Deus-homem na santificação:
Neste ponto, muitas pessoas confundem regeneração e santificação. A regeneração é exclusivamente obra de Deus e é o ato de sua graça livre no qual ele implanta um novo princípio de vida espiritual na alma. É realizada por poder sobrenatural e é completada em um instante. Por outro lado, a santificação é um processo através do qual os restos do pecado na vida exterior são gradualmente removidos, de modo que, como diz o Breve Catecismo, somos habilitados cada vez mais a morrer para o pecado e a viver para a justiça. É uma obra conjunta de Deus e do homem.[18]
Vemos em Louis Berkhof a mesma tendência de se proteger contra quaisquer noções de autoajuda, por um lado, e da inatividade humana, por outro:
[A santificação] é uma obra sobrenatural de Deus. Alguns têm a equivocada noção de que a santificação consiste meramente em induzir a nova vida implantada na alma pela regeneração, de maneira persuasiva, mediante a apresentação de motivos à vontade. Mas isto não está certo. Ela consiste, fundamental e primariamente, de uma operação divina na alma pela qual a santa disposição nascida na regeneração é fortalecida e os seus santos exercícios são aumentados. É essencialmente uma obra de Deus, embora, na medida em que Deus emprega meios, o homem pode e espera-se que coopere, pelo uso adequado desses meios.[19]Em outras palavras, a santificação é essencialmente uma obra de Deus. Todavia, também é “uma obra de Deus na qual os crentes cooperam”:
Quando se diz que o homem participa na obra de santificação, não significa que o homem é um agente independente de ação, como se fizesse em parte a obra de Deus e em parte a obra do homem; mas apenas que Deus efetua essa obra em parte pela instrumentalidade do homem como ser racional, requerendo dele devota e inteligente cooperação com o Espírito.[20]
Por fim, J. I. Packer é preciso ao dizer:
A regeneração foi um ato monergista momentâneo para despertar os espiritualmente mortos. Como tal, foi uma obra exclusiva de Deus. A santificação, contudo, é, em certo sentido, sinérgica — é um processo cooperativo em progressão, no qual as pessoas regeneradas, vivas para Deus e libertas do domínio do pecado (Rm 6.11, 14-18), são solicitadas a manifestar sólida obediência. O método de Deus para a santificação não é nem ativismo (atividade autoconfiante) nem apatia (passividade confiante em Deus), mas sim esforço dependente de Deus (2Co 7.1; Fp 3.10-14; Hb 12.14).[21]

O artigo acima é um trecho retirado com permissão e adaptado do livro O fruto do Espírito, de Willian Orlandi, em breve pela Editora Fiel.
[1] Christian B. Miller et al., “Introduction.” In Character: New Directions from Philosophy, Psychology, and Theology, ed. Christian B. Miller, R. Michael Furr, Angela Knobel e William Fleeson (Nova York: Oxford University Press, 2015), p. 5.
[2], N. T. Wright, After You Believe: Why Christian Character Matters (Nova York: Harper One, 2010), p. 197.
[3] Ibid.
[4] Henri Blocher, “Sanctification by Faith?”, em Sanctification: Explorations in Theology and Practice, ed. Kelly M. Kapic (Downers Grove: IVP Academic, 2014), p. 61.
[5] Agradeço ao pastor e teólogo Daniel Deeds por muitas dessas referências.
[6] John Calvin e John Owen, Commentaries on the Catholic Epistles (Bellingham: Logos Bible Software, 2010), p. 372 (ênfase adicionada).
[7] François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, vol. II (São Paulo: Cultura Cristã, 2010), p. 823.
[8] Ibid., p. 655 (ênfase adicionada).
[9] Ibid. p. 841 (ênfase adicionada).
[10] Wilhelmus à Brakel, The Christian’s Reasonable Service, Volume III: Soteriology – The Doctrine of Salvation, trad. Bartel Elshout (Grand Rapids: Reformation Heritage Books, 1992), p. 7 (ênfase adicionada).
[11] Ibid., p. 7 (ênfase adicionada).
[12] Ibid., p. 5.
[13] Charles Hodge, Systematic Theology (Oak Harbor: Logos Research Systems, Inc., 1997), p. 226.
[13] Ibid. (ênfase adicionada) [edição em português: Teologia Sistemática, trad. Valter Martins (São Paulo: Hagnos, 2001)].[14] Ibid., p. 215.
[15] Ibid. (ênfase adicionada).
[16] William G. T. Shedd, Dogmatic Theology (Phillipsburg: P & R, 2003), p. 804 (ênfase adicionada).
[17] Herman Bavinck, Dogmática Reformada, Volume IV: Espírito Santo, Igreja e Nova Criação, trad. Vagner Barbosa (São Paulo: Cultura Cristã, 2012), p. 256.
[18] Loraine Boettner, The Reformed Doctrine of Predestination (Phillipsburg: Presbyterian and Reformed Publishing Company, 1932), p. 172 (ênfase adicionada).
[19] Louis Berkhof, Teologia Sistemática, 4ª ed., trad. de Odayr Olivetti (São Paulo: Cultura Cristã, 2012), p. 489-90 (ênfase adicionada).
[20] Berkhof, Teologia Sistemática, p. 491 (ênfase adicionada).
[21] J. I. Packer, Teologia Concisa: Um Guia de Estudo das Doutrinas Cristãs Históricas, 3ª ed., trad. Rubens Castilho (São Paulo: Cultura Cristã, 2014), p. 150 (ênfase adicionada).