quarta-feira, 12 de março
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Sexualidade e identidade

Será que a sexualidade é quem realmente somos?

“Este sou eu”, disse Andy, um de meus colegas do seminário. De vez em quando, ele, eu e outro amigo debatíamos passagens bíblicas após a aula, só por diversão. Andy era um rapaz brilhante, criado no campo missionário e casado com uma moça piedosa. Foi uma surpresa saber que ele tinha saído do armário e não estava mais vivendo com ela. Era seu segredo. E muitas pessoas próximas dele foram surpreendidas pela notícia.

Naquela semana, quando nos reunimos para debater a Bíblia, nosso diálogo inevitavelmente se voltou para passagens relacionadas à homossexualidade. De fato, houve uma mudança na hermenêutica de Andy. Sua irreverente rejeição aos autores bíblicos como ignorantes ou apenas desinformados evidenciou sua mudança de opinião sobre a autoridade e inerrância das Escrituras.

Estávamos nos desafiando mutuamente por cerca de uma hora quando Andy, de súbito, mudou nossa conversa para um rumo diferente, passando do teórico para o pessoal: “Por que Deus me faria desse jeito e, depois, não permitiria eu ser quem sou? Por anos, orei para que tirasse isso de mim e me mudasse. Mas nada aconteceu, nem vai acontecer. Faz tempo que nego isso. Nunca escolhi. Só preciso ser honesto, autêntico e aceitar a verdade de que sou gay. Este sou eu”.

Naquele momento, eu soube — por experiência pessoal — que a questão ia além das interpretações incorretas de Andy acerca das passagens bíblicas referentes a relacionamento entre pessoas do mesmo sexo. Era algo mais profundo, e não uma simples exegese errada ou uma visão depreciativa das Escrituras. As palavras de Andy revelavam um profundo mal-entendido filosófico e teológico, um pressuposto errado que apontava para sua essência, para o centro de seu ser: este sou eu.

Ser gay não tem mais a ver com aquilo pelo qual sou atraído, que desejo ou faço. É sobre quem eu sou. O ativista gay Matthew Vines escreveu que a atração sexual “é simplesmente parte de quem você é” e, “como seres humanos, nossa sexualidade é uma parte central de quem somos”.  No diálogo sobre sexualidade, essa mudança sutil de o que para quem criou uma visão radicalmente distorcida de identidade. 

Não há outro pecado tão ligado à identidade. Por exemplo, ser fofoqueiro não é quem a pessoa é, mas o que ela faz. Ser adúltera não é quem a pessoa é, mas o que ela faz. Odiar outras pessoas não é quem a pessoa é, mas o que ela faz. Será que a capacidade de sentir atração pelo mesmo sexo de fato descreve quem eu sou no nível mais fundamental? Ou será que deveria descrever como eu sou? Será que essa é uma mentira categórica que, no fim das contas, distorce a maneira como pensamos e vivemos? Os termos “heterossexual” e “homossexual” transformam desejo em identidade, experiência em ontologia.

A declaração de meu amigo Andy — semelhante à de muitos gays e lésbicas — traz à tona uma questão antiga: quem eu sou? De Platão a Descartes, de Kant a Foucault, filósofos ao longo da história tentaram lançar luz sobre esse mistério profundo.

Os filósofos não são os únicos a levantarem a questão. Todos nós já nos questionamos. A puberdade, em especial, é uma fase em que os adolescentes têm dificuldade com sua identidade. Além disso, é comum adultos de meia-idade questionarem sua existência e significado. Para muitos, a busca pela identidade pode durar a vida inteira.

Para alguns, sua identidade é moldada pela família, cultura e pelos amigos. Outros a encontram no trabalho, esportes, hobbies ou no ativismo mais recente da moda. Alguns encontram sua única identidade no fato de serem pais. E outros, como sabemos, encontram em sua sexualidade.

Será que essas alternativas à identidade de fato descrevem quem somos ou apenas aquilo que fazemos e vivenciamos? E, sobretudo, será que a sexualidade descreve quem somos ou de fato explica como somos? As respostas a essas questões afetam muitos aspectos de nossa vida. Elas impactam a forma como pensamos, as escolhas feitas e os relacionamentos construídos.

Todos os nossos pensamentos e ações são influenciados, de alguma forma, pelo modo como respondemos à questão: “quem sou eu?”. Há uma relação mais próxima entre essência e ética do que muitos percebem. Um influencia o outro. Quem somos (essência) determina como vivemos (ética). Como vivemos determina quem somos. 

Se temos uma visão equivocada de quem somos, teremos uma ética pessoal equivocada. Se temos uma ética pessoal equivocada, teremos uma visão equivocada de quem somos. A identidade influencia a prática. A prática influencia a identidade.

Quando me assumi como gay, por volta dos 20 anos, eu acreditava que a única maneira de viver autenticamente como gay era abraçar por completo essa identidade. Ser gay era quem eu era. Na verdade, meu mundo inteiro era gay. Quase todas as pessoas que eu conhecia eram gays.

Todos os meus amigos eram gays. Meus vizinhos eram gays. Meu síndico era gay. Meu barbeiro era gay. Meu faxineiro era gay. Meu contador era gay. Meu vendedor de carros era gay. Eu me exercitava em uma academia gay e fazia compras no Kroger, um “supermercado gay”.

A sexualidade era o centro de quem eu era. Tudo e todos ao meu redor afirmavam isso. E, se “eu sou gay” realmente significa quem eu sou, seria muito cruel alguém me condenar por simplesmente ser eu mesmo.

Sabemos, contudo, que fomos criados à imagem de Deus (Gn 1.27). Portanto, rejeitar nossa essência inerente e substituí-la apenas pelo que sentimos ou fazemos é, na verdade, uma tentativa de dar um golpe de estado contra nosso Criador. Não precisamos descobrir nossa identidade. Ela é dada por Deus. 

Por que isso, contudo, não está claro para todos? O que leva nossos entes queridos gays a se enganarem com tanta facilidade? Por que meu amigo cristão gay se identifica mais como gay do que como cristão? Onde e quando essa perspectiva incorreta surgiu? Como o que eu faço e como eu me sinto se tornou quem eu sou? Em outras palavras, “este é como eu sou” se tornou “este é quem eu sou”?

Potencial e perigo

Antes de meados do século 19, a sexualidade era entendida estritamente como um comportamento, não como identidade. Não havia uma palavra para descrever uma pessoa atraída pelo mesmo sexo. Sigmund Freud e seus contemporâneos foram os primeiros a apresentar termos para identificar as pessoas de acordo com sua atração sexual: “heterossexual” e “homossexual”.

Em 1870, o psiquiatra alemão Carl Westphal foi o primeiro a utilizar o termo “homossexualidade” para caracterizar a natureza de uma pessoa, e não apenas sua prática sexual.  O psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing, por sua vez, escreveu uma das primeiras obras sobre patologia sexual e homossexualidade, publicada em 1886.  A popularidade do livro de Krafft-Ebing tornou mais comuns as palavras que ele usou para descrever orientação sexual: “heterossexual” e “homossexual”.

Sigmund Freud (1856–1939) teve um imenso impacto no debate acerca de homossexualidade e orientação sexual. Seus artigos mais importantes sobre o tema foram escritos entre 1905 e 1922. Em distinção aos seus pares, para Freud, a homossexualidade não era uma doença, mas uma inversão, sendo o homossexual apenas mais uma variação da humanidade. Assim, “heterossexual” e “homossexual” se tornaram novas categorias seculares de identidade.

O conceito de identidade — baseado em sentimentos e comportamentos — floresceu no fértil solo das filosofias seculares emergentes. A Europa do século 19 experimentou um movimento na arte, literatura, música e pensamento acadêmico conhecido como romantismo. Em reação ao racionalismo do Iluminismo e à mentalidade de rebanho da Revolução Industrial, o romantismo exaltava as emoções e o individualismo.

Esse movimento valorizava mais os sentidos do que o intelecto, e as emoções mais do que a razão. Um componente-chave do romantismo era a suposição de que os seres humanos são inerentemente bons; e, se isso é verdade, as emoções humanas (sentimentos, afeições, desejos etc.) também são inerentemente boas.

Junto ao romantismo, a filosofia do existencialismo ganhava força na Europa, dando prioridade à liberdade e uma forte ênfase na maneira de viver, agir e sentir. A virtude suprema do existencialismo era a autenticidade.

Søren Kierkegaard (1813–1855) — considerado o primeiro pensador existencialista — acreditava que a verdade apenas é descoberta subjetivamente pelas ações de cada pessoa e que, a partir dessas ações, cada indivíduo tinha o difícil — mas essencial — dever de encontrar significado e construir valor e identidade pessoal.

Levado ao extremo, o existencialismo, sem dúvida, conduziu ao niilismo, conceito de que a vida não possui significado nem valor intrínseco. Friedrich Nietzsche (1844–1900) — conhecido por sua audaciosa afirmação de que “Deus está morto” — criticou o cristianismo. Ele cria que o indivíduo deveria se libertar das restrições morais da sociedade (sobretudo, da religião) para que pudesse se recriar.

E, por que não? Sem valor intrínseco nem significado objetivo na vida, o indivíduo tem de reavaliar sua existência e viver corajosamente de acordo com seus próprios desejos. Se não há Deus, não há essência. A identidade deve ser criada por cada pessoa. E, se não há essência, mas apenas existência, a ética fica sem âncora e precisa ser construída.

A forte influência dessas filosofias e movimentos na cultura ocidental criou um vácuo: na ausência de qualquer base objetiva para uma identidade verdadeira, a experiência essencialmente se tornou Deus. A experiência passou a reinar soberana. Tudo mais teve de se curvar a ela. Sola experientia (“somente a experiência”) prevaleceu sobre sola Scriptura (“somente a Escritura”). Nesse clima, a ideia de que a sexualidade representa nossa identidade central logo criou raízes.

Por experiência própria, eu sei como é fácil permitir que emoções e desejos se tornem o alicerce de quem sou, assim como meu amigo Andy, após anos de conflito interno, se convenceu totalmente de que não havia outra explicação. Sua experiência subjugou sua identidade. O que eu sinto se tornou quem eu sou.

Conhece-te a ti mesmo

Diante da crença atual tão difundida de que a experiência está acima da essência, o modo correto de os cristãos compreenderem a identidade — sobretudo, no que tange à sexualidade — é entender melhor quem somos à luz da verdade de Deus. A verdadeira identidade não é o que eu faço (por exemplo, eu sou escritor), nem como estou (por exemplo, eu estou feliz). A verdadeira identidade é quem eu sou. Em outras palavras, identidade em Cristo significa união com Cristo.

Não podemos compreender adequadamente a sexualidade humana sem começar pela antropologia teológica. Em termos gerais, antropologia é o estudo da humanidade. Em resumo, é a busca humana de uma resposta para a importante questão: quem sou eu?

A maioria dos antropólogos parte da premissa incorreta de que não há Deus. Premissas incorretas, no entanto, obscurecem a verdade, resultando, na melhor das hipóteses, em conclusões com limitações intrínsecas ou, na pior, em conclusões completamente equivocadas e enganosas. Uma antropologia verdadeira, fiel e precisa começa com Deus.

O reformador João Calvino articulou esta profunda verdade: “O homem nunca alcança um conhecimento claro de si mesmo a menos que primeiro olhe para a face de Deus”.  Quando pesquisadores seculares rejeitam o sobrenatural, não é de se surpreender que também descartem a possibilidade de haver propósito na origem dos seres humanos. Os cristãos sabem da existência de um Deus que nos criou com amor e intencionalidade para um propósito.

Nós começamos com uma visão completamente teocêntrica — isto é, centrada em Deus — da humanidade: todos fomos criados à imagem de Deus (Gn 1), mas também fomos corrompidos pelo pecado por causa da Queda (Gn 3). Só assim podemos entender nossos desejos, submeter-nos a Cristo e viver de acordo com a vontade de Deus.

Quem sou eu? Quem você é? Quem eles são? Quem somos nós? A resposta começa com a imagem de Deus e a doutrina do pecado.


O artigo acima é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Sexualidade santa, de Christopher Yuan, Editora Fiel (em breve).


Autor: Christopher Yuan

Christopher Yuan ensina no Moody Bible Institute há mais de dez anos. Seu livro mais recente é Holy Sexuality and the Gospel: Sex, Desire, and Relationships Shaped by God’s Grand Story

Ministério: Editora Fiel

Editora Fiel
A Editora Fiel tem como missão publicar livros comprometidos com a sã doutrina bíblica, visando a edificação da igreja de fala portuguesa ao redor do mundo. Atualmente, o catálogo da Fiel possui títulos de autores clássicos da literatura reformada, como João Calvino, Charles Spurgeon, Martyn Lloyd-Jones, bem como escritores contemporâneos, como John MacArthur, R.C. Sproul e John Piper.

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